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Projeto da Justiça ensina cidadania por meio do hip hop e encaminha jovens infratores para o mercado de trabalho

Partiu Aula tem foco em evitar a evasão escolar e a reincidência por tráfico de drogas

28/10/2022 - 15h37min

Atualizada em: 28/10/2022 - 15h40min


Isabella Sander
Isabella Sander
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Mateus Bruxel / Agencia RBS

É usando a cultura hip hop que o sistema de Justiça gaúcho tem encontrado uma nova forma de afastar adolescentes infratores do tráfico de drogas e inseri-los no mercado de trabalho. Iniciado há sete meses, o Partiu Aula ostenta uma baixíssima reincidência – apenas um jovem voltou a cometer ato infracional, entre os 40 formados no projeto até agora.

O foco é em adolescentes envolvidos em casos de tráfico de drogas. Durante cinco semanas, Rafa Rafuagi, que é rapper, escritor, empreendedor social e produtor cultural, leva aos jovens debates ligados à cidadania, promove oficinas de rimas e grafite e os ajuda a confeccionar seus currículos. Ao final, uma nova parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac) permite o encaminhamento dos participantes para o mercado de trabalho, por intermédio do Programa Jovem Aprendiz.

Cada turma do projeto atende 10 jovens encaminhados pela equipe da Justiça Instantânea, que realiza um trabalho integrado na área de infância e juventude. Por meio de uma parceria entre o Judiciário Estadual, o Ministério Público do Trabalho da 4ª Região e o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP/RS), o juiz Charles Maciel Bittencourt oferece a adolescentes que respondem por ato infracional uma alternativa ao cumprimento de medida socioeducativa: vincular-se ao Partiu Aula e, se a frequência for superior a 75% e as atividades forem cumpridas, ganhar até mesmo a remissão da medida socioeducativa – ou seja, sair de lá com a ficha completamente limpa.

— Nós temos, na nossa legislação, a possibilidade de aplicação de uma medida socioeducativa, mas também temos a possibilidade de remissão, que é uma oportunidade no início do processo ou, às vezes, até antes, de apresentar ao jovem uma oportunidade de ele não responder ou suspender esse processo, para que possa participar do projeto e resolver sua situação no Judiciário — explica o juiz.

O foco em adolescentes que se envolveram com tráfico de drogas, conforme Bittencourt, foi escolhido devido à recorrência com que esse ato infracional aparece na Vara:

— Infelizmente, é um dos caminhos que mais aparecem para os jovens vulneráveis e desassistidos, não apenas economicamente, mas socialmente, na nossa sociedade. Mas estamos esperançosos e felizes com essa nova oportunidade. O Rafa está realizando um trabalho maravilhoso e muito atento, o que estimula os jovens a se dedicarem cada vez mais.

A metodologia do Partiu Aula foi desenvolvida por Rafa Rafuagi, que a aplica desde 2013 em salas de aula de escolas em Esteio, na Região Metropolitana. Nesse formato, eram oferecidas palestras de cerca de três horas nas instituições, nas quais também utilizava a linguagem e referências da cultura hip hop para trazer temas centrais para a cidadania, como a igualdade de oportunidades, o racismo, a violência doméstica e o preconceito social. No projeto ligado à Justiça, a diferença é que as atividades são desenvolvidas por mais tempo, em cinco aulas de duas horas cada, sendo uma delas em saída de campo, quando os adolescentes gravam o clipe de uma música que compuseram em conjunto na Casa do Hip Hop, também em Esteio.

Para Rafa, é importante que o Partiu Aula tenha, entre os jovens encaminhados pela Justiça, uma duração superior do que a oferecida nas escolas, uma vez que se trata de um público com um perfil específico.

— São jovens que têm uma falta criminosa na vida deles. São problemas na família, milícia nas favelas, situação de facções que levam esses jovens à morte. Temos tentado resgatá-los, para que cada vez mais tenhamos uma condição de sociedade digna, justa, e tentado que eles entendam que podem cobrar mais dignidade para seus territórios, seja com asfalto, comida na mesa ou qualquer outro direito — pontua o rapper.

Mudança na visão de mundo

O projeto tem trazido bons resultados não apenas em números – os relatos dos jovens contemplados são de transformações em suas vidas.

Éder Fabiano Panta da Fontoura Júnior, 18 anos, participou do Partiu Aula em setembro. Apesar de já ser maior de idade, respondia a um ato infracional por tráfico de drogas ocorrido há dois anos, quando ainda era adolescente. Depois de formado no projeto, foi convidado a ser monitor e aceitou. Hoje, ganha uma bolsa de R$ 522 para fazer esse trabalho.

— Esse projeto mudou bastante a minha visão. Quando entrei, queria justiça com as próprias mãos. Entrei na força do ódio, pelo que aconteceu comigo. Só queria me vingar. O Rafa mostrou pra gente que tem outras maneiras de se vingar, como expressar pela música o que aconteceu — conta Éder.

O jovem se ressentia por ter sido encaminhado contra sua vontade para uma clínica de reabilitação, durante sete meses. Na música que compuseram no projeto, fez questão de falar sobre esse tema:

— Eu já tinha escrito algumas músicas, mas nunca tinha gravado. Isso foi o que mais gostei no projeto, que conseguimos mostrar para o Juizado e para a Brigada Militar que o que eles fazem com a gente não precisa fazer.

Éder também considera que o projeto abre muitas possibilidades que mostram que o crime não é o caminho, e que “a maioria justifica que vai pro crime porque não tem dinheiro, mas é só procurar”. Hoje, é monitor do Partiu Aula e também trabalha com entregas de uma marca de café. Para o futuro, deseja abrir uma oficina especializada em motos.

Outro contemplado é um adolescente de 17 anos que também atua como monitor do projeto. O garoto aprovou tanto o uso do rap nas atividades como os debates realizados durante as aulas.

— O Rafa diz que o crime não é a solução e que malandro, pra ele, é o cara ter passe livre em todo lugar. Que não adianta o cara ficar se prendendo, trabalhando na biqueira, porque o cara não tá sendo malandro, tá sendo burro. Isso trouxe uma visão diferente de vida — comenta o jovem.

O adolescente defende que o projeto deveria contemplar mais pessoas, já que a previsão inicial é de que ele atenda 120 em dois anos, e que deveria durar mais tempo. Segundo ele, muita gente chega “revoltada” e sai do Partiu Aula mais tranquila.

— É um projeto que faz diferença. Tem gente ali que está revoltado ou cometeu uma infração por um erro e precisa de alguém que escute as questões dele. Foi o que o Rafa fez, ouviu o que a gente dizia, tentou conversar, sempre querendo ajudar o cara — observa.

Encaminhamento para o mercado de trabalho

A nova parceria com o Senac é especialmente comemorada por Rafa, que acredita que o trabalho feito dentro do projeto só é mantido se houver encaminhamento para o mercado de trabalho.

— Nesse início, a nossa preocupação não é encaminhá-los para algo que os interesse, mas combater a evasão escolar. A gente tenta fomentar que estudar é fundamental e ajudar na construção do currículo. Nem todos têm um currículo feito, que dirá um bem apresentado. A partir disso, estudamos as possibilidades, mas o que vier, vem bem — afirma o empreendedor social.

Coordenadora do Programa Jovem Aprendiz no Senac, Maria Augusta Kämpf Magadan explica que, para participar, o jovem precisa ter até 24 anos incompletos e estar cursando a escola regular ou já ter concluído o Ensino Médio. Com a parceria, o objetivo é que os adolescentes ingressem no mercado de trabalho de forma segura, por meio de um emprego formal, além de se manterem estudando.

— Eu vejo como a oportunidade perfeita para uma mudança de vida. Temos inúmeros casos de aprendizes em que vemos que aquele momento foi chave para a vida deles. Muitos são efetivados nas empresas em que trabalho ou encontram oportunidades logo depois. Ficamos muito felizes, porque, muitas vezes, eles estão aonde estão porque não tiveram outras oportunidades — avalia Maria Augusta.

As vagas oferecidas pelo Senac são em empresas atuantes no comércio de bens e serviços. A maioria é em serviços administrativos no setor de vendas, em supermercados e varejo em geral. No caso da parceria com o Partiu Aula, a ideia é buscar empresas parceiras que dedique vagas exclusivas para os egressos do projeto, a fim de garantir que não sejam preteridos.

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