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Vestido de Homem-Aranha

Após duas internações e um ano de alimentação por sonda, menino de oito anos que foi atingido por estrutura de goleira celebra alta 

Na primeira internação após o acidente, em abril de 2022, Lucas saiu conectado à Oxigenação por Membrana Extracorpórea em função do seu comprometimento cardíaco e pulmonar

15/05/2023 - 12h09min

Atualizada em: 15/05/2023 - 12h10min


Jhully Costa
Jhully Costa
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Mateus Bruxel / Agencia RBS

Inquieto na cadeira de rodas, com um pijama do Homem-Aranha, Lucas Kaick Torelli Mendes, oito anos, não escondia sua vontade de voltar para casa: 

— Agora, quero minha liberdade! 

Após quase dois meses internado no Hospital da Criança Santo Antônio, na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, o menino recebeu alta na tarde desta sexta-feira (12). O relógio marcava 13h08min quando médicas residentes entraram no quarto para entregar a documentação para a mãe, Eduarda de Oliveira Torelli, 29 anos. 

— Agora é tchau para sempre— anunciaram ao menino, antes dos abraços de despedida.  

Essa foi a segunda vez que Lucas deixou a instituição de saúde. A primeira internação ocorreu um dia depois do acidente que quase o matou, em 26 de abril de 2022, fazendo com que tivesse que se alimentar apenas através de sonda por mais de um ano. De acordo com Eduarda, na ocasião, o menino havia saído mais cedo da escola e estava jogando bola com os amigos em um campo de futebol, na Ilha da Pintada, em Porto Alegre, quando a estrutura de uma das goleiras caiu por cima dele, atingindo a região do tórax.  

Familiares levaram Lucas de carro para a unidade de saúde mais próxima, em Eldorado do Sul, de onde foi imediatamente transferido para o Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre e, no dia seguinte, para a Santa Casa.  

— O pior momento foi lá no Pronto Socorro, porque eles não tinham expectativa nenhuma sobre ele. E pedi transferência e eles falaram que não tinha como transferir, porque ele poderia não sobreviver ao transporte. Então, a gente sabia que era muito grave, porque ele teve rompimento de traqueia, brônquio e esôfago, mas a gente nunca desistiu e ele também não. Ele teve muita vontade de viver para passar por tudo que passou e ainda estar aí, firme e forte — conta a mãe. 

No Hospital Santo Antônio, Lucas passou pela primeira cirurgia, que começou por volta das 9h e terminou depois das 18h. Desse procedimento, saiu conectado à terapia por ECMO (Oxigenação por Membrana Extracorpórea), em função do seu comprometimento cardíaco e pulmonar. No total, a primeira internação do menino durou 126 dias, com passagens pela Unidade de Terapia Intensiva (UTI), outras cirurgias, altos e baixos. 

Quando a função pulmonar se estabilizou, Lucas pode ir para casa, mas continuou se alimentando por sonda, devido ao problema no esôfago.  

— Mudou tudo na vida dele. Não podia se alimentar pela boca, só pela sonda, não podia ir para a escola. Então, para ele, foi bem complicado. Ele perdeu um ano letivo inteiro e sentia falta da escola — relata Eduarda, que é mãe de outras duas meninas, uma de seis e outra de 10 anos.  

E a rotina da família também mudou, por conta das restrições relacionadas ao menino. Eduarda lembra que, antes do acidente, tinham o costume de acampar, fazer trilha e tomar banho de rio e mar. Nesse verão, no entanto, tudo precisou ser readaptado.

Há cerca de dois meses, Lucas internou para uma nova cirurgia, que tinha como objetivo fazer com que voltasse a comer normalmente. O procedimento foi realizado em 16 de março e durou cerca de sete horas. Durante a cirurgia, o menino teve uma hemorragia e uma parada cardíaca, que quase causaram sua morte. Assim, precisou ficar entubado na UTI. 

Após superar complicações, Lucas conseguiu voltar a se alimentar normalmente na semana passada. Conforme Eduarda, o primeiro alimento que o menino ingeriu pela boca foi uma gelatina — algo bem diferente do que ele responde quando questionado sobre o que mais gosta de comer. 

— Batata frita! Aqui só dão batata cozida, mas gosto de todos os tipos de batata. Eu não gosto só de uma coisa que me persegue aqui: abóbora — conta Lucas.

A mãe comenta que a experiência foi assustadora, mas garante que sempre confiou muito no trabalho dos médicos e que teve muitos aprendizados. Além disso, confessa que não esperava pela alta, que veio na antevéspera do Dia das Mães, permitindo que eles não tivessem que passar a data no hospital pelo segundo ano consecutivo:

— Para mim, ele voltar a comer foi a última etapa, a última coisa que ele precisava passar. E eu adoro vê-lo comendo. Agora, o maior prazer que eu vou ter será fazer a comida dele e ele poder comer as coisas que gosta. E agora vejo um monte de coisa diferente, aprendi aqui a ter um pouco mais de paciência, a ser um pouco mais tolerante. Mudou muita coisa na nossa vida e é uma coisa que vai ficar para sempre. 

Os momentos no hospital foram tão marcantes que, em dezembro do ano passado, Eduarda decidiu tatuar uma foto do filho no braço, junto com a data da primeira internação e a frase “me chamam de milagre”.  

— Essa foto representa que ele venceu aquela etapa, que ele estava conseguindo — resume. 

Mateus Bruxel / Agencia RBS
Menino Lucas Kaick (C) celebra junto aos cirurgiões pediátricos Rafael Deyl (E) e Júlio Espinel (D), a mãe dele, Eduarda de Oliveira Torelli, a enfermeira Victoria Siqueira (C, atrás) e a intensivista pediátrica Raíssa Rezende no hospital

“Foi o caso mais desafiador da minha vida”, diz cirurgião 

Júlio de Oliveira Espinel, cirurgião torácico pediátrico do Hospital da Criança Santo Antônio, comenta que o caso de Lucas mobilizou diferentes profissionais da instituição desde o início e que, no momento da transferência do Pronto Socorro, as equipes já estavam prontas para recebê-lo no bloco cirúrgico.  

— Essa criança chegou morrendo. Naquele momento inicial, tudo que tentamos fazer foi tentar corrigir aquele trauma, porque o caninho da comida, que é o esôfago, estava completamente rompido. Ele abriu inteiro, o que é uma lesão bastante incomum para uma batida fechada no peito. Além disso, o caninho que leva o ar para o pulmão, rompeu, e isso era o mais grave, porque não se conseguia colocar o ar por ventilação mecânica ou qualquer outra forma para chegar no pulmão na quantidade adequada — explica o especialista. 

De acordo com Espinel, a lesão no coração foi identificada durante a primeira cirurgia, quando Lucas teve uma parada cardíaca. Em função desses problemas, foi preciso utilizar a ECMO por um período, até que Lucas estivesse bem o suficiente para passar por novos procedimentos. 

— Inicialmente, cuidamos da parte respiratória. Depois, tínhamos que resolver a parte da comida, com a reconstrução do caninho, porque o natural foi perdido. Mas deixar uma criança condenada a não comer mais, a não ter o prazer de colocar comida na boca e engolir, era um negócio meio fora de questão — conta o cirurgião, relatando momentos de brincadeiras que toda a equipe tinha com o menino durante as internações. 

Mateus Bruxel / Agencia RBS
Lucas Kaick se despede da enfermeira Victoria Siqueira (D), e dos cirurgiões pediátricos Rafael Deyl (C) e Júlio Espinel (E)

Emocionado, Espinel afirma que o caso de Lucas lhe tocou de uma maneira diferente e que é muito bom ver o menino indo embora recuperado e se alimentando normalmente: 

— Foi o caso mais desafiador na minha vida. E a reação a isso foi me dedicar e tentar investir tudo que tinha de conhecimento, de possibilidades e extrair de cada um dos colegas o que eu sabia que tinham de melhor. Demandou uma energia, carinho, atenção, que arranca lágrimas. E agora ele está respirando, comendo, brincando.  

O chefe do Serviço de Cirurgia Pediátrica do Hospital da Criança Santo Antônio, Rafael Deyl, afirma que foi preciso deixar Lucas saudável, com a ajuda da alimentação por sonda, para que ele pudesse passar pela reconstrução do esôfago. Conforme o especialista, essa parte envolve, basicamente, fazer um tubo a partir do estômago até a região da boca, para que a pessoa possa voltar a comer normalmente.

— Na cirurgia dele, nós tivemos uma intercorrência muito grande, que foi esse sangramento, pelo trauma cardíaco anterior que ele teve. Mas todo mundo fez o que tinha que fazer no momento certo e ele foi para a UTI, fez transfusões, usou remédios, se recuperou, mas começou a vazar saliva. Então, depois disso, tivemos que fazer outros procedimentos menores para resolver o problema — diz. 

Para Deyl, a sensação de ver Lucas tendo alta se resume em gratidão por toda a equipe que trabalhou junto para salvá-lo. A felicidade também é compartilhada por Raíssa Rezende, intensivista pediátrica da instituição, que acompanhou o menino em diferentes momentos. 

Segundo a médica, a questão de voltar a se alimentar pela boca sempre foi muito importante para Lucas. Por isso, o insucesso inicial da cirurgia de reconstrução foi frustrante:

— Ele falava que a gente havia mentido para ele. Então, foi muito doído. E agora, vendo ele ir embora comendo pela boca não tem preço, porque agora sabemos que ele está indo do jeito que queria. Antes ele estava saudável, podia brincar, mas não estava pleno.


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