Polícia



Após cinco anos

"Parei de pedir justiça e fui buscar minha saúde mental", diz motorista de Uber espancado por taxistas em 2015

Quatro acusados devem ir a júri por tentativa de homicídio, mas ainda não há data definida

11/11/2020 - 09h24min


Jéssica Rebeca Weber
Jéssica Rebeca Weber
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Mateus Bruxel / Agencia RBS
Aos 47 anos, Bráulio só quer "trabalhar e ter a cabeça em paz"

No estacionamento de um supermercado no Partenon, encurralado dentro do próprio carro, Bráulio Escobar achou que ia morrer. Por mais de 10 minutos, um grupo de taxistas espancou o motorista de aplicativo no rosto e na cabeça com socos, chutes, pontapés, utilizando também um guarda-chuva na agressão. 

O crime aconteceu em 26 de novembro de 2015. A Uber tinha recém chegado em Porto Alegre, e o caso acabou personificando o conflito entre o novo serviço e o táxi — modelo de transporte que até então não tinha concorrência na cidade. Quatro agressores foram pronunciados e devem ir a júri acusados de tentativa de homicídio (leia mais abaixo). 

Bráulio já imaginava que algum jornal o procuraria às vésperas do episódio completar cinco anos. Já viu várias reportagens de “aniversário” de crime, com a vítima chorando. Mas destaca que não quer ser essa pessoa. 

— Não quero ser mais um clamando por uma coisa que não vai acontecer. Parei de pedir justiça e fui buscar minha saúde mental — diz o motorista de 47 anos, que em um primeiro momento negou o pedido de entrevista, mas reconsiderou.  

A reportagem de GZH voltou para a casa onde entrevistou Bráulio da primeira vez, que agora tem cerca elétrica e câmeras de vigilância. Ele destaca que está bem, mas admite:

— Isso muda a vida, eu sou um cara bem desconfiado. 

Por meio das entrevistas, o motorista precisou reviver, durante meses, o dia em que pegou um passageiro na Cristóvão Colombo e acabou no hospital, com o rosto quase desfigurado — caiu em uma armadilha de taxistas, que culminou no espancamento no estacionamento do Carrefour da Avenida Bento Gonçalves. Via táxis estacionando na frente da sua casa e não sabia se era alguém tentando lhe intimidar ou “coisa da sua cabeça”. 

Nove meses depois, ficou quatro horas em audiência para contar como tudo aconteceu — e reclama que os advogados dos réus fizeram o possível para o desmoralizar, saindo “abalado”. Ele passou então a acompanhar o processo com lupa. Até uns dois anos atrás, quando decidiu que tentaria esquecer o caso:

— Para conseguir viver normalmente, eu larguei de mão. 

Mateus Bruxel / Agencia RBS
Foto de 2015, após as agressões

Bráulio segue sendo cadastrado como motorista do Uber e se orgulha de ter nota 4,8. Também fez uns bicos entregando rancho para idosos e trabalhou com agências, fazendo viagens de turismo e transporte para eventos. Até na cozinha, ele se meteu: vendeu um prato de rocambole de carne, que apelidou de “rocambráulio”. 

Mas, durante a pandemia, tem focado em trabalhos de tradução — Bráulio já morou em Londres, na Finlândia, em Lisboa, em Milão, entre outros lugares — e colaborado de forma virtual para uma empresa que faz serviços de verificação de buscas do Google. Ele recusou alguns convites de partidos para se candidatar a vereador.

Mais jovem, teve uma carreira em suporte técnico, sempre relacionado à tecnologia. Mas já faz tempo que não tem um trabalho formal. Diz que seu sonho, hoje, é ter um emprego com Fundo de Garantia e férias. Trabalhando com o público, de preferência, porque é o que sempre amou. Se não for possível, quer “continuar fazendo as coisas que faz bem e inventando”: 

— Quero trabalhar e quero a minha cabeça em paz. 

Mateus Bruxel / Agencia RBS
Bráulio diz que hoje é uma pessoa mais desconfiada

Cinco anos depois, nenhum agressor está preso 

Cinco anos após a tentativa de homicídio, nenhum dos agressores de Bráulio está preso. Até mesmo Cauê Cavalheiro Varella e Alexsandro dos Santos Scheffer, que foram presos em flagrante e encaminhados ao Presídio Central logo após as agressões, respondem em liberdade.

Além de Varella e Scheffer, outros dois homens devem ser levados a júri: Maurício dos Santos Nunes e Valderi Machado Silveira. Quatro suspeitos foram impronunciados, ou seja, a Justiça concluiu que não havia elementos suficientes para levá-los a julgamento pelo Tribunal do Júri.

A sentença de pronúncia, onde a juíza Cristiane Busatto Zardo, da 2ª Vara do Júri do Foro Central, decide pelo encaminhamento ao júri, saiu em setembro do ano passado, mas ainda não há previsão de data para o julgamento. É que ainda falta o Tribunal de Justiça avaliar recursos dos pronunciados — aguarda-se a intimação de um réu impronunciado, que não foi encontrado. 

Segundo o Tribunal de Justiça, a demora se deve à interrupção dos cumprimentos de mandados por oficiais de justiça quando começou a pandemia de coronavírus.

O sexto promotor de Justiça do Tribunal do Júri de Porto Alegre, Luiz Eduardo de Oliveira Azevedo, explica que a decisão agora passará por uma câmara de três desembargadores, que poderão acatar o encaminhamento a júri.

O promotor explica que os acusados devem responder por tentativa de homicídio qualificado por motivo torpe (porque dirigindo pelo aplicativo, acreditavam que a vítima podia diminuir as receitas deles) e meio cruel (com socos, tapas, chutes, pontapés, sobretudo, na cabeça). A pena prevista é de 12 a 30 anos, com a provável redução de um terço por não terem consumado o homicídio.

Porto Alegre ainda não tem regulamentação da atividade

O crime ocorreu exatamente uma semana após a Uber chegar em Porto Alegre. A empresa foi a primeira a trazer a tecnologia do aplicativo, com preços bem mais baixos do que os do táxi e serviço considerado superior na época. 

A resistência dos poderes Legislativo e Executivo foi imediata, com o argumento de que não era um serviço regulamentado pelo poder público. Vereadores aprovaram projeto para tornar ilegal aplicativo tipo Uber na Capital, e o prefeito na época, José Fortunati, declarou em entrevista que Porto Alegre não era “terra de ninguém”. A EPTC chegava a solicitar corridas para conduzir os motoristas a uma blitz e apreender o veículo. 

O número de usuários aumentava, apesar de tudo isso. Logo outras empresas de aplicativo de transporte começaram operações em Porto Alegre, a exemplo de Cabify e 99.

Depois de cinco anos, a Capital ainda não conseguiu garantir sua própria regulamentação do serviço. A primeira versão da lei, de 2016, desagradava as empresas, que as taxavam de inconstitucionais e diziam que tornariam o serviço ineficiente. Houve uma revisão em 2018, elogiada pelos aplicativos. 

Mas o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do RS considerou inconstitucionais 18 dispositivos da lei, atendendo a ação movida pelo partido Novo. Por isso, os motoristas de aplicativo seguem circulando pela cidade sem que o poder público consiga regulamentar. Na prática, a EPTC encara o veículo como qualquer outro carro particular na fiscalização, com verificação de carteira de habilidade, licenciamento, pneu careca e o que mais rege o Código de Trânsito Brasileiro. Há uma normatização em nível federal, porém: em março de 2018, a Lei nº 13.640 regulamentou a atividade e definiu que o motorista desses aplicativos deve possuir uma versão da carteira nacional de habilitação na categoria B ou superior, que informe que exerce atividade remunerada. Outros pré-requisitos para obter a permissão são manter em dia o certificado de registro e licenciamento de veículo e apresentar certidão negativa de antecedentes criminais. 

Com perda de boa parte dos clientes, a categoria de taxistas precisou se reinventar em Porto Alegre, lançando seus próprios aplicativos. Uma lei foi sancionada em 2018, prevendo, entre várias coisas, pagamento com cartão de crédito e débito, descontos por meio dos aplicativos, padrão de vestimenta (bermuda e calçados abertos foram vetados) e a análise da ficha criminal dos motoristas. 



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