Polícia



Um ano depois

Pai de adolescente assassinado em Porto Alegre projeta criar ONG para ajudar moradores de rua

Kauê Borile Weirich Xavier, 16 anos, foi morto em 25 de março do ano passado

24/03/2021 - 07h00min

Atualizada em: 24/03/2021 - 07h01min


Leticia Mendes
Lauro Alves / Agencia RBS
Jacques Vianna Xavier quer dar sequência às iniciativas solidárias do filho

Por vezes, Jacques Vianna Xavier, 50 anos, veste uma das roupas deixadas pelo filho e caminha pelas ruas de Porto Alegre. Tenta imaginar quais caminhos Kauê Borile Weirich Xavier percorreria, o que estaria pensando e com quem falaria. É uma das formas de lidar com o vazio deixado pela perda do garoto, assassinado aos 16 anos na zona sul da Capital por dois adolescentes, que seguem internados. Um ano após o crime, o advogado busca de certa forma dar sequência aos passos de Kauê. Projeta criar uma ONG para auxiliar moradores de rua, algo que o filho costumava fazer.

Da janela do escritório de advocacia na Avenida Borges de Medeiros, no Centro Histórico, o pai vê do lado de fora alguns dos moradores de rua que o filho ajudava. Conhece a maioria pelo nome e é com eles que mais fala sobre o adolescente. Recorda das tantas vezes em que o garoto sumia com as comidas da geladeira ou quando doava as próprias roupas. Em uma delas, deparou com um homem que estava com frio, tirou o moletom do colégio e entregou.

— Eu disse: “Kauê, era só ter dado outro, que não o do colégio”. Ele me respondeu: “Mas ele estava com frio naquela hora. Se eu fosse para a aula, voltasse, até dar outro moletom, ele ia passar frio por horas”. E ele estava certo. O Kauê era assim. Não se importava em tirar dele mesmo. Estava sempre pensando nos outros — recorda o pai.

Após a perda, familiares chegaram a organizar durante meses doações de alimentos para pessoas carentes. Faziam as entregas vestindo camisetas com a foto de Kauê.

O pai tenta agora reunir forças para criar uma instituição que mantenha as iniciativas de forma permanente – o projeto ainda está no início. A ideia é batizar a iniciativa com o nome do adolescente. Inspira-se, por exemplo, na Fundação Thiago de Moraes Gonzaga – Vida Urgente, criada pelo casal Diza e Régis Gonzaga também após a perda do filho, aos 18 anos, em um acidente de trânsito na Capital, em 20 de maio de 1995.

Jacques acredita que seguir este caminho seria uma forma de dar sequência ao que o filho defendia.

— Sempre que vou dar uma ajuda para algum morador de rua, lembro da crítica dele. Dizia que dar R$2 para uma pessoa era muito feio. “O que a pessoa vai comprar com isso, pai?” Tinha que dar no mínimo R$ 10. Não quero que ele caia no esquecimento porque era uma pessoa muito especial. Dizia para ele que a melhor forma de ser lembrado é fazer uma coisa boa pela humanidade. Isso que queria para o meu filho. Que fosse uma pessoa dedicada aos outros. Para ser lembrado pelas coisas boas que fez — recorda.

Ao mesmo tempo em que buscam seguir em frente, os familiares tentam lidar com o efeito devastador da perda. Os pais e as irmãs passam por tratamento psicológico e psiquiátrico desde o ano passado. A mãe e a caçula acabaram deixando Porto Alegre, para viver num local onde as lembranças não fossem tão latentes.

Arquivo Pessoal / Arquivo Pessoal
Kauê Borile Weirich Xavier

Kauê deveria ter sido padrinho do sobrinho (filho da irmã mais velha), que nasceu em maio do ano passado, e teria completado 17 anos em janeiro. Neste ano, deveria ter ingressado na faculdade, mas não teve tempo nem de optar entre a carreira musical ou talvez a advocacia.

— Meu sobrinho entrou na faculdade, e eu não consegui dar parabéns para ele e meu irmão. Não consigo. Nós fizemos planos para uma vida inteira. Para ver o Kauê se formar numa faculdade, namorar, casar, ter filhos. E isso não vai acontecer mais. É a coisa mais triste e sofrida que pode existir na vida de um pai e uma mãe — desabafa o pai.

Jacques diz que, ao mesmo tempo em que tenta vencer o sofrimento, não quer deixar as lembranças do filho esquecidas. E isso se revela nos gestos dentro do apartamento onde vivia com o garoto. Por vezes cobre a guitarra de Kauê com um lençol e esconde as fotografias nas gavetas. Em outras, mergulha nos cadernos do garoto, lendo suas poesias e composições, devolve os porta-retratos aos lugares e usa as camisetas do filho para andar pela cidade.

— Me coloco no lugar dele na rua. Fico lembrando dele, dessa forma amorosa. Mas é muito difícil acordar todo dia com esse sofrimento. Essa sensação de vazio acompanha a gente todos os dias. Parece que foi ontem que aconteceu tudo. É muita saudade e um tipo de dor que não passa nunca — descreve.

Crime planejado

Uma das conclusões sobre o assassinato de Kauê apontou que os dois adolescentes planejaram a morte ao longo de pelo menos três meses. Esse é um dos pontos que a família considera ainda mais dolorosos. 

Kauê era amigo próximo de um dos garotos que confessou o crime. Estudaram na mesma escola, no Ensino Fundamental. No 9º ano, Kauê seguiu para um colégio particular na área central da Capital, onde estava cursando o 1º ano do Ensino Médio. Mesmo não estando mais na mesma escola, os dois mantinham contato.

— Foi algo brutal, sem explicação. Não foi uma fatalidade. Planejaram por muito tempo fazer isso com ele. Pessoas que a gente recebeu na nossa casa, tratou bem. E agora vão ficar dois ou três anos e sair. É muito injusto — diz o pai.

Na manhã de 25 de março de 2020, dia do crime, Kauê estava na casa do pai. Dormia na cama dele, quando o advogado saiu para trabalhar. Em razão da pandemia, o garoto estava com as aulas presenciais suspensas, mas prometeu que ficaria em casa. No fim da tarde, no entanto, rumou com os outros dois em direção à Zona Sul.

Foram de ônibus até uma área que dava acesso a um matagal no bairro Aberta dos Morros. Lá, segundo o relato dos próprios adolescentes, Kauê foi atacado com golpes de machadinha, martelo e faca de cozinha, que estavam escondidos na mochila de um deles.

Polícia Civil / Divulgação
Policiais em buscas no local onde corpo foi encontrado

O assassinato foi descoberto à noite, depois que um dos envolvidos, um adolescente de 16 anos, procurou a Brigada Militar, no bairro Menino Deus. Machucado e com as roupas rasgadas, contou aos policiais que havia cometido um homicídio na Zona Sul. Relatou que, junto de um amigo de 15 anos, havia assassinado Kauê. A história brutal fez os policiais cogitarem que poderia não ser verídica, até encontrarem o corpo do adolescente desfigurado no matagal.

A partir do primeiro adolescente, a polícia chegou ao segundo. Era o que mantinha a relação mais próxima com Kauê. Na época, os dois alegaram à polícia que o crime teria acontecido por ciúmes, porque a vítima teria se envolvido com a namorada de um deles. O pai não acredita nesta versão. Diz que o adolescente demonstrava ter inveja do filho e suspeita que o crime tenha sido motivado por isso.

— É como se ele quisesse tirar tudo que o Kauê tinha. Planejar a morte de um guri maravilhoso. Não tem explicação. Não tem como aceitar. Ninguém tem direito de ir lá e decidir eu vou lá para matar. A indignação maior é a banalidade da situação — diz o pai.

Naquele 25 de março, Jacques havia pago o primeiro boleto de contribuição com o Médico Sem Fronteiras, após pedidos insistentes do filho para que se tornassem doadores. O pai chegou a depositar sobre a mesa de casa o recibo, na expectativa de ver a reação do filho, algo que nunca aconteceu. Hoje, em seu escritório, o advogado recebeu um calendário do programa que completa 50 anos de ajuda médica e humanitária. Promete que, em nome de Kauê, nunca deixará de ser doador.

O processo

Por envolver adolescentes, o processo anda de forma mais célere. Ainda em abril do ano passado, foi realizada a audiência, na qual foram ouvidas todas as testemunhas. No dia 8 de maio, pouco mais de um mês após o crime, a Justiça decidiu que os dois adolescentes devem cumprir medida socioeducativa de internação pelo homicídio qualificado.

A defesa chegou a recorrer, mas foi mantida a sentença. Os dois continuam internados – a medida é reavaliada periodicamente, podendo se estender por até três anos. O Ministério Público informou que não se manifesta sobre o caso, em razão do segredo de Justiça.

O que diz a defesa

Os dois adolescentes são atendidos pela Defensoria Pública do Estado. O órgão confirmou que está realizando o acompanhamento do caso e que os dois continuam internados para cumprir medida socioeducativa, sem possibilidade de atividades externas.

“Os defensores realizam, periodicamente, o atendimento aos dois junto às respectivas unidades, avaliando o comportamento e o seu progresso durante o cumprimento da medida, para que, futuramente, possam ser reinseridos na sociedade, conforme preconizam a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente”, afirma a manifestação.


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