Polícia



Pesquisa da ONU

Negro, jovem e tatuado: as características que mais motivam abordagens policiais na Grande Porto Alegre

Levantamento que revela motivação de agentes da segurança foi feito a partir de parceria do Estado com a Organização das Nações Unidas

22/05/2023 - 11h04min

Atualizada em: 22/05/2023 - 11h05min


Gabriel Jacobsen
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Lucas Abati
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André Ávila / Agencia RBS

Ser negro, jovem e tatuado são as três características mais percebidas como suspeitas por um grupo de policiais gaúchos para justificar abordagens em seis territórios com alto índice de violência na Região Metropolitana. A pesquisa, coordenada por um braço da Organização das Nações Unidas (ONU), revela como ocorre a tomada de decisão para a abordagem, pela voz dos próprios agentes de segurança pública.

O relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC) que revela essa pesquisa foi divulgado no início de 2023. São 40 páginas que detalham ações e resultados de um trabalho de oito anos sobre o uso da força e o cumprimento de normas por parte de policiais da Capital, de Alvorada e de Viamão.

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Um questionário sobre a rotina de trabalho foi enviado para os policiais militares e civis dos territórios analisados. A principal questão destacada no relatório foi: 

"Na sua atuação profissional cotidiana (...), o quanto as características abaixo são compreendidas como suspeitas a ponto de gerar uma abordagem?". A partir das respostas dos policiais, os pesquisadores montaram um ranking. A característica "ser negro" foi aquela mais respondida como suspeita pelos policiais para justificar uma abordagem. Em uma escala de 0 a 3,5, teve peso 2,95. A característica menos relevante foi "parecer estar vendendo drogas" — com peso 1,15.

— O que chama atenção é que justamente essas características identitárias acabam tendo um peso maior do que, inclusive, aspectos que poderiam estar associados à prática de algum delito ou de alguma violência. Esse não é um fenômeno gaúcho, esse é um fenômeno mundial — afirma Eduardo Pazinato, coordenador da pesquisa e do setor Anticorrupção e Integridade do UNODC no Brasil.

A pesquisa foi realizadas nos seguintes territórios: Umbu-Salomé, em Alvorada; Santa Cecília, em Viamão; e nos bairros Cruzeiro, Restinga, Lomba do Pinheiro e Rubem Berta, em Porto Alegre.

O questionário com 30 perguntas sobre atividade de policiamento e percepção social foi enviado pelo governo do Estado para 400 servidores desses territórios (320 da BM e 80 da Polícia Civil). Foi respondido, de forma anônima, por 113 agentes.

O uso da "intuição" na atividade policial é um dos motivos que justificam o resultado da pesquisa, segundo o tenente-coronel Roberto dos Santos Donato, oficial da Brigada Militar que atuou como ponte entre os pesquisadores da UNODC e o governo do Estado. Na avaliação de Donato, é preciso adotar mais critérios técnicos para definir ações policiais.

— A gente hoje trabalha (nas abordagens) vez por intuição, vez por ciência de dados. Há cinco, 10 anos a gente trabalhava exclusivamente por intuição: era o que a gente via na rua, o que estava disposto ali — explica o tenente-coronel.

O que motiva uma abordagem gera desdobramentos não apenas sociais, mas também jurídicos. O Poder Judiciário consolidou o entendimento de que são ilícitas as abordagens policiais sem uma suspeita fundamentada.

— Atitude suspeita, para mim, é uma coisa, para outra pessoa pode ser outra coisa. Enfim, o policial tem de traduzir no processo por que fez aquela abordagem — acrescenta o promotor Marcos Centeno, responsável pela Promotoria de Controle Externo da Atividade Policial.

A questão central para que uma abordagem seja considerada ilícita envolve a seletividade, isto é, se o alvo da polícia foi escolhido por critérios objetivos, subjetivos ou aleatórios.

— Tem várias pessoas sentadas em bancos na praça. Aí, alguém está em atitude suspeita. Por quê? Pela vestimenta? Pelo seu fenótipo? Pelo seu tipo físico? O que leva alguém a suspeitar desse indivíduo? A polícia tem de descrever. Porque, senão, ficamos com uma abertura grande para abordar qualquer pessoa — exemplifica o desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Sergio Blattes.

"Muita gente diz que quem tem tatuagem no rosto é bandido"

Uma das seis áreas analisadas pelo Escritório da ONU é a Restinga, bairro com 60 mil habitantes no extremo sul de Porto Alegre. É nesta região da Capital que Vinícius Prestes, 19 anos, vive desde a infância e onde acumula recordações de abordagens policiais que ele avalia como inexplicáveis.

— Eu sou negro, sou tatuado, sou da favela, tenho tatuagem no rosto, né? Muita gente diz que quem tem tatuagem no rosto é bandido. Mas não, eu tenho tatuagem no rosto, eu tenho o nome do meu avô tatuado no rosto. Tudo que eu tenho no meu corpo tem significado — conta o estudante de curso técnico federal.

O jovem conta que, quando está de mochila, isso chama mais atenção dos agentes da segurança pública.

— Já é um fato grande eu ser morador da Restinga, eu ser negro, né? Do meu andar, das pessoas que eu convivo, o fato de eu morar numa área que tem bocas de tráfico, né? Então, eles vêm de fora e o trabalho deles é recolher, né? "O que tem na mochila dele? O que que tem no telefone dele? Tem foto de arma no telefone?" — reflete Vinícius.

Problema histórico

O dado revelado pela pesquisa e o relato do jovem podem ser atribuídos a um problema histórico, relacionado ao que hoje é classificado como racismo estrutural e institucional. O dirigente do Núcleo de Igualdade Racial da Defensoria Pública do Estado, Andrey Régis de Melo, descreve que o controle imposto aos negros pós-abolição da escravatura, em 1888, se reflete nos dias atuais.

— O Brasil pós-abolição decide fazer um controle dos corpos negros. A gente encontra, em livros de história, documentos sobre a necessidade de abordar negros libertos nas vias públicas. Isso se perpetua, e a gente percebe que existe uma construção social do suspeito de uma forma racializada — contextualiza.

Ou seja, mesmo que não exista orientação aos agentes para usarem tais critérios para abordagens, a carga histórica forma um entendimento subjetivo para determinar quais características são suspeitas.

Para o coordenador da pesquisa do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes,  Eduardo Pazinato, as abordagens reproduzem "pré-conceitos" que estão difusos na sociedade, e não são exclusividade das polícias.

— Podemos ter aprimoramentos nas corporações policiais que ajudem a desconstruir essa cultura racista, punitivista, que muitas vezes orienta o fazer policial. Mas, obviamente, as mudanças de natureza estrutural vão demandar um tempo maior e têm de envolver o conjunto da sociedade. Nós temos uma sociedade em que racismo estrutural, machismo e questões de gênero ainda são desafios. Isso acaba nas polícias — aponta Pazinato.

O oficial da Brigada Militar que participou dos oito anos de pesquisa, tenente-coronel Donato, também entende que a polícia reflete a cultura da sociedade, mas refuta a ideia de que os dados revelem que os agentes atuam com preconceito.

— Somos preconceituosos? Eu entendo que não. A gente reflete de forma intuitiva o que a sociedade escreve, fala, publica e tem por base. Abordamos as pessoas que estão na rua, que estão fazendo as suas atividades, que estão envoltas em algum delito ou não. Representamos a sociedade nesse aspecto — completa o tenente-coronel Donato.

O relatório do Escritório da ONU também sugere três pontos para qualificar a polícia e os dados sobre segurança no Rio Grande do Sul, entre os quais está a divulgação periódica de letalidade policial e mortes de servidores em serviço.

O convênio do Estado com o Escritório da ONU produziu efeitos práticos ao longo dos últimos oito anos, entre eles a formação de policiais em direitos humanos e o atendimento de grupos vulneráveis. Equipamentos, como as bases móveis, também foram adquiridos para reforçar a estratégia de policiamento comunitário nessas seis áreas.


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