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Série especial

Eles são invisíveis, mas têm cara

Nas fontes oficiais, eles são números. No discurso, viraram invisíveis. Mas como vivem e quem são as pessoas que estão abaixo da linha da pobreza na Capital?

17/04/2013 - 07h23min

Atualizada em: 17/04/2013 - 07h23min


Alessandro (E), Maria, Rosa, Adão e João (frente): família sem renda vive de doações – sobram roupas velhas, falta comida

Para revelar a realidade de um país que luta para escapar da miséria, o Diário Gaúcho conviveu por três semanas com famílias nessa situação. De hoje até sexta-feira, mostramos o rosto dos invisíveis em páginas no jornal, em webdocumentário e em galeria de fotos no site.

GALERIA: Veja mais fotos de como vivem os Invisíveis

Espalhadas pelo Brasil, 700 mil famílias ainda seguem fora dos programas sociais. São 2,5 milhões de pessoas (1,3% da população) consideradas invisíveis pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). A elas faltam endereço, documentos, perspectivas de vida. E sobram mazelas. Cidadãos que teriam direito a receber, no mínimo, R$ 70 por mês pelo Bolsa Família. Porém, sem informação e não procuradas por órgãos oficiais, vivem de esmolas de desconhecidos e doações de parentes, amigos ou vizinhos.

Em Porto Alegre, uma legião de pessoas vive nessa situação, ainda que a Capital seja a primeira no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), medido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, entre as 13 maiores cidades do Brasil. Pelo Censo de 2010, 1% das pessoas (13.642) ganharia, por mês, menos de R$ 70.

São os invisíveis.

Na sexta-feira passada, em discurso na Capital ao lado da presidente Dilma Rousseff,
a ministra do MDS, Tereza Campello, reforçou que o maior desafio do governo federal,
em parceria com Estados e municípios, é a busca dos que não estão no Cadastro Único.

O mutirão estadual, em Porto Alegre, deve começar em junho. A reportagem do Diário cruzou a Capital durante três semanas e achou os invisíveis. Trilhamos 800km, conversamos com 130 pessoas, fizemos 2 mil fotos e quatro horas de filmagens em 14 vilas de oito bairros. Entre hoje e sexta-feira, diferentes histórias de invisibilidade da Capital estarão estampadas no jornal.

Eles existem

São os olhos marejados do ex-jóquei amador Adão Jesus César de César, 58 anos, que expressam a dor do bolso vazio. Há dez anos, ele, a mulher, Maria Helena, 50 anos, e os quatro filhos - Rosa Maria, dez, João Pedro, 12, Rodrigo, 16, e Alessandro, 20 anos, vivem num casebre de madeira construído para ser um estábulo na Vila Chácara do Banco, no Bairro Restinga, Sul da Capital. O local mais espaçoso fica para o cavalo de estimação.

Mesmo morando na principal avenida da região e vizinha de terreno de um famoso jogador de futebol, a família de Adão está entre as milhares que o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza (MDS) não encontra para incluir no Cadastro Único (dá acesso ao Bolsa Família).

Fazem parte da faixa da "extrema pobreza": abaixo de R$ 70 mensais por pessoa. Até março, Adão ganhava R$ 60 fixos para cuidar de um cavalo (o que dava R$ 0,33 por dia para cada integrante da família). Dias atrás, o dono do animal despediu Adão:

- Não temos dinheiro nem pro ônibus para refazer os CPFs. Por isso, não procuramos o Bolsa Família. Vivemos de doações.

Roupas são a maior parte dos sacos despejados no terreno deles. A quantidade é tanta, que estão amontoadas até o teto num canto do quarto onde dorme toda a família. Os vizinhos costumam doar sapatos. A maioria chega rasgado ou sem sola.

- A gente precisa é de comida - ressalta Maria, apoiada pelo pequeno João, que usa um chinelo preto e outro rosa (os que cabem nos pés).

Assim como eles, Vanessa Oliveira Bandeira, 25 anos, é invisível ao poder público, vivendo numa peça de compensado na Vila Maria da Conceição, no Bairro Partenon, Zona Leste. Mãe de Victor, um ano, Bryan, quatro, e de Emily, dez anos, Vanessa, mulher de olhar lacrimoso, espera o direito ao Bolsa Família desde 2012. Depois de perder o marido (morto na cadeia), a casa de madeira de cinco cômodos (apodrecida pelo tempo) e o emprego de industriária, Vanessa lamenta:

- Sem renda, dependo de parentes. Penso: até quando vou viver assim?

Já a doméstica desempregada Núbia Nunes Cordeiro, 24 anos, da Vila Elo Perdido, no Bairro Restinga, até sorri. O marido, pedreiro, vive de bicos e tem trazido cerca de R$ 400 por mês para o sustento dos filhos Fernanda, sete meses, Gabriel, três anos, Ketlen, cinco, e Kiane, oito. Os seis dividem uma peça de alvenaria, sem banheiro. Na cama de solteiro, Núbia se aperta com as quatro crianças. E o marido? Dorme em um sofá-cama.

- Apenas ganhamos para a comida. Se eu tivesse o Bolsa Família (na fila há oito meses), poderia comprar roupas, sem depender de doações. Quero trabalhar, mas não consigo creche para deixar os filhos - diz Núbia.

No Plano Brasil Sem Miséria, família com renda mensal menor que R$ 70 (R$ 2,30 por dia) por pessoa é taxada de EXTREMAMENTE POBRE. Famílias entre R$ 70 e R$ 140
por pessoa, por mês, são as POBRES.

ONU afirma que uma PESSOA NECESSITA pelo menos, US$ 1,25 (R$ 2,50) por dia PARA VIVER. Isto é R$ 75 por mês: R$ 5 acima do mínimo do Bolsa Família.

Na família de Adão, qualquer quantia vira festa, como quando o filho Alessandro ganha R$ 20 vendendo alvejante de porta em porta.

- Uma vez, vi uma nota de R$ 50. Mas nunca vimos uma de R$ 100 - relata Alessandro, que estudou até a sétima série.

Dinheiro também é luxo para Vanessa e Núbia. Na visita do Diário, sete dias depois do pagamento do marido, Núbia vibrava por ter R$ 2 para comprar o pão das crianças.

A renda

Segundo o Censo de 2010, cerca de 15 mil domicílios da Capital não tinham renda, incluindo os que sobreviviam apenas com benefícios. De acordo com o presidente da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), Kevin Krieger, o órgão se orienta por dados repassados pelo MDS e pelo Censo:

- Temos de chegar em áreas novas. Mas as pessoas também podem procurar os 22 Centros de Referência de Assistência Social (Cras) para se cadastrarem.

O secretário chefe da Casa Civil do Estado, Carlos Pestana, ressalta a Caravana da Inclusão do RS Mais Igual:

- É fundamental que as pessoas se cadastrem. Vou conversar com o prefeito José Fortunatti para que a Caravana comece em junho ou julho em Porto Alegre.

Para o professor de Economia da Pobreza da Ufrgs, Flávio Comim, que em 2007 participou de estudo sobre a pobreza na Capital, o tema vai além:

- Renda é importante, mas é um indicador imperfeito de bem-estar. Ao mirá-la, deixa-se o problema da resolução da pobreza para um programa de transferência de renda ou para o próprio indivíduo. E ele que se vire.

A comida

No caso dos de César, se virar como pode tem sido a forma de sobrevivência. Em dias considerados de sorte por Maria Helena, ela recolhe restos de frutas e verduras deixadas por feirantes num lixão irregular. Dependendo do que achar, alimenta até o cavalo, dois garnisés, 20 cachorros e sete gatos. Rosa e João vibram ao ver bananas e melancias. Acabam comendo também.

No dia em que a reportagem flagrou a família no lixo, João deu uma ideia:

- Dá para colocar no feijão ou numa sopa!

O pequeno carregava um repolho, tomates, caquis e duas melancias. Três bananas foram devoradas pelo caminho. É raro os de César almoçarem juntos. Maria Helena e o mais velho comem numa obra assistencial da igreja e levam comida para Adão e Rodrigo. Os dois mais novos aproveitam as refeições na escola.

A saúde e a educação

Atuando há dez anos em áreas carentes de Porto Alegre, o médico de família Fabiano Barrionuevo diz que a alimentação inadequada prejudica o desenvolvimento das pessoas:

- Na extrema pobreza, não se consegue comprar alimentos de qualidade. Catam comida no lixo. Isso afetará o desenvolvimento neurológico, o crescimento, o ganho de peso. O adulto desnutrido tem dificuldade de concentração e não vai conseguir trabalhar.

É o que acontece com a família de Adão. Ninguém completou os estudos ou consegue trabalho fixo. O filho Rodrigo deixou o colégio antes de aprender a ler. João Pedro está até hoje na primeira série do ensino fundamental. Rosa cursa a segunda série. Analfabeta, a mãe decidiu voltar à escola neste ano:

- Quero aprender a juntar as letras miudinhas.

O governo federal se baseou em três frentes para chegar ao valor de R$ 70: Objetivos do Milênio da Organização das Nações Unidas (Onu), Pesquisa de Orçamento Familiar do IBGE e pesquisas do Banco Mundial e da União Europeia.

O endereço

O que mais chama a atenção do professor Flávio Comim é a proximidade entre mundos extremos em Porto Alegre:

- A pobreza pode estar muito perto das pessoas, mas permanecer invisível. Quando você sai um pouco da Protásio (Avenida Protásio Alves) e passa pelo Bairro Bom Jesus, nas partes piores, há locais que nem os vizinhos conhecem. A inexistência de um endereço já condena os cidadãos a não terem uma certa inserção social ou direitos de cidadania.

Onde Núbia e outras 300 famílias moram há uma década, ruas e vielas não existem no mapa oficial da prefeitura. Por ser invasão no Bairro Restinga, o local é identificado por nomes que se consolidam de boca em boca. Isso impede, por exemplo, a chegada dos Correios, do saneamento básico e de água encanada. Aliás, Núbia sobe e desce diariamente 200m em um morro para buscar, num poço condenado, a água que servirá para todas as tarefas da casa e para o banho.

O banheiro

Por ser considerada obra cara e com serventia discutível para a família, o banheiro não foi construído na casa de Núbia. Dois baldes servem para as necessidades fisiológicas. Outro, é para o banho. Um aquecedor improvisado, com resistência de chuveiro e dois fios de cobre, esquenta a água. O risco de choque é enorme. Na rua, duas portas servem de biombo, imitando um box.

- Na hora do meu banho, aviso os vizinhos para saírem dos fundos. Se visitamos um parente, o primeiro lugar que as crianças querem ver é o banheiro - revela Núbia.

A situação não é diferente para Vanessa Bandeira e Adão Jesus César de César. A industriária usa o banheiro da casa da avó, que mora na mesma rua. À noite, já se acostumaram a não tê-lo.

Na casa do ex-jóquei, nem balde existe. É no mato que a família se alivia. A água, inclusive a usada para beber, vem da casa de vizinhos.

- Uma vez, tivemos uma patente. Depois, as tábuas apodreceram. O banho é de banheira. Tenho vontade de ter um banheiro. Uma casa boa. Mas a situação não deixa - queixa-se Adão.

O bolsa família

Mais informações? Procure o Cras mais próximo de sua casa.

O programa faz um cálculo para cada lar, numa somatória de itens. O primeiro é de R$ 70 para cada família que entra pela primeira vez, não tendo renda (seja casal, ou só pai ou só mãe ou responsável).

Além disso, cada filho vale um incremento, limitado a sete cotas - cinco de R$ 32 (de zero a 15 anos) e duas de R$ 38 (16 e 17 anos). Somando estes itens pode-se chegar, no máximo, a R$ 306.

No exemplo acima, teríamos um casal e sete filhos. Dividindo-se os R$ 306 por nove (moradores), resultam R$ 34. Pelo Bolsa, para deixar de ser extremamente pobre, ninguém pode ganhar menos do que R$ 70 por mês. Logo, há necessidade de nove complementos de R$ 36 (R$ 324). A conta final é R$ 306 + R$ 324 = R$ 630.

As exigências: vacinar crianças até sete anos, fazer pré-natal (gestantes), ter frequência escolar de 85% (de seis a 15 anos), 75% (16 e 17 anos) e presença de 85% em serviços socioeducativos oferecidos por prefeituras.


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