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O coelho e a tartaruga

Velocista de dia, andarilho à noite

Mesmo sem cama ou café da manhã, levanta, trabalha e vai treinar

18/05/2013 - 10h37min

Atualizada em: 18/05/2013 - 10h37min


O Diário Gaúcho conta hoje a história de um homem de 40 anos que vaga pela noite de Porto Alegre em busca de um lugar para dormir. É atleta master, corredor de provas rápidas de pista. Em 12 segundos, faz 100m.


Entre seus sonhos está o de representar o Brasil no campeonato mundial que a Capital sediará em outubro. Para chegar lá, terá de enfrentar sua maratona diária em busca de um teto, para a qual falta velocidade. Aliás, patina há três anos.


A seguir, sua história, os dramas, as glórias e os desafios.


A fábula


Era uma vez um coelho que provocou uma tartaruga. Intimou-a para uma corrida, abriu distância, resolveu dormir e só acordou a tempo de ver a lenta concorrente chegar em primeiro.Ainda criança, Júlio César de Jesus Barbosa ouviu esta história. E se via no papel da lebre, adorava correr. Deixava todos para trás na praia do Laranjal, em Pelotas. Ganhou a primeira medalha aos 13 anos. Outras tantas viriam.


Mas assim como na fábula, ele zombou da própria sorte. Parou para conhecer drogas e ficou à margem. Perdeu mais do que uma corrida: foi-se a família. Despejado do lar, não vê os quatro filhos e nem as três ex-mulheres desde 2010. Como num trágico passe de mágica, o Júlio-Coelho virou o Júlio-Tartaruga:


- Carrego minha casa nas costas, como faz a tartaruga. Estou há três anos nesta maratona na busca por um teto.


A pesar sobre os ombros diariamente estão roupas, produtos de higiene e uma carteira, com poucas moedas e cheia de documentos. Seu maior orgulho são as medalhas. No primeiro dia em que encontrou a reportagem, na Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), tinha 18. Juntas, pesavam meio quilo. Isso não te faz sentir-se mais cansado, tartaruga?


- Não, pelo contrário. São elas que me fazem levantar todos os dias. E cada vez eu quero mais.


O ônibus


E o que ele tem feito para conseguir um final feliz, assim como na fábula? Arrumou serviço, encontrou uma namorada, está dedicado aos treinos e diz estar sendo forte contra a tentação do crack. Antes de falar do presente e projetar o futuro, é preciso rebobinar esta história.


Júlio conta orgulhoso ter aprendido a ter coragem e disciplina com os pais, o tenente da BM Rui e a professora Neli. Na escola, porém, era preguiçoso. Se atrasava. Ao chegar na parada, era comum ver o ônibus já arrancando. Ao ver a cena que faz a maioria das pessoas se irritarem, o menino salivava. Mesmo sofrendo de asma, saía em disparada por um atalho pelo Balneário Santo Antônio. Em minutos estava em outra parada, com tempo de sobra para subir no mesmo coletivo.


- Esse era meu treino. E, às vezes, corria de chinelo ou descalço - relembra, sorridente.


A migração


Aos 19 anos, entrou para a Polícia do Exército. Ficou um ano. Com 1,64m, só ficava de guarda, dirigia carros e fazia serviços gerais. Em seguida, engravidou uma menina. Nasceu o Róberson. Mais três anos, outra namorada, e mais um filho: a Jhulie. Só com o primeiro grau completo, juntou dinheiro após ser gari e entregador de jornal e trocou Pelotas por Novo Hamburgo em 1999. No Vale do Sinos, foi lixeiro:


- Era uma profissão interessante para quem gosta de correr. Fazia exercícios completos.


Além disso, fez uma poupança como pedreiro. Morando com uma mulher, Júlio honrou seu estilo coelho e teve mais dois filhos: Maria, hoje com nove anos, e Kennedy, seis.


Nessa época, o atletismo não vivia dias de glória. Eram raras as competições e ele fraquejou.


- Já tinha experimentado maconha, no Laranjal. Sabe como é, gurizada que vive na praia... Mas nunca fui viciado. Achei que, com o crack seria a mesma coisa. Mas foi um tombo terrível.


O abismo


Júlio conta que, em pouco tempo, a vida virou um inferno. Em vez de comprar comida para os filhos, gastava para fumar a pedra. Vendeu uma moto para sustentar o vício. Antes que depenasse a casa, ele foi despejado pela família. Neste dia de 2010, veio a metamorfose. O coelho virou tartaruga e começou a maratona, até hoje, sem linha de chegada. O primeiro passo foi migrar a Porto Alegre. Mesmo sem rumo, sem emprego e sem teto, não desistiu do atletismo. Ganhou um par de tênis para treinar no Centro Estadual de Treinamento Esportivo (Cete), no Menino Deus.


Aos poucos, foi fazendo amigos. A chegada da noite, contudo, era cruel. Com papelão fazendo as vezes de colchão e sem comida, o andarilho perdia a corrida para o vício.


- Teve uma vez em que fumei crack a noite toda. Estava sob uma aba de um prédio que ficava perto de onde eu teria uma competição.


Ao amanhecer, um conhecido o interrogou:


- Não vai para pista hoje, rapaz?


- Vou, sim. Me espera lá.


A retomada


E Júlio foi. Mesmo de estômago vazio e pulmão cheio de fumaça de crack, chegou em segundo lugar. A batida da medalha de prata no peito reacendeu nele a sina de abandonar a vida de andarilho. Mas foi um episódio ainda bem menos nobre que o fez mudar de rumo. Na companhia de amigos, sofreu uma emboscada em Canoas. Teve arma apontada na cabeça. Acha que eram traficantes. Não lembra direito como saiu da mira do revólver:


- Só sei que corri até Porto Alegre pela BR-116. Fosse uma meia maratona, teria ganhado medalha de ouro.


No Lami, teve guarida em comunidade terapêutica. Garante ter ficado internado por um ano e ter encontrado forças na religião para abandonar o vício.

 

Confira o vídeo com o corredor Júlio César:

 


O serviço


Revigorado, Júlio começou a procurar abrigo em albergues, especialmente o Dias da Cruz. Fez amizades. No Cete, achou apoio em colegas e orientadores. Em especial, do professor Carlos Pinheiro:


- Para as condições de vida dele, o Júlio é um atleta fenomenal. Claro que está longe de ter alto rendimento, mas sua dedicação ao esporte é um exemplo para muitos jovens que têm dinheiro e dom, mas falta persistência.


Naquela tarde, ao chegar no Cete, Júlio foi abordado por dois meninos de dez anos.


- Ô, tio, tu tá sempre aqui. Tu trabalha?


- Sim, sou facilitador da Fasc.


- O que é isso?


- Ajudo a prefeitura a conhecer melhor as pessoas que dormem na rua, na tentativa de dar uma vida melhor a elas. São todas minhas colegas, também não tenho casa.


Os meninos se encolheram e saíram correndo. Júlio sorriu. Se sua condição de vida é ingrata, sua nova função lhe dá orgulho. Foi selecionado pela Fasc, junto com outros 13 moradores de rua ou ex-sem-teto e ganhará uma bolsa mensal de R$ 300 até dezembro, mais vale-transporte. Além de uma reunião semanal, fará duas abordagens noturnas para ajudar a cadastrar andarilhos.


- Ele acessa nossos serviços e mostrou-se interessado em ajudar. Tem carisma e é um exemplo de obstinação pelo esporte - conta Patrícia Mônaco, técnica de referência do Centro Especializado de Assistência Social - Creas Centro, unidade da Fasc onde Júlio é acompanhado.


Diretora técnica da Fasc e idealizadora do projeto, Marta Borba está otimista:


- Chamados a opinar sobre o plano, quando era só uma ideia, essas pessoas têm colaborado muito com testemunhos.


O peregrino


São poucas as noites nas quais Júlio consegue cama em albergue. A pessoa perde o direito a sua jornada de 15 noites consecutivas se falta alguma. E depois ainda há um prazo de carência de mais 15 "diárias". O jeito é procurar marquise ou escadaria do Centro. De dia, almoça no restaurante popular, onde tem entrada livre graças a convênio da cooperativa de reciclagem em que trabalha de manhã:


- Meu colchão é um papelão. Tenho uma cobertinha que fica na casa da minha namorada.


A companheira que conheceu no Cete é o novo porto seguro dele. Mas é cedo para pensar em algo mais duradouro, e sua residência é bastante concorrida, entre filhos e a mãe idosa.


- Ela me incentiva muito. Acredita em mim. Quero vencer na pista e na vida. Sonho em estudar Educação Física.


O mundial


Sua prioridade agora é o Mundial Master de Atletismo, que ocorrerá em outubro, em Porto Alegre. Inspirado no supercampeão jamaicano Usain Bolt, Júlio treina todos os dias. Nas pistas e nas ruas. O tênis não é o apropriado, mas com a ajuda de amigos e da Fasc pretende conseguir sapatilhas especiais novas para treinar suas provas preferidas: 100m, 200m e 400m. Entre inscrição e taxas, a participação custaria R$ 350:


- Vou correr, agora, atrás de patrocínio.


Seus índices ainda estão longe do que se projeta para chegar a alguma final da competição que equivale a uma Olimpíada. Mas sua ambição de tartaruga vale ouro, o que lhe garante velocidade de coelho.


Quem é


Nome - Júlio César de Jesus Barbosa


Idade - 40 anos (25/2/1973, em Pelotas)


Altura - 1,64m


Peso - 60kg


Pé - 39 (tênis ou sapatilha de atletismo)


Tempos


Faixa dos 40 aos 44 anos


- 100m rasos


Júlio - 12seg50


Recorde mundial - 10seg29


- 200m rasos


Júlio - 23seg


Recorde mundial - 20seg64


- 400m rasos


Júlio - 57seg51


Recorde mundial - 47seg81


Porto Alegre 2013, jeito de Olimpíada


Porto Alegre será a capital do atletismo master entre os dias 16 e 27 de outubro deste ano. São esperados cerca de 6 mil atletas, de 110 países. Todas as provas de pista, saltos e arremessos estão previstas. O cronograma é o mesmo do que o de uma Olimpíada, com cerca de 50 modalidades.


São 15 faixas etárias masculinas e 15 femininas, de cinco em cinco anos a partir dos 35. O atleta paulista Frederico Fischer, 96 anos, já confirmou presença.


- O bonito é que as famílias acompanham os atletas. O atletismo viverá dias de glória aqui - celebra o presidente estadual da Associação Brasileira de Atletismo Máster (Abram), Francisco Hypólito da Silveira.


As inscrições vão até 10 de agosto. No Mundial Master não há necessidade de comprovar índices para atletas do país-sede. A taxa de US$ 96 (cerca de R$ 200) dá direito a uma prova. E cada prova a mais custa US$ 35 (cerca de R$ 73).


Além do Cete, haverá disputas na Puc, na Sogipa e na Esef. O Cete será reformado, o que impedirá treinos:


- Vou treinar na rua, em qualquer lugar. Meu sonho é representar o Brasil! - sonha Júlio.


Abrigos na Capital


PROTEÇÃO SOCIAL ESPECIAL DE ALTA COMPLEXIDADE - FUNCIONAM À NOITE


- Albergue Municipal: 150 vagas - Rua Comendador Azevedo, 215 (Floresta). 3346-3238.


- Abrigo Marlene: 60 vagas - Avenida Getúlio Vargas, 40 (Menino Deus). 3212-1158.


- Residencial para Famílias: 20 vagas - Rua Augusto Pestana, 200 (Santana). 3227-7734.


- Abrigo Bom Jesus: 62 vagas - Rua São Domingos, 165 (Bom Jesus). 3338-0704 e 3225-5602.


- Abrigo para Mulheres com filhos Casa Lilás*: até 40 vagas - Rua Frei Germano, 801 (Jardim do Salso). 3397-1956.


- Albergue Dias da Cruz*: 90 vagas - Av. Azenha, 366 (Azenha). 3225-3828.


- Albergue Felipe Dihel*: 145 vagas - Praça Navegantes, 41 (Navegantes). 3342-2882.


- Lar Emanuel*: 65 vagas - Av. Assis Brasil, 1099 (Santa Maria Goretti). 3341-2615.


PROTEÇÃO SOCIAL ESPECIAL DE MÉDIA COMPLEXIDADE - FUNCIONAM DE DIA


- Centro POP: 75 vagas - Rua Almirante Álvaro Alberto e Silva, s/nº (Menino Deus). 3221-8578 e 3225-5602.


- Ilê Mulher*: 150 vagas - Rua Gaspar Martins, 816 (Floresta). 3225-3828.


As prioridades


Mulheres, idosos, transexuais, portadores de necessidades especiais têm prioridade. Os demais, são chamados através de uma lista elaborada na noite anterior.


Ação na rua


Abordagem de criança e adolescente: ligue 3289-4994. Para adulto, 3346-3238.


* Unidades conveniadas. As demais são próprias.


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