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24 horas de desafio

Conheça a cultura das gincanas, que engaja milhares de pessoas no RS

Zero Hora acompanhou um dia de provas e traz um retrato desse mundo, tão colaborativo quanto competitivo

31/10/2014 - 05h02min

Atualizada em: 31/10/2014 - 05h02min


Bruna Scirea
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Ronaldo Bernardi / Agencia RBS
Provas artísticas, com música, dança e fantasias, estão entre as tarefas da gincana

Em Portão, no Vale do Sinos, crianças, jovens, adultos e idosos uniformizados se reuniam em quatro escolas públicas e espalhavam-se pelas ruas, animados. Eram 13h do sábado, dia 18 de outubro. Começava o corre-corre esperado desde o ano anterior: a Gincana da Emancipação, criada há 22 anos. É quando provas artísticas, disputas esportivas, desafios de lógica, buscas ao tesouro, crises de riso, demonstrações de união e persistência acuumulam-se em quase 24 horas de correria.

Portão é só uma entre dezenas de cidades do Interior do Rio Grande do Sul que adotaram a cultura gincaneira, que envolve e engaja cerca de 80 mil pessoas em todo o Estado. A seguir, ZH faz um retrato de um dia nesse mundo, tão colaborativo quanto competitivo.

O apito inicial

A gincana começa muito antes das 13h do sábado marcada na agenda. Para a Equipe Noturnos, de São Jerônimo, contratada pela Liga dos Gincaneiros de Portão para ser a organizadora do evento, era o fim de dois meses de trabalho elaborando as 126 tarefas da gincana - cerca de cinco por hora.

As quatro equipes competidoras também não se organizaram às vésperas. Equipepino, Tatucascalho, Equipedrão e Tigres do Caribe já se preparavam desde a gincana anterior, com bingos, venda de frango assado e busca de patrocinadores. É preciso juntar um bom dinheiro - certa vez, gastou-se mais de R$ 1 mil na locação de um raríssimo disco de vinil que precisava ser apresentado em uma tarefa. Ninguém está ali de brincadeira: o foco é ganhar.

E não é fácil: no ano passado, a campeã de Portão ficou 320 pontos à frente da vice - em um universo de cerca de 50 mil pontos, uma prova pode decidir tudo.

Tarefas inusitadas e bom-humor


Richard da Silva e Lucas Reis, da Tigres do Caribe, capricharam no figurino
Foto: Ronaldo Bernardi/Agência RBS

O gosto pela gincana vem de casa. O chapeador Sérgio, 58 anos, nem esperou Caroline completar um aninho: dois meses após a filha nascer, a gincana chegou e ele se mandou para o desfile que antecede a competição com a bebê nos braços.

- É que a brincadeira e as amizades nos unem. É impossível se desligar. Isso aqui já não é mais uma equipe, mas uma família - explica Sérgio Silva "Pepino", olhando para a filha, que hoje tem 17 anos.

Lembrou disso enquanto acompanhava o desempenho de um carrinho de ferro que montou para uma das provas - uma corrida com motoristas fantasiados de Fred Flintstone e Barney Rubble. A Equipepino tirou o primeiro lugar.

- Essa foi mais simples. Uma vez tive que levar um porco no porta-malas do meu carro. Demorei meses para conseguir tirar o cheiro - relembra Sérgio.

O "troféu bom-humor" nessa prova, no entanto, foi para a Tigres do Caribe. O carrinho perdeu uma das rodas na metade do caminho, mas os condutores seguiram com a corrida e, não conseguindo frear no fim da prova, caíram em um canto do ginásio.

- Deu um acidente aqui! - brincou o condutor Richard da Silva, que veio de Taquara para apoiar a equipe.

- Chama o Samu!!! - continuou o co-piloto e técnico em eletrônica Lucas Reis, deixando a quadra com um carrinho meio manco e uma das rodas na mão.
 
A diversidade faz a força


Conhecimentos de todas as áreas são bem-vindos para a realização das tarefas
Foto: Ronaldo Bernardi/Agência RBS

A comunidade gincaneira é formada por pessoas que já se conhecem de outras provas, de gincanas de outras cidades e de outros anos de competição. Tem namorada que tira o namorado da outra equipe e leva para a dela. Tem filho que é quase deserdado porque prefere seguir os amigos e integrar uma equipe diferente da do pai. Tem o menino órfão que perdeu a mãe gincaneira e hoje tem a equipe como uma grande família. Quanto mais diversa a equipe, melhor: cada um contribui com o que pode. A empresária Cláudia Hoff, 44 anos, lembra do primeiro ano de gincana em Portão, há 22 anos, quando abrigou uma equipe na garagem de casa.

- Foi uma semana de gincana. A minha casa virou caos, pandemônio. Depois do trabalho nos reuníamos e passávamos a madrugada fazendo as tarefas, que eram anunciadas pela rádio ou que chegavam por fax - relembra a gincaneira.

Hoje, as provas são divulgadas em um site e o contato nas equipes é por grupos no Whatsapp. O que não muda, para Cláudia, é o espírito gincaneiro:

- Tem pessoas que me perguntam: por que tu te mete nisso? É um aprendizado absurdo. Sai uma tarefa e eu ligo pedindo ajuda para um, falo com outro que não conversava há anos. Retomo amizades, constituo relações e aprendo a conviver.
 
Sigilo, organização e estratégia


QGs contam com sala para preparação de figurinos para provas artísticas
Foto: Ronaldo Bernardi/Agência RBS

Tudo é brincadeira e, ao mesmo tempo, tudo é seriedade. Entrar sem a camiseta do time ou de um grupo apoiador num quartel-general (QG) da equipe, normalmente montado em escolas, é garantia de ser questionado com desconfiança. A rivalidade é típica da gincana - e explica o sigilo que envolve toda a logística. A Equipedrão, por exemplo, preferiu vetar a entrada de ZH, por julgar que a presença da reportagem "tiraria o foco do grupo". A bebida alcoólica é proibida. Salvo raros casos, os participantes sabem que o álcool pode comprometer a realização das tarefas.

As salas são equipadas com telefones, computadores, internet e TVs e recebem grupos diferentes. Na sala dos "pensantes", dezenas se reúnem silenciosamente atrás de computadores tentando resolver enigmas. No canto das "velharias", um grupo cheio de contatos de colecionadores e amantes de peças raras tem a função de encontrar revistas antigas, chaveiros da década de 70 e outras relíquias. São os donos da boa lábia - capazes, por exemplo, de convencer uma pessoa de São Paulo, que tem o objeto que eles precisam, a ir ao aeroporto, negociar com um passageiro que venha para Porto Alegre, e garantir que o material seja buscado no aeroporto da capital gaúcha e chegue a Portão no tempo estimado da prova.

Nas salas das atividades artísticas, há ensaios para apresentações e confecção de figurinos e caracterizações de competidores. É o espaço de talentosas e criativas costureiras e "estilistas" de ocasião: de roupas antigas, materiais reciclados e tecido TNT, produzem desde fantasia de freira a uma roupa de Carmem Miranda.
Por fim, na área mais próxima da entrada do colégio fica o espaço do setor "rua". É quem precisa descobrir pistas a partir de vídeos e imagens enviados pela organização e sair com carros em uma caça ao tesouro pela cidade _ a parte mais eletrizante da disputa.

Prevendo acidentes, carros são alugados


Carro alugado por uma das equipes colidiu contra veículo de outro grupo
Foto: Ronaldo Bernardi/Agência RBS

A correria move muitos gincaneiros, mas também é ponto de debate nas cidades. Com seus 30 mil habitantes, a pacata Portão teve um fim de semana agitado, de gente na rua, barulho acima do normal e movimentação incessante de carros. Há quem não goste. Das 13h às 17h do sábado, a Brigada Militar da cidade havia registrado mais de 100 ligações de moradores se queixando da velocidade com que os carros circulavam pelas ruas. Por volta das 18h, ocorreu o primeiro acidente. Integrantes de uma equipe cruzaram a preferencial e atingiram o carro de um grupo concorrente. O veículo, que teve perda total, era alugado para o fim de semana. Esse é um dos costumes das equipes.

- Sabemos que esse tipo de coisa pode acontecer, e eu tenho que trabalhar com o meu carro na segunda-feira - disse um dos envolvidos no acidente.

A colisão não deixou feridos. Na manhã do domingo, outro acidente foi registrado pela polícia: um gincaneiro teria colidido contra um poste e fugido do local.

- A cidade vira esse caos, de carro correndo de um lado para o outro. Chega a ser perigoso sair de casa nesses dias - lamentou uma moradora da cidade, que achou melhor não se identificar.

De acordo com a Liga Gincaneira, as provas são elaboradas para permitir tempo suficiente para que o limite da velocidade no trânsito não seja desrespeitado. Além disso, existem trabalhos de conscientização com as equipes, mas casos isolados sempre acabam acontecendo, afirma a organização.
 
A madrugada é dos guerreiros



É antes do amanhecer que acontecem as principais provas de caça, que exigem movimento e agilidade e não deixam ninguém cair no sono. No setor "rua", o clima ferve. Uma nova prova surge nos telões; o salão se enche para matar a charada do local para onde devem seguir; os veículos saem, velozes. Durante o ano, isso é praticado: a Equipepino, por exemplo, simulava as provas. Nessa hora, autocontrole é tudo - a rivalidade às vezes vira briga.

De sábado para domingo, duas equipes se envolveram em confusões. A primeira agressão teria surgido após um integrante suspeitar que era seguido por um concorrente em prova no meio do mato. A segunda, motivada pelos ânimos acirrados, veio em resposta à briga inicial. A Liga dos Gincaneiros penalizou uma das equipes com o desconto de pontos "por manterem integrantes com esse tipo de comportamento dentro de seus grupos".

- Sempre existem laranjas podres, mas elas não estragam uma cesta inteira - afirmou o presidente da Liga, Jefferson Soares.
 
Só o bom-humor afasta o sono


Vestida de freira, às 5h, Nádia arrancou gargalhadas da Equipepino
Foto: Ronaldo Bernardi/Agência RBS

Nádia Maria Flores, 60 anos, já estava acordada há quase 24 horas quando apareceu na cozinha da Equipepino vestida de freira. A visita inusitada levou a mulherada que se reunia em torno da mesa a cair na risada.

- Vai rezar? - perguntou uma colega de equipe.

- Não. Vou elevar. O quê, eu não sei, só espero que não seja pesado. Mandaram levar uma velha lá no ginásio, vestida de freira. Vou eu - respondeu Nádia.

Gincaneira há 16 anos, a "freira" teve de elevar um balão e, com o menor número de toques possível, colocá-lo dentro de um balde. Ficou em terceiro lugar, mas seguiu rindo. Bom humor é fundamental e, perto do fim das 24 horas de gincana, os desejos dos participantes são simples - como o de Lucas, o "acidentado" no carrinho dos Flintstones na tarde do sábado:

- Só preciso de um banho.

No microfone, um dos líderes da equipe anunciava novas provas: em uma hora, era preciso encontrar cinco peões, 22 chinelos Havaianas, oito macacos de carro, duas pranchas de surf... Lucas e toda a equipe corriam de lá para cá. Para manter o ânimo até o fim, entoavam a cada pouco o hino da Tigres do Caribe. Ali, descanso era privilégio de apenas um gincaneiro: uma cadela que aparecera logo cedo no QG, e fora adotada como mascote da equipe.

Ao meio-dia, as provas foram encerradas. Mas o trabalho ainda não chegava ao fim: era preciso recolher todos os equipamentos levados para a escola e varrê-la para que os alunos a encontrassem limpa na segunda-feira. Portão, aos poucos, voltava à normalidade.

Epílogo


Equipe Tatucascalho foi a vencedora da 22ª Gincana de Portão
Foto: Samuca de Souza/Arquivo Pessoal

Para quem passa o ano preparando a festa e transforma a atividade em estilo de vida, o anúncio dos vencedores, às 17h, é como resultado de Copa do Mundo. Em Portão, venceu a Tatucascalho, com 37.870 pontos, seguida pela  Tigres do Caribe, com Equipepino em terceiro e Equipedrão em quarto lugar. Elas serão contempladas com prêmios em dinheiro, cujos valores ainda não foram definidos.

A tradicional carreata da equipe campeã pelas ruas de Portão foi manchada pelo ação de um grupo que disparou fogos de artifício contra os carros. Durante a comemoração da Tatucascalho em um ginásio da cidade, o ônibus de uma equipe apoiadora de Charqueadas foi apedrejado e teve vidros quebrados.

Um dos líderes da Tatucascalho relativizou o incidente, dizendo ter certeza de que as pessoas que o praticaram não representam as equipes concorrentes.

- São alguns integrantes que levam para um lado que não é mais o da brincadeira. 99,99% das pessoas querem um fim de semana de alegria, de novas amizades - disse Luiz Mattge.

* Zero Hora


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