Notícias



A Revolução das Cotas

Os desafios dos ex-cotistas da Ufrgs depois da formatura

Na segunda reportagem da série, o Diário Gaúcho mostra as histórias daqueles que deixaram a universidade para melhorar as condições de vida dos que os cercam

22/06/2015 - 07h04min

Atualizada em: 22/06/2015 - 07h04min


Tadeu Vilani / Agencia RBS

Mesmo sem jamais se cruzarem nos corredores da Ufrgs, a enfermeira Denize Letícia Marcolino, 24 anos, moradora de Ronda Alta, no Norte do Estado, e a engenheira cartógrafa Taís Leite, 35 anos, do Bairro Vila Nova, em Porto Alegre, trilharam caminhos semelhantes na universidade. E, hoje, estão conectadas pelo desejo de melhorar as condições de vida dos que as cercam, após terem as próprias vidas transformadas na universidade mais tradicional do Estado.

Precursoras de uma realidade presente na Ufrgs desde 2008, Denize, ou Gónve (sabiá, em caingangue) é a primeira índia cotista a se formar na Ufrgs, em 2012, e Taís é a primeira cotista negra a receber o diploma em Engenharia Cartográfica. Até o segundo semestre de 2014, formaram-se na Ufrgs 1.231 cotistas: 168 autodeclarados negros, três indígenas e o restante, estudantes vindos de escolas públicas.

Na segunda reportagem sobre as ações afirmativas na Ufrgs, o Diário Gaúcho mostra histórias de quem, após a formatura, deu seguimento às transformações iniciadas ainda na universidade.


Mudanças de vida
Nas ruas de terra vermelha da Linha São Sebastião, em Constantina, no Norte do Estado, Denize se sente em casa. Caingangue, natural da Reserva do Guarita, em Tenente Portela, a jovem de pouca fala e longos cabelos pretos é, há quase dois anos, a enfermeira da unidade de saúde da aldeia.

Há oito anos, quando surgiu a oportunidade de candidatar-se a uma vaga na Ufrgs, Denize não imaginava que se tornaria responsável pela saúde de uma aldeia. Quando ingressou na única vaga de Enfermagem oferecida a um cotista indígena, em 2008, ela costumava se comunicar apenas em caingangue com a família e a comunidade onde nasceu.

- Falava português só na escola. Achei que não passaria porque não tinha estudado e eram mais de 20 candidatos para a vaga. Mas passei. O desafio começou ali - recorda.

Precursora

Naquele mesmo ano, Taís Leite, 35 anos, natural de Pelotas e moradora do Bairro Vila Nova, em Porto Alegre, filha de uma doméstica e de um pedreiro, não acreditava que passaria na primeira tentativa de ingressar na Ufrgs. Ao disputar uma vaga por meio das cotas, surpreendeu-se com o resultado.

- Eu sempre quis fazer uma faculdade, mas não teria condições de pagar para estudar. Sou a primeira da família a entrar na universidade. Ou seja, o desafio era dobrado: provar que podia entrar e mostrar aos meus pais que era possível ser uma aluna da Ufrgs - conta a engenheira, responsável pela produção de mapas numa empresa de consultoria ambiental.

Diploma ecoa na aldeia: Medicina da UFRGS forma a primeira cotista indígena

Caminhos difíceis
Passada a euforia do ingresso na universidade, Denize e Taís revelam as dificuldades enfrentadas para seguirem nos cursos. Por falar mais em caingangue do que em português, a indígena viu as notas despencarem no primeiro semestre. 

- Tirava só notas 5 e 6. Não entendia o significado de algumas palavras. Mas isso me fez estudar ainda mais -  recorda Denize.

Para Taís, os problemas se iniciaram com as disciplinas de exatas. Como concluíra o ensino médio técnico há quase uma década, ela perdera o ritmo em matemática.

- O processo de estudo é bem pesado. Mas até o primeiro lugar que entrou na Ufrgs teve dificuldades. Você tem que persistir e não desistir -  ensina Taís.

"Minha filha é um motivo de orgulho para toda a família. Eu venho subindo com o incentivo dela: de doméstica, passei para auxiliar de limpeza, depois portaria, e, agora, sou vigilante."
Ana Cristina Soares Correa, mãe de Taís


Família e apoio
Durante a universidade, Denize se casou com Josias Loureiro de Mello, 27 anos, caingangue que se formará em Pedagogia na Ufrgs no próximo semestre. Formada, voltou para a aldeia, enquanto o marido ficou em Porto Alegre para continuar os estudos. Denize ainda incentivou a mãe, Ivone da Silva, que ainda mora no Guarita, a estudar Pedagogia à distância.

Taís já era casada com o técnico em eletrônica Felipe Rocha da Silva, 35 anos, quando passou na federal. O casal, inclusive, fez um pacto: Felipe manteria a casa para Taís concluir os estudos. Depois, ocorreria o contrário. 

- Chegou a minha vez de incentivar o meu marido a prestar vestibular na Ufrgs para Engenharia de Controle e Automação. Nas nossas folgas, passamos os dias em quartos separados. Estou estudando para concursos, e ele, para a Ufrgs. Só nos encontramos na hora de dormir - diz, entusiasmada, Taís.

"Eu apoio, plenamente, o processo de cotas. Foi muito importante para a minha vida."
Taís Leite

 
Denize no posto de saúde da aldeia São Sebastião
Foto: Tadeu Vilani

 
Taís com o marido, a mãe e a irmã: orgulho da família
Foto: Tadeu Vilani

"A mudança já ocorreu. Os resultados práticos dela se darão a médio e longo prazo. Agora, há a possibilidade de estes estudantes construírem um capital escolar que vai impactar nas gerações futuras destas famílias."
Edilson Nabarro, da Coordenadoria de Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas da UFRGS


Discriminação
Mais do que Taís, Denize enfrentou discriminação dentro da universidade. Mas credita à falta de informação as perguntas sem noção feitas por colegas ao longo do curso:

- Ouvia coisas do tipo "Você é bugre?", "Você vivia no mato?", "Você andava pelada?". Isso me incentivou ainda mais a continuar. Quis provar que eu era capaz - conta Denize.

Taís jamais se abalou por ter ingressado via cotas. Pelo contrário, fez disso a oportunidade para estagiar dentro e fora da universidade. Aproveitou cada chance e trabalhou durante todo o período em que estudou na Ufrgs. Desta forma, ingressou no mercado de trabalho antes de se formar.

- O ingresso no vestibular não é parâmetro para dizer se você é mais ou menos inteligente. Dos 25 alunos que ingressaram comigo, se formaram cinco ou seis. E tem mais cinco lá. Os outros desistiram - exemplifica.

Vice-coordenador da Coordenadoria de Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas da Ufrgs, Edilson Nabarro foi um dos incentivadores para a instalação da política de cotas na universidade.

- Os contrários às cotas diziam que o ingresso de estudantes de escolas públicas, de negros e índios poderia pauperizar a academia. Os dados não indicaram isso. A Ufrgs, repetidamente, tem sido uma das melhores universidades deste país. É uma mudança - vibra.


Rumos distintos
Formadas, Taís e Denize, que jamais se conheceram na Ufrgs, seguiram rumos distintos. Denize fez especialização em Saúde Indígena numa universidade paulista. Depois, passou seis meses desempregada. Foi quando surgiu o convite para atuar como enfermeira na Reserva da Serrinha, em Constantina. Lá, é responsável por 30 famílias e conversa em caingangue com todas elas. 

- Não uso nem jaleco para que eles me sintam como igual. Sou feliz por ter adquirido conhecimento para aplicar entre os indígenas. Me sinto realizada - resume.

A determinada Taís deixou o estágio para ser efetivada na mesma empresa logo após a formatura em gabinete, por falta de condições financeiras para participar da cerimônia de conclusão. Entre os próximos planos, estão melhorar as condições de vida da mãe e da irmã, a recepcionista Tiane Correia Leite, 27 anos.

- Estou incentivando a minha irmã a fazer a faculdade de Medicina Veterinária na Ufrgs. Ela acha que não é para nós, mas já provei a ela que, mesmo pobres, também podemos cursar uma federal.


"Por um lado, acho as cotas ruins porque as pessoas nos veem como incapazes. Por outro, acho boas porque dão a oportunidade para mais indígenas chegarem ao ensino superior."
Denize Letícia Marcolino

Estatísticas semelhantes
* Os cursos que mais formaram cotistas na Ufrgs são: Direito (105), Letras (70) e Administração (63). Nos dados, contudo, é preciso considerar o número de ingressantes - estes três estão entre os cursos com maior número de vagas -, tempos médios de aprovação e média de alunos egressos em cada curso.
* Numa amostra de 3.496 alunos de cursos que não ultrapassassem o tempo médio de 12 semestres, entre 2008 e 2014/1, a Ufrgs constatou números que se assemelham entre cotistas e estudantes universais. 
* Entre os 806 cotistas, 232 (28,7%) continuavam ativos, 311 (38,5%) eram egressos (trocaram de curso), 13 (1,6%) estavam afastados e 250 (31%) evadiram-se. 
* Entre os 2.690 estudantes que ingressaram pelo método universal, 545 (20,3%) estavam ativos, 1208 (44,9%) eram egressos, 69 (2,6%) estavam afastados e 868 (32,2%) evadiram-se.
* A maior preocupação das comissões de graduação dos cursos é referente aos primeiros semestres de curso, quando ocorrem os problemas mais sérios de reprovação em disciplinas, com consequente retenção ou evasão.
Fonte: Relatório anual 2013/2014 da Coordenadoria de Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas


Na terça-feira, confira a terceira e última parte desta reportagem: as transformações na universidade

Curta a página do jornal no Facebook
Confira todas as notícias do jornal

 
Denize à espera do transporte que a leva para Constantina
Foto: Tadeu Vilani

 
Denize atende família caingangue
Foto: Tadeu Vilani

 
Taís no escritório onde trabalha como engenheira cartógrafa
Foto: Tadeu Vilani


MAIS SOBRE

Últimas Notícias