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Força das chuvas

A rotina de dez famílias ilhadas à força, há quase 15 dias, em Novo Hamburgo

Reportagem chegou à Santa Maria do Butiá, a 30km do Centro de Novo Hamburgo, a única nestas cheias a receber alimentos da Defesa Civil com a ajuda do helicóptero da Brigada Militar

25/07/2015 - 12h01min

Atualizada em: 25/07/2015 - 12h01min


Defesa Civil / Divulgação

Moradoras de uma área onde o Rio dos Sinos faz a curva, dez famílias da localidade de Santa Maria do Butiá, no Bairro Lomba Grande, a 30km do Centro de Novo Hamburgo, enfrentam desde o dia 13 de julho o isolamento forçado pelas águas que transbordaram do rio. A Estrada Porto Satiro, único acesso à comunidade, seguia com três pontos de alagamento em 24 de junho.

Sem energia elétrica, água ou acesso por terra, os moradores contam com a ajuda da Defesa Civil de Novo Hamburgo, da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros de Campo Bom. Na terça-feira passada, um helicóptero da BM distribuiu alimentos entre as 22 pessoas - duas crianças e 20 adultos e idosos. Conforme o comandante do Batalhão de Aviação da Brigada Militar, tenente-coronel Márcio Roberto Galdino, foi a única ação de entrega de mantimentos a ilhados durante esta enchente no Estado.

Movido pelo desespero, o industriário Celso Steffen, 52 anos, tornou-se o líder dos isolados. Por ter o único gerador da região, ligado duas horas por dia enquanto tiver gasolina, ele é o contato com o mundo externo via celular e o responsável por manter unidos os vizinhos, em meio à espera pelo fim da enchente.

Com o auxílio dos bombeiros de Campo Bom, depois de percorrer cerca de 8km pelo Rio dos Sinos, o Diário Gaúcho conseguiu chegar ao local, no final da tarde de 22 de junho - quando ainda havia quatro pontos de alagamento. Durante 18 horas, o DG acompanhou a nova rotina adotada há quase duas semanas pelas famílias.

Repórteres falam sobre os bastidores da reportagem

Na volta, para ir de Santa Maria do Butiá até o centro do Bairro Lomba Grande, a equipe enfrentou um trajeto de três horas. Nos primeiros 5km, contou com a ajuda de Celso e do filho Vinícius, 17 anos, para cruzar à pé e de canoa as estradas e os campos alagados. Outros 13km foram de carona numa caminhonete 4x4 do empresário e morador da região, Adenis Favaretto, 45 anos.

 
Família de Celso está ilhada à força
Foto: Anderson Fetter

União na dificuldade

Segundo os moradores mais antigos, desde 1981, quando a região passou a contar com energia elétrica, a localidade não ficava sem luz por tanto tempo. A água consumida na região vem de poços artesianos ligados na luz.

- Evitamos ao máximo usar a água das caixas. Banho, só sem lavar os cabelos e de caneca - conta a padeira Elenita do Rosário, 62 anos, sogra de Celso, que mora há 50 anos no final da Estrada Porto Satiro.

Construídas num raio de 3km, as casas de Santa Maria do Butiá foram erguidas em pontos mais altos, pois a região costeia o Rio dos Sinos. Apesar de ser uma zona rural, 80% dos moradores trabalham e estudam na área central de Novo Hamburgo. A agricultura serve para consumo próprio, com produção, principalmente, de cana-de-açúcar, de aipim e feijão, e a criação de gado, porcos e galinhas.



Desde que a comunidade ficou ilhada, sem luz e sem água, ainda na primeira enxurrada em 13 de julho, pelo menos 13 pessoas deixaram o local. Outras 22 ficaram para cuidar das casas e dos animais. Na quinta-feira passada, não havia água dentro das casas, mas na volta de todas elas. Para sair, só caminhando pelo alagamento ou enfrentando a correnteza de canoa. Ao menos, as três visitas da Defesa Civil e duas do Corpo de Bombeiros de Campo Bom amenizaram o medo de ficar sem alimentos.
Celso é quem mais tem se dedicado a manter os moradores unidos.

- Diariamente, visito todas as casas para saber se falta algo. Levo comida, pego o celular para carregar. A enchente fez voltarmos a nos falar, como há tempos não ocorria - comenta Celso.


Gerador salva moradores
Morador da região há dez anos, Celso acostumou-se a ver Santa Maria do Butiá embaixo d'água em outros alagamentos. Há três meses, decidiu comprar um gerador de energia para usar em caso de emergência. Não imaginava que o usaria muito antes de terminar de pagar os R$ 3 mil, parcelados em 12 vezes.

- Na época, minha mulher brigou comigo porque achava inútil gastar dinheiro com um gerador. Agora, toda a comunidade me agradece. Inclusive, ela - revela Celso.

Todas as noites, o industriário liga o gerador por duas horas. É quando os celulares da vizinhança são carregados, o banho dos dois filhos é providenciado e a roupa é lavada na máquina. Paulo Arthur, nove anos, e Vinícius, 17 anos, têm o privilégio de ficarem mais tempo embaixo do chuveiro. Celso e a mulher Ana Paula, 34 anos, têm um minuto, cada um, para banharem-se. Tudo para economizar os 40 litros de gasolina do gerador, entregues pela Defesa Civil e pelo Corpo de Bombeiros de Campo Bom, entre terça e quarta-feira da semana passada.

- É difícil acreditar que, em 2015, tenhamos que viver um momento assim. O escuro é terrível, pois qualquer barulho na estrada a gente não sabe o que é. É olhar para os lados e não ver nada. Só ouço o som dos animais - conta.


Líder forjado no desafio
Na quarta-feira passada, quando já não havia mais luz na região, Celso voltava do trabalho à noite, quando foi surpreendido por uma enxurrada num trecho da Porto Satiro.

- Passei com o carro por uma poça d'água, e ele afundou. O abandonei ali mesmo. No escuro, só ouvindo o barulho da correnteza, caminhei a pé com água até o peito, por muitos quilômetros. Na hora, só pensei nos meus filhos e na minha mulher - emociona-se o industriário.

Celso não deixou mais a região. Avisou o chefe na empresa que não teria como sair e manteve-se ao lado da família e dos vizinhos. As 25 vacas de toda a família foram deixadas numa ilhota que se formou em meio às águas. Os porcos estão num chiqueiro mais alto, improvisado. As 40 galinhas foram soltas para encontrar alimento. Ele não sabe se conseguirá recolhê-las ao final da enchente.

- Não posso toda hora estar em cima dos animais porque eu tenho gente idosa que depende da gente. É uma situação muito triste. Eu me emociono - desabafa.

É Celso quem mantém contato com a Defesa Civil por celular e faz as solicitações de cada morador. Pede de água até gasolina.

- Em outras vezes, não pedimos ajuda da Defesa Civil porque tínhamos luz. Mas, desta vez, nos obrigamos a pedir socorro. Foi no desespero mesmo. Quando olho para o outro lado do rio, que pertence a Sapiranga, me dá vontade de ir lá e puxar um fio para trazer luz para cá - desabafa, em meio ao breu, olhando para um ponto iluminado num morro da cidade vizinha.


Tristeza na escuridão
A cerca de 50m da casa da família Steffen está a morada de Elenita. Viúva há dez anos, ela divide a casa com uma filha e um genro. Mesmo trabalhando em Novo Hamburgo, os dois estão temporariamente na casa de familiares, em Cachoeirinha, até as águas baixarem. Elenita ficou porque não imaginava ficar tantos dias sem energia elétrica. A produção diária de pães caseiros precisou ser suspensa até a volta da luz.

Mesmo no escuro, ela não consegue deixar de lado a rotina de 25 anos como padeira. Todas as madrugadas, por volta das 5h, acorda e com a ajuda de velas esquenta a água no fogão à lenha. Ao lado dele, sorve chimarrão até o dia clarear. Por vezes, o genro Celso chega, por volta das 6h, para acompanhá-la na cuia.

- Esta é a pior enchente de todas porque ficamos completamente isolados do mundo. Gosto de ouvir o Macedo (apresentador do programa Gaúcha Hoje, da Rádio Gaúcha), cedinho. Agora, estou no escuro e no silêncio. Me dá uma tristeza. E ela só está aumentando. Estou com saudade da minha filha e do meu genro, que não vejo há mais de uma semana. Quero que esta situação acabe logo - desabafa.


"Está faltando até assunto"
Assim como a mãe, Elenita, a estudante de Administração, Aline Martins do Rosário, 25 anos, afirma que é impossível conter a tristeza causada pelo isolamento. Mesmo ao lado do marido, o padeiro Tiago André Pereira, 29 anos, e do restante dos familiares, Aline desabafa:

- Gosto de ter a liberdade de ler um livro, olhar tevê, acessar a internet, ir à faculdade, de conversar com os colegas da universidade. Tudo isso me foi tirado desde que ficamos isolados.

Durante o dia, enquanto Tiago alimenta os animais dos vizinhos e ainda percorre a região de barco à procura dos técnicos da AES Sul, Aline fica ao lado da mãe e da irmã Ana Paula. Para piorar a situação, o sol vai embora antes das 18h. Ou seja, ela, que sempre dormiu depois da meia-noite, fica sem ter o que fazer a partir deste horário. As tentativas de ler à luz de velas terminam na segunda página do livro. Até o hábito de lavar a louça mudou. Agora, Aline reúne tudo na pia, ensaboa e enxágua com água do balde. Junto com o marido, divide o silêncio da morada que construíram há quatro anos.

- Está faltando até assunto - resume.


O Noé de Lomba Grande
Foi por falta de alternativa que Tiago, padeiro há cinco anos, se viu obrigado a construir uma canoa, na semana passada. Com a ajuda do tio, o extrator de pedras Nelson Martins do Rosário, 69 anos, fez a embarcação em dois dias. A ideia era auxiliar a comunidade e, ainda, salvar uma leitoa que se afogaria no chiqueiro de uma propriedade vizinha, cujos donos saíram antes das cheias.

- Puxei ela por uma corda até a água. Depois, amarrei as pernas dela, coloquei na canoinha e a transportei até a casa de outro vizinho. Está salva por lá - contou, faceiro, Tiago, que desde o resgate foi apelidado pelos familiares de Noé.

Com a canoa, que mede cerca de 2m de cumprimento, o padeiro e o tio arriscam-se todos os dias nas águas turvas e revoltas que engoliram os campos mais baixos, antes destinados para pasto na região. Nela, transportam cana-de açúcar para o gado ilhado, alimentam porcos nos chiqueiros e também vão até a parte seca da Estrada Porto Satiro.

- Venho todos os dias, na esperança de encontrar os técnicos da AES Sul. Mas ainda não vi ninguém. Quero mostrar que, apesar do alagamento na região, nenhum contador está embaixo d'água. Dá para religar a luz - acreditava, na tarde de quinta-feira.

Conforme a assessoria de imprensa da AES Sul, a energia da região só será religada quando toda a água baixar nas estradas. Os técnicos avaliam o trecho a cada duas horas, todos os dias.


"Foi no susto!"
Morador de Estância Velha, o construtor civil Marcos Antônio Pereira, 44 anos, e outros dois colegas, foram pegos de surpresa pela enxurrada, enquanto construíam uma casa na Estrada Porto Satiro.

- Fomos avisados pelo patrão que poderia ocorrer, mas quando vimos não deu para sair. Foi no susto! O rio subiu muito rápido. A gente precisa trabalhar. Então, ficaremos até a água chegar na casa.

Do portão do terreno até a casa, são cerca de 50m por dentro d'água, que chega a 50cm onde deveria ser estrada. Perto dali, a pouco mais de 100m, na Porto Satiro, havia mais alagamento numa extensão de 2km e profundidade de mais de 2m, impossibilitando o construtor de deixar o local onde trabalha.

Na quinta-feira à tarde, Marcos Antônio abriu um sorriso quando avistou Celso chegando com uma sacola repleta de material de limpeza. De imediato, com um dinheiro enrolado numa das mãos, enfrentou os 50m de água gelada para fazer uma solicitação:

- O senhor tem como me trazer 1,5km de ponta de peito e uns tomates? Estou sem carne há dias.

Celso cumpriu o pedido. Cruzou os 2km de água para levar a equipe do DG até o ponto mais seco e caminhou por mais 1km até o açougue mais próximo. Voltou com a ponta de peito pedida pelos vizinhos improvisados.

 
Ao redor de uma vela, família de Celso e vizinhos jogam pife
Foto: Anderson Fetter

 
Celso caminha no trecho com menos água, na quinta-feira passada
Foto: Anderson Fetter

 
Celso percorre trechos alagados na canoa que construiu
Foto: Anderson Fetter

 
Elenita segue acordando na madrugada
Foto: Anderson Fetter

 
Aline lavando a louça no escuro
Foto: Anderson Fetter

 
O novo Noé e o tio na embarcação construída por eles
Foto: Anderson Fetter

 
Travessia por dentro d'água
Foto: Anderson Fetter

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