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Solidariedade nas ruas

Morador de rua que ajudou motorista com carro ilhado é fluente em inglês e espanhol

Sonho de ser bombeiro se realizou por alguns minutos na última quinta-feira. Daniel tenta largar as drogas para ter profissão

20/11/2015 - 20h04min

Atualizada em: 20/11/2015 - 20h04min


Lauro Alves / Agencia RBS
Mesmo falando três línguas, Daniel pede dinheiro nas sinaleiras de Porto Alegre

Era só mais um fim de tarde em Porto Alegre na quinta-feira passada. Mesmo com um forte temporal que alagou as ruas da cidade, Daniel Souza Aragão, 33 anos, estava na esquina das avenidas Ipiranga e Erico Verissimo fazendo o que já está em sua rotina há cerca de quatro anos: pedir dinheiro para os condutores de carros que param no sinal vermelho. Porém, a ajuda que ofereceu a um desconhecido fez com que seu dia saísse do normal, pelo menos, por alguns minutos.

Depois de divulgada a cena no site do Diário Gaúcho, a atitude do homem se espalhou pelo Brasil. Nesta sexta-feira, a reportagem encontrou o "mendigo" para contar quem é o herói das chuvas de Porto Alegre. Daniel é, além de sonhador, poliglota, rapper, bem-humorado e contador de histórias. Um pouco tímido no início, ele aceitou sair do asfalto e contar um pouco da sua vida.


Foto: Lauro Alves / Agência RBS

Em meio ao caos causado pela chuva, um carro ficou ilhado na Avenida Erico Verissimo. Ao ver a situação do motorista, Daniel deixou a sinaleira e foi correndo ao encontro do veículo afogado. Encharcado, ele caminhou pela mureta da avenida segurando o cartaz que usa para pedir esmola com o irônico dizer: "Sonho em ser bombeiro, mas nunca poderei ser de estômago vazio". O pedinte das sinaleiras se tornou um pouco bombeiro naquele momento.

- Eu perguntei para o motorista se ele aceitaria ajuda. Foi então que empurrei o carro, até que ele saísse da água - relembra.

O morador de rua afirma que ajudar as pessoas é normal para ele, já que vê diversas cenas diariamente por estar na rua. Mesmo tendo recebido R$ 50 como recompensa, Daniel afirma que não foi ajudar por dinheiro.

- Até brinquei que ele poderia me dar uns pilas pelo serviço, daí ele hesitou e eu disse que era brincadeira, que fazia de coração - conta o morador de rua.




Vida nos Estados Unidos

Nascido em Porto Alegre, Daniel foi com sete anos morar nos Estados Unidos. Segundo ele, a mãe, separada do pai, conheceu no Brasil um espanhol que morava na Flórida, nos Estados Unidos, e Daniel, a mãe e a irmã foram convidados a ir para lá e mudar de vida.

- Eu completei todo o ensino no Exterior. Posso dizer que inglês é a minha primeira língua, já que fui alfabetizado lá. Também sei falar espanhol fluente. Já fui vendedor, cozinheiro... já fiz muita coisa - fala Daniel.

O morador de rua conta que desde cedo teve contato com o mundo das drogas. 

- Não posso dizer que fui influenciado por alguém. Eu mesmo procurei essa vida, procurei essas substâncias, infelizmente - revela.

Ele acabou sendo preso em Nova York por conta das drogas e ficou um ano e meio nas celas norte-americanas até ser deportado para o Brasil, em 2011. Em solo gaúcho, chegou a morar com uma tia, mas não deu certo.

- Enquanto eu não largar o vício, é difícil conseguir fazer alguma coisa. Me arrependo muito de ter entrado nessa vida. Faz muito tempo que não vejo a minha família, todos que eu amo ficaram nos Estados Unidos. Às vezes falo com a mãe pelas redes sociais numa lan house, mas é difícil falar com ela, é só choradeira e tragédia - conta Daniel, que afirma emocionado:

- Se eu pudesse dar um conselho, eu diria para as pessoas aproveitarem suas famílias. Isso é a coisa mais importante que existe.



Esmola nas ruas da Capital

Vagando pelas ruas da cidade, Daniel reveza os arbustos de um posto de gasolina, a sombra da árvore de um centro de cultura e a grama do canteiro de uma avenida para dormir sob as estrelas do céu.

- Não sou santo, já fiz muitas coisas erradas na minha vida, mas nunca roubei nada das pessoas. Sou eternamente grato por toda a ajuda que eu recebo nas sinaleiras. Eu quero deixar claro que não gasto tudo com drogas, também compro umas roupas, comida, minhas coisas. Gostaria muito que as pessoas acabassem com o preconceito contra o usuário de drogas e não julgassem quem está na rua - pede Daniel.

Sonho de ser bombeiro

Nem sempre o sonho de Daniel foi ser bombeiro. Quando ele morava nos Estados Unidos, tinha a convicção de que seria empresário.

- Quando voltei para o Brasil e passei a dormir na rua, comecei a gostar de ajudar as pessoas, até porque a população me dá muita coisa. Vejo sempre os caminhões dos bombeiros passando e fico olhando para eles, me imaginando ali. Até já me informei sobre cursos para seguir a carreira.

Daniel admite que o grande problema que enfrenta todos os dias é a dependência química, que acaba limitando todos os planos.

Criatividade que cativa nos sinais

Para arrecadar mais dinheiro e fazer sucesso nos sinais vermelhos, Daniel usa a criatividade. Ele tem diversos cartazes com diferentes dizeres. Além do cartaz que revela seu maior sonho, ele já escreveu muitas frases inspiradas em casos que viu mundo afora, como a que usou para brincar com a própria situação: "Preciso de ajuda com drogas, cervejas e prostitutas".

Outra frase usada por ele é "Não sei fazer malabarismo, por favor me ajude a comprar um lanche".

- Os caras passavam e ficavam encantado com os malabaristas, e eu ficava apagado do lado. As pessoas deviam pensar "eu não vou ajudar esse chinelo, vou ajudar o artista", dai ficava complicado para mim - fala, entre risos.

Esperança de dias melhores

O futuro é muito incerto para Daniel. Ele não tem nenhuma perspectiva de mudar de vida. Pelo menos não enquanto for usuário de drogas.

- Não sei o que vai acontecer, eu queria parar de usar tudo isso. Por enquanto, ainda não consigo. Não sei, não sei...

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* Diário Gaúcho


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