Cidadania
O que uma escola infantil de Porto Alegre está aprendendo com uma imigrante haitiana
Fonoaudióloga de escolinha escreve sobre as lições de humanidade proporcionadas pelo convívio com a funcionária haitiana Eliane Dorsainvil
*Assistente da direção na Caracol Escolinha e fonoaudióloga
Quem acha doce a terra natal ainda é um tenro principiante; aquele para quem toda terra é natal já é forte;
(...)
A alma tenra fixou seu amor num único ponto do mundo; a pessoa forte estendeu seu amor a todos os lugares"
Hugo de St. Victor
Monge saxão do séc. 18, citado no livro "O Outro Pé da Sereia", de Mia Couto
Notei que descobrir novos lados de uma palavra era o mesmo que descobrir novos lados do Ser."
Manoel de Barros
No livro "Concerto a Céu Aberto para Solos de Ave"
Lembro do primeiro dia em que vi a Eliane. Cheguei à escola e ela estava sentada no hall de entrada, ao lado do marido - e interlocutor - para seu primeiro dia de trabalho, à espera de nossas instruções.
A Valesca (Karsten, diretora da Caracol Escolinha, em Porto Alegre) vinha demonstrando desejo de dar oportunidade para uma cidadã haitiana, por acreditar que, além da necessidade de um trabalho para o sustento de sua família (e talvez dos sonhos), ela valorizaria e se agarraria a essa oportunidade. E nós nos agarramos a essa ideia.
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A Eliane está conosco há alguns meses. Trabalha na limpeza da escola. Função que, para nós, é de suma importância, por lidarmos com crianças pequenas. Vamos além: manter nossa escola limpa e cheirosa é cuidado, é carinho e faz parte do que acreditamos ser educar.
A chegada da Eliane nos trouxe muitos desafios por conta do idioma. Ela não fala nada de português, e nós tampouco sabemos o idioma dos haitianos. Confesso meu receio, em alguns momentos, de que isso não desse certo. Mostrar uma simples rotina diária era bem mais complexo. Além das barreiras da comunicação, outros detalhes foram aparecendo e nos exigindo mais atenção. Foi aí que a equipe, espontaneamente, estendeu seus cuidados à ela.
A preocupação com a hora de parar para se alimentar e descansar (no início, ela não tinha noção de tempo ou não entendia). A angústia quando Eliane não apareceu para trabalhar no segundo dia - ao ligar para o marido, descobrimos que já havia saído de casa. Perdera-se no caminho. A observação sobre o primeiro feriado: "Cássia, liga pro marido dela. Periga ela aparecer e encontrar a escola fechada."
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Vários são os celulares com aplicativo do Google Tradutor, e a mímica tem sido nossa brincadeira favorita. De manhã cedinho, antes de começar a rotina, a profe Gil dedica um pouco do seu tempo para ensinar nossa língua para a Eliane. Ela também nos ensina algumas palavras, se alegra com o nosso interesse e quando escuta, da nossa boca, algo familiar, como paspò (passaporte), pwa (feijão), lapli (chuva), solèy (sol). Estamos montando juntas nosso dicionário.
Conviver com a Eliane é um aprendizado diário e vai além da palavra. Nos exige mais trabalho, mais atenção, mas acredito que essa experiência tem sido grandiosa para toda a equipe. A Eliane veio para nos desacomodar, no melhor sentido da palavra. Veio nos ensinar que educadores estão sempre aprendendo e que esse aprendizado ultrapassa as teorias pré-concebidas (inclusive as nossas).
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Não sabemos muito da história dela. Sabemos que tem quatro filhos e que eles ficaram no Haiti. Me pego pensando em como é para ela trabalhar perto de tantas crianças e ter as dela tão longe. Me pego pensando no futuro deles. Me apego na esperança.
O escritor Mia Couto diz que "rir junto é melhor que falar a mesma língua". Por enquanto, esse é o nosso único idioma em comum. Nos entendemos com gestos, olhares e sorrisos. Muitos sorrisos. Às vezes, rimos alto das nossas tentativas frustradas de entendimento e recomeçamos.
A Eliane, desde que aqui chegou, vem nos ensinando os (des)limites da comunicação e que afeto é afeto em qualquer lugar do mundo.