Violência
Mais de 40% das agressões contra a mulher envolvem alguém do convívio social
Dados são da Secretaria de Segurança Pública (SSP) do Rio Grande do Sul e apontam que número de estupros no RS diminuiu
Refletida no espelho do banheiro, Joana* se enxergou, naquele outubro de 2013, como uma mulher desonrada, indigna da filha que tem e da família que a criou. Dos hematomas que carregava no rosto, três eram da noite anterior e estavam sobrepostos a outros mais antigos. Fazia quatro meses que o espaço de tempo entre uma surra e outra não era suficiente para a pele se recuperar. Mas ali estava ela, estática, diante do reflexo, observando as lágrimas que escorriam sobre os machucados espalhados do olho esquerdo ao pescoço e arquitetando em sua mente formas de fazer cessar as agressões que vinha sofrendo do então namorado, entre elas, sexo não consensual. A mais promissora saída parecia ser o suicídio, acreditava à época.
- Graças a Deus, eu respirei fundo, pensei na minha filha e corri para a casa de uma tia em quem eu confio. Ela me ouviu, orientou e deu todo o apoio que precisei naquele momento. Agora a minha vida é outra. Sou feliz novamente - conta a mulher de 37 anos, que tem uma vitória pessoal a comemorar neste Dia Internacional da Mulher, lembrado hoje.
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A primeira agressão ocorreu quatro meses após o início do relacionamento, em abril de 2012. A lembrança das mãos pesadas apertando seu pescoço naquele dia a deixa, ainda hoje, com sensação de asfixia. Órfã de pai e mãe, diz ter se submetido àquela situação por 14 meses em função da sua situação financeira.
Joana é só mais uma vítima da violência de gênero que, de acordo com números da Secretaria de Segurança Pública (SSP) do Rio Grande do Sul disponibilizados neste mês, diminuiu em 2015 na comparação com 2014. Ao todo, 2.409 mulheres foram estupradas em 2014, sendo que, em 41,67% dos casos, o agressor é alguém do seu convívio social. A SSP não diferencia neste levantamento o agressor pelo grau de parentesco, mas estima que 99% dos estupros, mortes e agressões dentro do ambiente familiar foram cometidos pelos companheiros, o que enquadra o delito na Lei Maria da Penha.
Número de estupros reduziu 43,21%
Em 2015, o número de mulheres estupradas caiu para 1.368 (43,21% a menos do que em 2014), sendo que 589 sofreram esse tipo de agressão por alguém com ligação afetiva. O ano que passou registrou, ainda, queda de 8,91% nas lesões corporais na comparação com 2014. Outro dado em declínio diz respeito à quantidade de mulheres assassinadas, que caiu de 376 em 2014 para 346 no ano passado. Ainda assim, é possível afirmar, conforme os números mais recentes, que uma mulher é morta no Estado a cada 25 horas.
Os indicativos mostram, também, que aumentou em 25,33% o número de mulheres assassinadas dentro do seu contexto doméstico, passando de 75 em 2014 para 94 em 2015. Para a delegada Claudia Cristina Santos da Rocha Crusius, coordenadora das Delegacias de Polícia Especializadas no Atendimento a Mulher (Deams) do Rio Grande do Sul, a proximidade entre acusado e vítima é um dos pontos que facilitam a prática deste crime.
- Entendo que essa situação ocorre por um desequilíbrio emocional e psíquico do agressor, muitas vezes agravado pelo uso de drogas ou bebidas alcoólicas.
O caminho para diminuir a incidência das agressões está, segundo a presidente do Conselho da ONG Themis, Fabiane Simioni, na educação.
- A prevenção se faz discutindo a violência de gênero na escola e promovendo o acesso à informação. Aliado a isso, é preciso responsabilizar os culpados e dar a resposta adequada às denúncias, fazendo cumprir as medidas protetivas de urgência.
O lar como um local inseguro
Os fatores que levam mulheres a omitirem as agressões são diversos e passam por medo de represálias, insegurança e dificuldades financeiras. A maioria das vítimas que chegam ao Centro Estadual de Referência da Mulher, em Porto Alegre, está fragilizada e se mostra essencialmente preocupada com a guarda dos filhos e com a divisão dos bens materiais.
- São mulheres emocionalmente destruídas, com baixa autoestima, inseguras, com medo - conta Márcia Guerra, coordenadora do espaço.
Essas, que procuram ajuda, são atendidas por uma equipe composta por assistentes sociais, advogadas e psicólogas. Após os primeiros contatos, a vítima é aconselhada a se abrigar na casa de familiares ou de amigos. Não havendo essa possibilidade, é encaminhada a um abrigo até que seja concedida pela Justiça a medida protetiva e dado os encaminhamentos necessários que garantam a sua segurança. No entanto, segundo a delegada Claudia, coordenadora das Deams, estima-se que, de cada quatro mulheres, uma sofre violência de gênero, porém não se sabe se esta procura a polícia ou não.
- As vítimas têm muita vergonha e medo, motivo pelo qual os números que temos dos fatos ligados a esse tipo de criminalidade nunca correspondem à realidade, pois há muita subnotificação.
Por isso, Márcia Guerra, coordenadora do Centro Estadual de Referência da Mulher, reforça a necessidade de registrar boletim de ocorrência sempre que houver agressão ou ameaça.
- Ter essas notificações conta bastante para emissão da medida protetiva e até prisão do agressor - reforça Márcia.
A socióloga Margarete Panerai Araújo lembra que o incentivo às denúncias tem ajudado a coibir a violência de gênero, mas ressalta que os dados ainda são alarmantes. Segundo ela, baseada em pesquisa do IBGE, o próprio lar é apontado como o local mais inseguro para as mulheres.
- Temos muitas coisas por fazer ainda, não só no combate à violência de gênero, mas na criminalidade urbana. Existe uma discriminação histórica, que nos obriga a rever conceitos. Somente quando a gente reconhecer essa discriminação será possível combatê-la. É preciso identificar o que está acontecendo com o indivíduo e incentivar os projetos voltados a esse tema - diz.
Mudar essa realidade passa pelo empoderamento das mulheres, propiciando a elas a estrutura necessária para romperem com o ciclo de violência, acredita a delegada.
- A mulher precisa ter como se manter, onde morar, ter acesso a creches para deixar os filhos, entre outras coisas - complementa.
Centro atua no enfrentamento da violência
Desde o final do século XIX, as mulheres mobilizam-se no Brasil e no mundo na luta pelos direitos civis, políticos e sociais. Muitas batalhas foram vencidas. Agora, a mulher tem direito ao voto e pode se candidatar, tem direito ao estudo, mas a marca da desigualdade ainda está presente na sociedade brasileira.
- Infelizmente, por vivermos em um país machista e patriarcal, ainda há várias barreiras a serem superadas. É preciso refletir sobre a igualdade de gênero. Ainda temos condições de trabalho diferentes, salários inferiores, sofremos assédio e exploração sexual. O Brasil é o quinto colocado em número de feminicídio em uma lista de 83 países - lembra a dirigente do Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, Lisia Mostardeiro Velasco Tabajara.
Para ajudar a combater essas diferenças, foi criado, em 17 de janeiro de 2014, o Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH), uma unidade da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, em parceria com Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Apoiada por diferentes entidades da sociedade civil, o CRDH atua na construção de estratégias para enfrentamento e superação da violência e afirmação dos direitos humanos. Mulheres que precisam de ajuda podem ligar para o Disque Acolhimento, pelo telefone 0800-644-5556.
Para romper o ciclo de violência
A Secretaria da Justiça e dos Direitos Humanos recebe, em média, 50 denúncias por mês no Centro Estadual de Referência da Mulher, sejam presenciais ou pelo Telefone Lilás (0800 541 0803). Segundo o secretário César Luís de Araújo Faccioli, a queda em indicadores importantes no combate à violência de gênero ocorre devido ao acompanhamento que vêm sendo feito das vítimas e à reestruturação pela qual passa o departamento voltado à defesa da mulher.
- Sabemos que o medo, inibe e, às vezes, até impede a denúncia. Então, temos de produzir uma overdose de informação sobre a rede de proteção para encorajar cada vez mais.
Para o secretário, uma das explicações para o aumento dos assassinatos no âmbito familiar está ligado à crise econômica pela qual passa o Estado:
- Existe uma questão que precisa ser enfrentada em parceria com todos os seguimentos, que é o rompimento, pela mulher, do ciclo da violência. Muitas vezes, isso não acontece em função da dependência financeira.
O secretário garante que ações nesse sentido estão sendo tomadas, como a oferta de cursos de capacitação para as mulheres.
Três mudanças de cidade para fugir do agressor
O apartamento ainda não está mobiliado, não tem mesa na cozinha nem cortinas nas janelas. Na sala, duas cadeiras de praia fazem as vezes de sofá. Aos 39 anos, a mulher de fala mansa reconstrói sua vida em uma pequena cidade do Vale do Caí após 18 anos sendo agredida verbal e fisicamente pelo homem que, olhando em seus olhos, jurou amá-la na saúde e na doença. Pela paz que hoje tem, ela abriu mão de carro, empresa, emprego e teve de mudar três vezes de cidade fugindo do agressor.
- Ele me chamava de gorda, feia, vagabunda. Dizia que eu não servia para nada. O nosso casamento foi bom por dois anos apenas - lembra a mulher, que prefere não ser identificada.
O pai de seus três filhos, dois concebidos na tentativa dela de salvar o casamento, chegou a trancá-la em um quarto até que ela desmaiasse. Só a tirou de lá quando o filho, então com 13 anos, chamou o pai para dizer que ela não estava mais "fazendo barulho". Em outra ocasião, na frente da escola do filho, o agressor a pegou pelos braços e a jogou contra o muro.
- Quando ele iria me dar um soco, a diretora não deixou. O meu braço ficou roxo das marcas das mãos dele.
Denunciado por ela, o seu ex-marido recebe visitas frequentes da Justiça e não pode se aproximar dela.
- Hoje eu consigo me enxergar como mulher, como ser humano, consigo ser feliz, brincar com meus filhos, passear com eles. Estou conquistando as minhas coisas feliz da vida, voltando a estudar - relata.
*Nome fictício para preservar a identidade