Violência
"Parecia um filme de terror", diz homem que encontrou vítima confundida com estuprador
Ele foi agredido por moradores do Bairro Jardim do Salso, em Porto Alegre, e está internado com traumatismo craniano
Ao saber que circulava pelas redes sociais o retrato falado de homem que teria abusado de uma mulher em um ônibus, a delegada Tatiana Bastos, titular da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher, presumiu que o caso poderia terminar mal. Suas suspeitas se confirmaram. No final da tarde de quinta-feira, um homem foi agredido por moradores do Bairro Jardim do Salso, na Zona Leste de Porto Alegre. O grupo acusava a vítima de ser o criminoso que estuprou uma jovem após rendê-la em ônibus da linha T1. Conforme a delegada, a vítima foi espancada por engano. Ao ver a foto do homem agredido, a mulher que foi estuprada disse que ele sequer se parece com o criminoso.
– O homem espancando não tinha nada dos traços do criminoso. As pessoas precisam se conscientizar que pegar um bandido ou um suspeito é trabalho para a polícia. Sei que todos ficam assustados com esse tipo de situação, mas não dá para sair agredindo qualquer um na rua.
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O caso ocorreu Rua 9, próximo da Avenida Cristiano Fischer. Oito pessoas teriam perseguido o homem e espancado o homem até que ele conseguiu abrigo em um centro esportivo próximo do local. Internado no Hospital Cristo Redentor, o homem está em estado regular. Tatiana faz um apelo para a que a população não haja como a polícia e reforça que qualquer informação de suspeitos deve ser encaminhada para autoridades:
– Estamos muito preocupados com o que ocorreu e trabalhando com bastante cautela para solucionar o caso. A intenção é encontrar logo o estuprador para que ele não faça mais vítimas e para que a população também não faça.
Entenda o caso
No dia 1º de junho, a polícia divulgou o retrato falado do suspeito de ter estuprado uma jovem de 19 anos, no começo do mês de maio, em Porto Alegre. A vítima estava em um ônibus da linha T1 quando o homem a rendeu com uma faca e a obrigou a descer do veículo. A polícia diz que ele age também em outras linhas, todas da Carris.
Segundo relato da vítima, o homem é branco, careca, tem aproximadamente 1m80cm e os dentes da frente separados, além de uma cicatriz na sobrancelha. A vítima contou à polícia que o suspeito levou-a para uma praça em frente ao Colégio Fernando Gomes, no Bairro Jardim do Salso, e que tirou parte da roupa da jovem.
O ataque parou quando um grupo de jovens passou pelo local. Outras vítimas foram localizadas em redes sociais, mas não registraram ocorrências.
"Parecia um filme de terror"
Após ser espancado, o homem foi buscar ajuda em um Centro Esportivo próximo ao local. Funcionários do centro contam que ele chegou nu, com as mãos amarradas por um fio de luz e completamente ensanguentado. O indivíduo estava cambaleando, pedia socorro mas não conseguia se expressar. Nenhum dos funcionários entendeu o que ele tentava dizer.
– Foi como em um filme de terror, era algo macabro de ver, chegou pingando sangue e muito assustado – conta um deles.
Na tarde de sexta-feira, as marchas de sangue ainda eram visíveis pelo pátio do estacionamento do Centro Esportivo, assim como os fios de luz. O homem estava com muitas cicatrizes e feridas pelo corpo. Logo após que ele entrou, outros dois homens correram atrás dizendo que "iriam matar o estuprador."
– Achei que ele iria morrer aqui.
Os homens foram impedidos de entrar no centro, enquanto funcionários chamavam a Brigada Militar e o Samu. Moradores e comerciantes da Rua Nove, onde teria ocorrido o fato, ouvidos pelo Diário Gaúcho dizem não saber nada sobre o que aconteceu.
Abandono do Estado está deixando a sociedade cada vez mais doente
O caso repercutiu nas redes sociais e levantou, mais uma vez, a polêmica da justiça feita com as próprias mãos. O advogado criminalista e professor da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP) Mateus Marques fala sobre o crescimento preocupante da sociedade que retribui a violência com ainda mais agressividade.
– Percebo que a população está tão carente de uma proteção por parte do Estado, em razão da total falência da segurança pública, que as pessoas já consideram normal fazer justiça com as próprias mãos. O que acaba prevalecendo é que "bandido bom é bandido morto" – afirma.
O especialista aponta a falta de policiamento nas ruas como um dos principais fatores para essa reação de agressividade das pessoas que desejam punir o bandido a qualquer custo.
– O abandono do Estado está deixando a sociedade cada vez mais doente. A população não aguenta mais sofrer com a violência dos criminosos e acaba agindo no lugar das autoridades. Mas o que precisa ficar claro é que, muitas vezes, um inocente acaba sendo prejudicado por ser confundido com um bandido.
"Não é desse tipo de justiça que precisamos"
A jovem de 19 anos, vítima da violência sexual, conta que um familiar mostrou a foto do homem agredido antes da polícia.
– A história começou a circular na internet na mesma noite. Mas ele era totalmente diferente do homem que me agrediu, não entendo como foi confundido com o estuprador – comenta.
Segundo ela, boatos davam conta de que uma mulher teria descido do ônibus, próximo ao local onde a jovem foi agredida e um homem, que desceu na mesma parada, teria ido também na mesma direção da mulher.
– Me disseram que ela se sentiu ameaçada quando o homem começou a andar atrás dela e pediu ajuda às pessoas que estavam na rua, dizendo que ele seria o estuprador dos ônibus – conta.
No Facebook, muitas pessoas comentaram sobre o assunto dizendo que agora a jovem estaria vingada.
– A minha mãe respondeu os comentários do post dizendo que o homem agredido não era o mesmo que me violentou. E mesmo que tivessem pego ele, não é desse tipo de justiça que precisamos – salienta.