Vida e Estilo



Mar dividido

Sinalização deficiente no Litoral coloca em risco a convivência entre surfistas e pescadores na água

Zero Hora percorreu três das principais praias para ver como a separação das áreas de pesca e surfe estão sendo delimitadas

29/07/2016 - 03h00min

Atualizada em: 29/07/2016 - 09h37min


Paula Menezes
Paula Menezes
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A professora Neuza Rufatto não esconde a dor quando as lembranças daquele feriado na praia, há quase seis anos, vêm à tona. O filho mais novo, Thiago, morreu em 1º de novembro de 2010, enquanto surfava. O jovem de 18 anos ficou preso a um cabo de rede de pesca, em Capão da Canoa, e se afogou.

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Desde então, com a luta de esportistas e a criação de uma ONG, a legislação avançou: a área para prática do surfe aumentou e as cores e tamanhos das placas de aviso mudaram. Muito do que é dito na lei, no entanto, ficou apenas no papel.

Zero Hora percorreu praias do Litoral – Cidreira, Tramandaí (incluindo Nova Tramandaí, Oásis Sul, Jardim Atlântico, Jardim do Éden) e Capão da Canoa (incluindo Araçá), para saber se a lei está sendo cumprida. Há praias sem sinalização, outras com alguma indicação e poucas que oferecem tranquilidade a surfistas e pescadores.

– Do jeito que está, não dá para continuar. Isso vai tirar mais vidas – preocupa-se Neuza.

De 15 de dezembro a 15 de março, as redes de pesca e os cabos são retirados do Litoral para que os turistas aproveitem o verão com tranquilidade. Mas ao fim do período de maior movimento na areia, começam as reclamações de que a região cai no esquecimento. Mesmo no inverno, surfistas e pescadores ainda dividem a praia. Uns em nome do sustento de famílias e outros pela prática do esporte.

Em um trecho de Tramandaí, a placa até é visível, mas não indica nada

A lei sobre o tema, de 1988, sofreu mudanças em 2011. Sancionada pelo então governador Tarso Genro, a área para surfistas passou de no mínimo 400 metros para pelo menos 2,1 mil metros para cada cidade banhada pelo mar. Em 2013, nova alteração deu tamanhos maiores e cores para três tipos de placas: verde (livre para surfe e lazer), amarelo (para as chamadas áreas de escape, que proíbem as duas práticas e servem de alerta) e vermelho (área de pesca e de perigo para surfistas).

A própria lei estadual deixa brechas para interpretação. Não há, por exemplo, a especificação das distâncias onde deve constar uma placa informativa. A decisão, portanto, pode variar conforme a cidade. Cabe à Brigada Militar fiscalizar. Outra reclamação é de que as próprias placas seriam insuficientes, porque muitos surfistas não conseguem vê-las do mar.

No inverno, mar aberto para riscos e incômodos

O ponto mais crítico está em Cidreira, a 120 quilômetros de Porto Alegre. Não há nenhuma indicação de onde termina a área de surfe e começa a de pesca. Os surfistas que vão ao local com frequência usam construções como pontos de referência. Mas, e quem chega para surfar pela primeira vez?

– De vez em quando, colocam as placas, mas não duram muito. Maresia e vento estragam. Mas é raro ter placa. Os pescadores não respeitam a área de surfe, dá muito conflito, mas a gente tenta levar pelo amor ao esporte – lamenta o surfista Marco Antônio Dossin, 40 anos.

Outro surfista aponta que, mesmo com o aumento da área para o esporte, o perímetro ainda não é suficiente para os dias de maior corrente:

– No inverno é que tem esse problema da manutenção das placas, porque o pessoal aposta no turismo no verão e esquece a praia no inverno. Acho que a área de surfe deveria ser toda a zona urbana do município. Até três mil metros não é nada quando tem corrente – diz o bancário Alexandre Mendes, 40 anos, que surfa há 30 em Cidreira.

Para quem pesca, a situação também é incômoda. A Associação dos Pescadores de Cidreira já investiu recursos próprios para colocar placas na orla. Agora, cobra da prefeitura um investimento.

– Essa questão de prevenção e sinalização, historicamente, tem se dado por iniciativa dos pescadores. Com recursos nossos, sinalizamos com postes de eucalipto tratado, inclusive a área de surfe. Porém, os anos passaram e não houve reposição. Acho que estava na hora de as prefeituras se alertarem dessa situação e sinalizar área de pesca e surfe – comenta o pescador profissional Paulo José Fernandes, 55 anos, conhecido como Paulo Pesca, que exerce a atividade desde 1979.

A respeito da declaração de surfistas sobre a "invasão" de pescadores na área para o esporte, os profissionais negam que isso ocorra. Garantem que, com a demarcação, existe respeito da categoria pelo que é dito na lei. Daniel Guglieri, 37 anos, outro pescador que atua em Cidreira, diz que entrou em contato com a prefeitura. O impasse, segundo ele, não é exatamente a confecção das placas e, sim, problemas para colocá-las na areia.

– Ninguém quer que alguém perca a vida por falta de sinalização. A prefeitura de Cidreira disse que a sinalização está pronta e não tem pessoal para colocar – conta.

3,4 mil metros sem nenhuma orientação à beira da praia

Em Tramandaí, perto de Cidreira, há algumas placas. Porém, em diversos pontos, a situação é deficitária. Há uma indicação de área de surfe, que em questão de poucos metros é seguida por uma de área de escape, exatamente onde está a plataforma. Depois do ponto, são 3,4 mil metros sem nenhuma orientação, até que se encontra restos de uma placa em Nova Tramandaí, apenas quem faz muito esforço consegue ver um peixe pintado ali.

Em Oásis Sul, Jardim Atlântico e Jardim do Éden não havia uma sinalização sequer. Ao longo do trajeto, é possível ver nomes de pescadores em troncos de madeira, indicando quem seria o dono do cabo de rede. A identificação do equipamento de pesca profissional, quando ele não está com o proprietário, é obrigatória, e deve conter nome, número da carteira e endereço completo do responsável pelo material. Assim como para os surfistas é necessário o uso do leash (a cordinha que prende o praticante à prancha pelo tornozelo).

Trecho mais seguro em Capão

Em Capão da Canoa, a situação é um pouco melhor. Da plataforma de Atlântida até Araçá, o surfista pode se considerar livre do perigo – ao menos, na teoria. Foi nessa área que Thiago, filho de Neuza Rufatto, morreu há cerca de seis anos. À época, segundo amigos e familiares, não havia sinalização no trecho.

De lá para cá, a realidade melhorou bastante, mas ainda precisa de ajustes. Logo no começo do calçadão de Capão, para quem vem de Atlântida, uma placa que indicaria área de surfe está apagada. Atrás dela, por ironia, uma sinalização antiga está em pé. No caminho até Araçá (quando, enfim, há uma indicação verde), a sinalização é ausente no trecho que é reservado ao esporte.

No limite com a praia de Guarani, encontra-se uma placa de pesca em bom estado, e, nesse ponto, começam os cabos e as redes dos pecadores. Pela lei estadual, seria necessário ter um ponto de escape antes do início da outra "metade" da praia.

– É bem melhor para nós também, para evitar os acidentes. Mas eu acredito que a área é insuficiente, sim, porque tem muito pescador para pouca área – avalia Valdeci Dutra, 57 anos, pescador há uma década.

Um mês após a morte do filho, Neuza Rufatto criou a ONG MaRSeguro para aletar sobre os perigos do litoral gaúcho. Distribuiu panfletos no veraneio seguinte e entrou com processo contra a prefeitura que ainda não teve desfecho. Atualmente, a professora diz que está "meio parada" no alerta. As poucas mudanças a desanimaram.

– Dos pais de surfistas que conheço, sou a única que entrou com processo. A intenção é que isso não aconteça mais. Sei a dor de perder um filho jovem, que adorava viver – lamenta.

Nos anos 2000, o ex-presidente da Federação Gaúcha de Surfe Virgilio Matos conseguiu um estudo, por meio da UFRGS, de que os 400 metros previstos na lei não seriam suficientes para evitar que a correnteza levasse surfistas às áreas de pesca. Comemorou mudanças, mas quer mais. Virgilio acredita que muitos pescadores não estão na atividade para sustento.

– Soubemos de um pescador que trabalhava em Gravataí. Como ele pode trabalhar lá e manter rede no Litoral ao mesmo tempo? – questiona.

O surfista e comunicador da Rádio Atlântida, Ki Fornari, corrobora com a opinião de Virgilio.

– No inverno, o litoral fica jogado às traças. A gente vê que podem ocorrer mortes a qualquer momento, justamente pela desinformação – completa.

Os pescadores negam que haja clandestinos na categoria.

– Existe, mas não com cabo na água. Com rede de passeio, outros tipos de rede. Mas é muito pouco. A fiscalização é rigorosa – diz Paulo Pesca.


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