Notícias



Superação na ponta dos pés

Conheça a história da bailarina da periferia de Alegrete que vai dançar em Nova York

Dandara Amorim Veiga, 19 anos, ganhou bolsa de estudos numa das mais conceituadas escolas de dança do mundo e viaja neste sábado para os Estados Unidos 

03/09/2016 - 08h00min

Atualizada em: 03/09/2016 - 08h01min


Aline Custódio
Aline Custódio
Enviar E-mail

Desde a infância, a filha de pais capoeiristas Dandara Amorim Veiga, 19 anos, de Alegrete, a 500km de Porto Alegre, dividiu-se entre as rodas de capoeira e os palcos de dança. Em ambos, estreou antes de começar a caminhar. Secretamente, porém, já tinha escolhido o caminho que trilharia na vida. No mês passado, a garota que descobriu o balé aos nove anos num projeto social para crianças carentes teve a certeza: conquistou uma bolsa de estudos de um ano na Alvin Ailey American Dance Theater, em Nova York (EUA), escola de dança contemporânea consagrada mundialmente. Entre mais de cem aspirantes a bailarinos do mundo inteiro, Dandara e outros nove foram selecionados.

A partir deste sábado, pelos próximos 12 meses, ela fará parte da escola de dança da Alvin Ailey, companhia fundada em 1958, em meio à luta dos negros por direitos civis. A gaúcha tem a chance de, após o período de estudos, permanecer na equipe, como profissional.Nascida na periferia de Alegrete, ainda no colo, Dandara era incentivada a seguir a carreira dos pais. Por isso, ganhou alongamento e força ao praticar capoeira todos os dias.

– Olhava filmes de dança e ficava encantada. Mas era uma menina muito envergonhada, com medo. Guardava aqui dentro (aponta para o coração) o sonho de, pelo menos, entrar numa sala de balé – confidencia.

Nos palcos, a estreia da guria ocorreu aos dez meses, como recorda a avó paterna, a doméstica Maria Luiza Lima de Moraes, 70 anos. Nos braços de uma bailarina, Dandara participou de uma coreografia afro no Dança Alegre, evento promovido pela prefeitura que reunia centenas de dançarinos do Brasil e do mundo para apresentações dos mais diferentes ritmos.

– Choro cada vez que ela dança bolero. Lembro da primeira vez que a vi no palco, ainda bebê. A música de abertura do Dança Alegre era um bolero –relembra Maria Luiza.

Mudança de vida
Quando tinha seis anos, Dandara sofreu com a separação dos pais. E o desejo de ingressar no balé ficou mais distante. O pai se mudou para outro Estado e nunca mais contatou a família. A mãe, Liliane Rios de Amorim, hoje com 42 anos, se mudou para uma casa menor, num bairro distante mais de 10km do Centro, e começou a trabalhar como camareira e doméstica para sustentar Dandara e os outros filhos, João Antônio, Jorge Miguel e Janaína, hoje com 14, 17 e 25 anos, respectivamente.

A ajuda e a força para ultrapassarem o período vieram da avó paterna. Mas foi Janaína, atualmente dona de casa no Rio de Janeiro, que, ao saber do sonho da irmã, a inscreveu no projeto social e recreativo de balé Primeiros Passos, criado pela professora Jacqueline Zacarias Silveira para crianças carentes das escolas públicas de Alegrete. As aulas eram gratuitas, uma vez por semana, e ela ainda receberia a malha e a sapatilha. Como treino, se alongava na cama, na janela de casa e no caminho para a aula. Ações que repete até hoje.

Projeto social
Dos nove aos 13 anos, Dandara integrou o projeto social Primeiros Passos. Foi numa apresentação de final de ano dos alunos que ela acabou sendo descoberta pela própria Jacqueline. A garota esguia tinha 13 anos e, dançando, 'lembrava uma pluma', compara a professora.

A maior parte das bailarinas profissionais costuma iniciar os estudos ainda antes de ingressar no ensino fundamental. Para os padrões exigidos pelo balé, Dandara estava começando tarde.

Desconhecendo o histórico de dificuldades financeiras da família da menina, a professora a chamou para ser aluna na Escola de Dança Ballerina, fundada por ela na cidade em 1984. Jacqueline queria lapidar aquele diamante.

– Qualquer movimento no corpo da Dandara tem um significado. Ela transmite uma emoção para quem a está assistindo. Através do corpo da Dandara, a gente consegue viver a dança que ela tanto ama – descreve Jacqueline.

Jacqueline orientando Dandara nas aulas em Alegrete

Vida solitária
É a avó Maria Luiza, em lágrimas, que especula de onde vem a força da menina franzina:

– A vida dela é a dança. Via a Dandara no palco dançando, mas sempre sozinha. Ela nunca teve uma família unida para assisti-la ou ajudá-la antes dos espetáculos, como as outras. A mãe sempre trabalhou muito, e o pai foi embora. Então, choro quando a vejo dançando porque acho que a família deveria ter acompanhado mais. A trajetória dela é assim: está sempre só, mas de cabeça erguida e ajudando as colegas no que for preciso.

Mesmo sabendo que a neta queria apenas seguir no palco, Maria Luiza exigiu que ela concluísse o ensino médio e chegasse à universidade. Seguindo o pedido da avó, passou nas provas do Enem e ingressou em 2015 na Educação Física da Urcamp. Fez dois semestres e trancou o curso.

De manhã, ajudava a minha professora. Depois, dava aula no Primeiros Passos. Em seguida, lecionava num projeto da faculdade. E ainda fazia aula de balé todos os dias. No que restava de tempo livre, ficava ensaiando – relembra Dandara.

Alvin Ailey
Aos 14 anos, Dandara conheceu por acaso o trabalho da companhia norte-americana e prometeu para si que, um dia, faria parte dela:– Nas apresentações e competições, me incomodava muito ser a única bailarina negra. Pesquisei sobre o tema e encontrei a Alvin Ailey. Então, pensei: é lá que quero dançar. Na audição realizada em junho deste ano, em Nova York, Dandara conseguiu deixar marcas. O haitiano Jean Emile, bailarino, coreógrafo e professor da Alvin Ailey, diz que ela é especial. Foi ele quem, ao vê-la numa competição na Itália, a convidou para fazer um curso de verão em Nova York na Alvin Ailey.

– É daqueles talentos únicos. Há uma brasilidade inerente nela, que pode ser resumida na perseverança característica do brasileiro quando encontra a sua paixão. Mas o talento dela não para por aí. É quase como se ela tivesse nascido para dançar – afirma Emile, em entrevista por telefone.

Com a mãe, antes da ida para Nova York

Agulha inesquecível
Como bailarina, Dandara, que recebeu este nome em homenagem à mulher guerreira que lutou ao lado do marido, Zumbi dos Palmares, passou a colecionar medalhas nas competições disputadas. Entre 2011 e 2015, ela somou 25 premiações entre apresentações solo e em grupo no Bento em Dança, em Bento Gonçalves, na Serra gaúcha. Das histórias que guarda do maior festival de dança do Estado, uma deixou marcas reais na menina. Foi em 2012, quando se apresentou com uma agulha cravada no pé.

– Pegava sapatilhas velhas das colegas e as reformava para usá-las. Naquele dia, estava costurando a minha quando mudaram a ordem do espetáculo e me obrigaram a entrar. Como não tinha concluído a costura, dancei um repertório neoclássico com a agulha enfiada por completo no pé. Estava tão focada que esqueci a dor. Tirei terceiro lugar – recorda, aos risos.

Com a avó Maria Luiza

Esforço
No primeiro ano no projeto Primeiros Passos, a adolescente contou com a ajuda de Maria Luiza, que trabalhou mais horas na limpeza para pagar a mensalidade e os uniformes. Quando Dandara temeu abandonar o sonho por não ter mais dinheiro, ela e a avó passaram a costurar os figurinos das apresentações.

Para ganhar as fotos dos espetáculos, Dandara ajudava na produção das imagens das colegas. E, mesmo escondendo a tristeza de não ter o pai por perto ou de passar os dias esperando pela mãe, Liliane, que trabalhava demais, jamais parou de dançar. Quando não tinha o dinheiro do ônibus até a escola, ia caminhando. Para não ver a filha sofrer ainda mais, a mãe sugeriu que ela fosse viver na casa de amigos da família, vizinhos da Ballerina. A menina ficou lá três meses, até se mudar para a casa da avó.

– Tudo é compensado com a determinação e aquele sonho que ela sempre correu atrás – emociona-se Liliane.

Pelo mundo
O talento da adolescente foi percebido também por um dos mais conceituados bailarinos da América do Sul, em 2014, durante o festival Bento em Dança. Impressionado com a menina que unia suavidade e força na mesma intensidade, o argentino Raúl Candal, que durante 20 anos foi o primeiro bailarino do Teatro Colón de Buenos Aires, a avaliou na época:

– Compensa com a alma o que não construiu quando criança. A coisa mais fácil do mundo é montar uma coreografia para ela.


No mesmo ano, a italiana Claudia Zaccari, primeira bailarina do teatro de Roma e professora de balé, se encantou com a habilidade de Dandara durante uma aula de balé clássico no Bento em Dança.

– Meus olhos não saiam da menina bonita, com corpo atlético e com muitas flores no cabelo. Seus movimentos me fixaram. Mas foi só no ano seguinte que a conheci e soube do desejo de se tornar profissional – disse Claudia, em entrevista via Facebook.

Desconhecendo a situação financeira da menina, Claudia a convidou para participar do DanzaFirenze, uma competição anual de dança em Florença, na Itália. Em Alegrete, uma grande corrente se formou entre os moradores para pagar as despesas da viagem. Na Ballerina, foram feitos brechós e rifas que ajudaram na arrecadação do dinheiro.Como retribuição, Dandara conquistou o primeiro lugar na competição que envolvia dançarinos do mundo todo. Lá, Claudia diz, professores renomados, como Andréa Baker, Guy Le Bock, Rosanna Brocanello e o próprio Jean Emile, se empolgaram com a menina.

– Existem muitos dançarinos bons em técnica. Mas são poucos os que tocam profundamente na alma. Dandara é um deles – garante Claudia.

Novos rumos
Com o dinheiro do prêmio conquistado no festival da Itália, a guria de Alegrete viajou em janeiro deste ano para Montana, nos Estados Unidos, onde tirou o primeiro lugar numa competição internacional que lhe deu prêmio em dinheiro e uma bolsa de estudos de quatro meses na escola de dança da cubana Anarella Sanchez, em Leiria, Portugal. Nem voltou para casa. Ao desembarcar em São Paulo, pensando que seguiria para Alegrete, soube que Claudia pagaria as despesas dela em terras portuguesas. Nos primeiros sete meses deste ano, vividos fora do Brasil, Dandara fez aulas de balé clássico e contemporâneo das 9h às 21h.

– Foi algo bem forte, mas que precisava para amadurecer e conhecer mais o meu corpo – explica a adolescente.

Em Portugal, a gaúcha conquistou outras dez medalhas na Dance World Cup Portugal e na Leiria Dance Competition. Com o dinheiro, se inscreveu no curso de verão da Alvin Ailey e só voltou ao Brasil em agosto. Agora, se prepara para viver nos Estados Unidos. A chefe da mãe de Dandara se ofereceu para dar aulas gratuitas de inglês à menina.

Nos Estados Unidos, ela dividirá um apartamento com outros aspirantes a bailarinos profissionais. Já há um movimento em Alegrete e na própria Alvin Ailey para arrecadar fundos que a ajudem a se manter em terras estrangeiras no período.

Foco
Determinada, Dandara mantém o foco:

– O meu maior sonho é poder afirmar que sou uma bailarina profissional e que vivo da coisa que mais amo. Ainda estou estudando e correndo atrás de uma oportunidade de trabalho. Mas é impossível não me sentir uma vencedora. Por este pouco tempo, consegui conquistar tantas coisas que, às vezes, muitos bailarinos não conseguem. Tenho que acreditar.

Ao 12 anos, ela rabiscou numa folha de papel uma menina segurando balões em meio a uma estrada e escreveu a mensagem que carregaria como lema: 'Sonhos não têm pernas, mas você tem. Corra atrás deles!' Dandara, porém, não corre. Ela dança em direção a eles.

Para ajudar
Mesmo com a bolsa de estudos, Dandara precisa de dinheiro para outras despesas. Amigos pretendem fazer uma campanha. Ela abriu uma conta para receber doações:
* Banco do Brasil
* Nome: Dandara Amorim Veiga
* Agência: 0144-9
* Conta corrente: 55.257-7



MAIS SOBRE

Últimas Notícias