Notícias



Rio Grande Afora

Conheça a história da família de três pessoas que são os últimos habitantes do Rincão do Inferno

Encravada em território quilombola, localidade de Bagé abriga apenas três moradores que não cogitam deixar o lugar

22/04/2017 - 07h00min

Atualizada em: 22/04/2017 - 07h01min


Aline Custódio
Aline Custódio
Enviar E-mail

Pregada numa porteira de madeira, a placa determina que é proibido passar. Ao atravessá-la, pouco se ouve ou se vê, a não ser o cenário verdejante, os grilos, o canto dos pássaros, o som das cigarras e mugidos distantes. Os próximos 8km, aproximadamente, não são o maior problema para quem desconhece a região. A falta de moradores, sim. Fora o trilho dos carros, não há como saber o rumo certo. Uma discreta prancha plástica com menos de 50cm de comprimento revela o nome da localidade: Rincão do Inferno. Distante 90km do Centro de Bagé, a área de 45 hectares ganhou este nome por ter um solo pedregoso, coberto por vegetação rasteira e cactos.

No limite entre Bagé, Caçapava do Sul e Lavras do Sul, margeando o Arroio Camaquã-Chico, a última das oito porteiras é aberta antes de se ingressar nas terras cercadas da família Franco. Lá, vivem os últimos moradores do Inferno: os aposentados Onélia Franco Marques, 79 anos, o marido, Alcíbio Franco, 63, e o irmão dele, Enildo Pires Franco, 64, o Nidinho. Eles mantêm viva a linhagem do escravo Anastácio Franco, avô de Onélia. As terras da família fazem parte do território quilombola Palmas, de 837,9 hectares, reconhecido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em fevereiro deste ano.

Costumes

A chegada dos pais de Onélia ao Rincão se deu depois de percorrerem, com os 11 filhos, as estâncias da região em busca de trabalho. Maria da Conceição e Nélio Marques Franco ganharam da mãe adotiva dela o pedaço de chão duro. Sem terra fértil, plantavam a quilômetros de distância e criavam cabras. Na infância, Onélia lembra de caminhar para apanhar butiás nos morros vizinhos. Até hoje, ela arrasta os pés para subir cerca de cem metros e avistar o local.

– A gente buscava para fazer “licore” – diz ela, que preserva a fala singular dos moradores, com uma letra a mais nos finais de palavras terminadas em R, como flore, calore e amore.

Não arredam pé

A família de Alcíbio e Nidinho chegou logo depois. Foi o patriarca, Felicíssimo Alves Franco, falecido há mais de 40 anos, quem construiu uma choupana de barro de duas peças para abrigar a mulher e os oitos filhos. Quando não havia energia elétrica e água encanada, situação resolvida em 2007, pais, irmãos, filhos e primos dos três foram morrendo de velhice ou deixando o rincão, um de cada vez.

Marcilina, mãe de Alcíbio e Nidinho, morreu em 2016, aos cem anos. Ao olhar para a casa da família ainda de pé ao lado de uma de alvenaria construída por ele, Nidinho diz:

– Vou sempre conservar a casinha, “inté” a hora que Deus me der forças.

Onélia não pretende deixar a localidade.

– Só saio daqui morta – reforça a mulher, que esteve em Porto Alegre algumas vezes e não gostou do que viu:

– Tem muito movimento.

Ao contrário de Onélia e Alcíbio, Nidinho jamais esteve na Capital. Não sai do Rincão do Inferno há um ano. A última vez foi para se despedir da mãe morta, enterrada no Centro de Bagé, onde estava internada.

Transformação pela chegada da luz

Há dez anos, lampiões e lamparinas foram trocados por lâmpadas, geladeiras, televisor e celulares nas terras dos Franco. A luz também garantiu o fim da água carregada em baldes. Onélia e Alcíbio têm chuveiro elétrico, água encanada com a ajuda de uma bomba elétrica e são apaixonados por televisão – a primeira deles na vida. Nidinho ainda prefere o banho frio no rio ou na torneira, que serve de chuveiro.

A chegada da energia elétrica também deu visibilidade aos remanescentes. Em 2010, inclusive, foi produzido um filme no Rincão, misturando realidade e ficção, que teve a participação dos três. A partir daí, as visitas de forasteiros ficaram mais constantes. Segundo Onélia, eles ficam impressionados com a beleza ainda rude do lugar.

Outras novidades que vieram com a luz são a cobrança simbólica pela estadia nas terras da família e a oferta de compotas de doces – produzidas pela aposentada –, refrigerante, água e cerveja geladas a quem quiser comprá-las.

Os campistas ficam instalados próximos ao rio, sem qualquer vínculo com a família, quase 1km distante das casas. O dinheiro já ajudou Onélia a melhorar a própria moradia.

Saiba mais sobre o Rincão

/// O Rincão do Inferno é apenas uma das quatro regiões que compõem o quilombo das Palmas, formado também pelos rincões do Alves e da Pedreira e por Campo do Ourique. De Porto Alegre até a estrada vicinal que dá acesso ao quilombo, são aproximadamente 295km.

/// As comunidades quilombolas são constituídas por descendentes de escravos, que se autodefinem a partir das relações com a terra, a ancestralidade, as tradições e as práticas culturais próprias.

/// A política de regularização fundiária determina que as terras reconhecidas por decreto presidencial – último passo que ainda falta para Palmas – sejam ocupadas apenas por estes remanescentes, como é o caso dos Franco.

/// O processo de regularização de Palmas no Incra foi aberto em 2005 e teve a publicação do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), em 2011.

/// Neste período, foram cadastradas 23 famílias pertencentes à comunidade. O próximo passo é a publicação de um decreto presidencial autorizando as desapropriações. O Incra identificou 19 proprietários não descendentes de escravos em parte do território.

Fontes: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e tese Africanidade e Contemporaneidade do Português de Comunidades Afro-Brasileiras no Rio Grande do Sul, defendida por Antonio Carlos Santana de Souza, em 2015, na Ufrgs.




MAIS SOBRE

Últimas Notícias