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Lomba do PInheiro

Veja como um loteamento que "não existia" se tornou a maior regularização fundiária da Capital

Com a legitimação de posse, depois de 15 anos, os moradores podem, agora, ter cadastros oficiais junto a companhias de energia, água e telefone

14/04/2018 - 08h00min


Guilherme Justino
Guilherme Justino
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Ronaldo Bernardi / Agencia RBS
Com 33,6 hectares e 5 mil moradores, o Mariante tem agora centenas de habitantes que podem afirmar: são legalmente donos dos imóveis em que moram

"No mês que vem, vamos ter asfalto". É o que ouvia, todo mês, o zelador Milton Borges Bueno, 62 anos, quando, em 2001, foi morar no Loteamento Condomínio Mariante, localizado na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre. A filha, que então tinha três anos, hoje se formou como técnica em enfermagem. Diariamente, ela, Milton, o restante da família e todos os vizinhos ainda precisam caminhar por terra batida, passar por grandes buracos e conviver com o lamaçal quando chove para poder chegar e sair de casa.

Depois de dois anos ouvindo essa promessa ser repetida, Milton viu que a situação não mudaria enquanto ninguém se dispusesse a representar os desejos dos moradores diante da prefeitura. Resolveu agir. Assim, começou uma jornada que, 15 anos depois, foi muito além da pavimentação: garantiu água, luz, telefone, saneamento e endereço cadastrado para os moradores da área.

A falta do asfalto era apenas um dos problemas da comunidade na época. O esgoto corria a céu aberto, a luz vinha puxada de outras localidades, faltava água. Os moradores recorriam à prefeitura pedindo providências, mas ouviam que não havia o que fazer enquanto o terreno, ocupado irregularmente desde o final da década de 1980, fosse considerado irregular.

— A prefeitura nem dizia que não ia fazer: afirmava que nosso loteamento estava "fora dos critérios". Então, oficialmente, nós não existíamos. Como poderíamos exigir que a prefeitura colocasse dinheiro em um local não regularizado? — perguntava Milton, já disposto a mudar aquela situação.

Ele percebeu que seria preciso buscar a regularização dos imóveis no terreno para poder exigir ações da prefeitura. Enfrentou resistência de parte dos moradores, que não viam vantagem em sair da situação irregular. E, entre os demais vizinhos, muitos não acreditavam que os imóveis pudessem mesmo, um dia, ser legalmente considerados seus.

– A descrença era grande. Mas eu sabia que aquilo era o certo a se fazer – desabafa Milton.

Ronaldo Bernardi / Agencia RBS
Milton acreditou e não desistiu de lutar pelo sonho que hoje vê realizado

Pouco a pouco, enquanto o morador que se tornou líder comunitário convencia os vizinhos a juntarem os documentos necessários, o local tomava forma. A participação constante no Orçamento Participativo foi dando legitimidade ao loteamento, bem como os esforços para deixar a irregularidade. Assim, postes foram erguidos, registros de água apareceram nas casas, o esgoto já não mais corria pelas ruas.

O resultado demorou, mas finalmente veio: no final de março deste ano, com a entrega de um total de 498 matrículas, foi concluída na Lomba do Pinheiro a maior regularização fundiária de um loteamento irregular em Porto Alegre. Com 33,6 hectares e 5 mil moradores, o Mariante tem agora centenas de habitantes de longa data que podem afirmar: são legalmente donos dos imóveis em que moram.

Como o Condomínio Mariante conseguiu se regularizar

A regularização fundiária é considerada uma política pública – assim como saúde, educação, segurança, entre outras. O poder público, por lei, é obrigado a dar conta das áreas irregulares como parte do direito à moradia. E a regularização dessas áreas, como era o Loteamento Condomínio Mariante, fica sob responsabilidade de cada município.

– O município, ao realizar a regularização, está reconhecendo aquela comunidade e procurando melhorar a vida de quem mora ali. Quando Porto Alegre, agora, olha para aquela comunidade, vê ela como um todo, nas suas questões ambientais, urbanísticas, de serviço público. E traça uma espécie de cronograma para o melhoramento dela. É um processo lento porque é feito em etapas, leva tempo para regularizar. Mas é de extrema importância – explica Simone Somensi, procuradora-chefe da Procuradoria de Assistência e Regularização Fundiária (Parf).

Ou seja: não só para os moradores viver em uma área regularizada tem significado. Também para o município, que cuidou juridicamente da questão por meio da Procuradoria-Geral do Município (PGM), era importante garantir, legalmente, habitação para aqueles que já estavam ali.

Novos direitos e deveres

Com a legitimação de posse, os moradores podem agora ter cadastros oficiais junto a companhias de energia, água e telefone. Viver em um lote regularizado significa ainda que têm endereço certo e podem informá-lo em qualquer cadastro, além de facilitar o recebimento de documentos e encomendas pelos Correios. Ao mesmo tempo, quer dizer também que os moradores passarão a ter de pagar Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU).

– Eles entraram agora na vida formal. Vão ter que se organizar na sua propriedade como se tivessem um apartamento no Centro, por exemplo. Tem que pagar imposto, despesa de cartório. Mas, na hora de vender, não é um contrato de gaveta: é uma escritura pública de compra e venda, feita em tabelionato. Se falecer o titular, é preciso fazer um inventário, mas os herdeiros terão direito àquela área. São alguns dos ônus e bônus da propriedade – completa Simone.

Tendo já garantidos seus direitos em relação à posse dos imóveis, os moradores que conseguiram regularizar sua situação agora querem também ver o poder público cumprir seus demais deveres. As ruas do loteamento ainda carecem de asfalto – problema que vem desde que a área começou a tomar forma, há cerca de 20 anos. Mas a cobrança já começou, e os moradores pelo menos agora sabem que não estão mais "fora dos critérios", como acontecia antes da regularização.

"Significa muito para nós"

Ronaldo Bernardi / Agencia RBS
Liziane e o marido estão orgulhosos de ter uma casa para chamar de sua

Questionada sobre o que sente sabendo que pode, enfim, chamar a casa onde mora de sua, Liziane Fredo Bitencourt, 33 anos, responde logo.

– É só ver pelo sorriso – diz, alegre, a dona de casa.

Morando lá desde 1995, quando chegou ao loteamento com a mãe, Liziane hoje vive com o marido, Marcos Roberto Dias Fagundes, a filha deles e um irmão. Ela lembra de quando o local, então irregular e pouco assistido pelo poder público, parecia uma terra abandonada. Em vez das três linhas de ônibus que atendem a comunidade hoje em horários regulares, apenas uma linha, que só passava a cada seis horas, aproximadamente, chegava até lá na década de 1990. A quem reclama de atrasos dos coletivos, ela diz:

– Vocês não sabem como era. Isto aqui está o paraíso agora – celebra Liziane.

Ronaldo Bernardi / Agencia RBS
Zelir guarda com carinho e cuidado os documentos que comprovam a posse da sua residência

A alegria é também compartilhada pela dona de casa Zelir Albani, 47 anos, que, ao receber a reportagem, foi até a gaveta do guarda-roupa onde mantém seu título guardado com cuidado e fez questão de mostrar os documentos que comprovam sua posse.

– Guardo com o maior carinho. Isto significa muito para nós – descreve Zelir.

Para Milton Borges Bueno, que assumiu sozinho o papel de líder comunitário no Loteamento Mariante, é a realização de um sonho poder, agora, segurar em mãos os papéis que provam que a residência é legalmente dele e da família.

– Ter esse título de posse é uma sensação de estar pisando no chão que é teu, de ser dono, de finalmente poder dizer que temos uma casa própria.

Nos 15 anos que se passaram desde que começou a se informar sobre o processo de regularização, Milton conta que esteve tentado a desistir de tudo. Mas pensou: "Se a PGM, que fica lá longe, está firme, por que eu, que moro aqui, vou desistir?".

Dos 770 lotes identificados no local, 272 não puderam ser regularizados por estarem em áreas de preservação permanente – já que há um curso de água em parte do loteamento –, porque estão em zonas consideradas de risco ou porque os moradores permaneciam ali de aluguel, já que a posse só pode ser dada a quem mora no imóvel.

Linha do tempo: a regularização do Loteamento Mariante 

Ronaldo Bernardi / Agencia RBS

2003

Em busca de mais assistência do poder público, moradores procuram a PGE para se informar sobre o processo de regularização do loteamento.

2011

Começa o registro jurídico na Procuradoria-Geral do Município (PGM). Moradores começam a juntar a documentação.

2015

A demarcação urbanística é oficializada junto ao Registro de Imóveis. Assim, cada lote começa a ser identificado.

2016

O loteamento recebe uma matrícula de regularização geral, abrindo caminho para os registros específicos por morador.

2017

As primeiras 150 matrículas individuais de legitimação de posse são entregues em setembro, com outras 139 em novembro, e 98 em dezembro.

2018

As últimas 111 matrículas são entregues, concluindo o processo de regularização fundiária no loteamento.

O passo a passo para a regularização

- Se é desejo da comunidade que a área onde vive seja regularizada, o ideal é que seja criada, se já não existir, uma associação de moradores.

- Essa associação vai representar o desejo da comunidade diante do poder público e deve se responsabilizar por funcionar como um "meio de campo".

- Quem trabalha com a regularização de terrenos é a Procuradoria-Geral do Município (PGM). Em Porto Alegre, casos de ocupações devem ser levados ao Departamento Municipal de Habitação (Demhab).

- Para entrar com o pedido de regularização, é necessário apresentar uma série de documentos que identifiquem o morador e ajudem a comprovar que ele vive naquele imóvel.

- Para quem prefere entrar com um pedido individual, somente para o seu lote, o recomendado é procurar um advogado ou a Defensoria Pública.

Cuidados para não cair em ciladas na compra de um imóvel

- Não se deixe enganar pelo preço baixo de um imóvel: é preciso ver mais do que o valor de mercado para não acabar se incomodando com a aquisição.

- Confira direitinho a localização, tirando dúvidas também com os vizinhos, e não só com o vendedor ou o corretor de imóveis. Observem bem, ainda, o estado de conservação.

- Muita atenção à documentação: se a propriedade for usada, solicite a matrícula atualizada no cartório em que o registro foi feito para ver se o imóvel está regularizado.

- Esse documento é uma espécie de histórico da propriedade. Ali é possível ver se o financiamento foi mesmo quitado ou se existe risco de penhora, por exemplo.

- Peça, ainda, uma certidão negativa de tributos para ter certeza de que o IPTU está pago e a área construída no terreno corresponde ao que foi declarado ao município. 

- Se houver áreas não declaradas — como um "puxadinho" que não foi comunicado à prefeitura —, um financiamento para reforma do imóvel pode acabar sendo negado.

- Caso a propriedade esteja em um condomínio, verifique com o síndico ou a administradora se há mensalidades atrasadas ou multas que não foram pagas. 

Milhares em situação irregular

Depois de ter regularizado a situação do Loteamento Condomínio Mariante, o município quer concluir os processos envolvendo mais três comunidades ainda no primeiro semestre. A previsão de entrega de matrículas para os próximos meses é a seguinte:

- Mais 450 lotes até o fim do primeiro semestre

- 800 lotes até o final do ano

- 600 lotes no primeiro semestre de 2019

- Mil lotes até o final de 2019

- A perspectiva, em Porto Alegre, é de se conseguir realizar uma média de 1,5 mil matrículas por ano a partir de 2018.

- Ainda há cerca de 300 áreas com loteamentos irregulares e clandestinos na Capital. A PGM não soube precisar o total de moradores que precisam de regularização nessas áreas.

Fonte: Procuradoria-Geral do Município (PGM) de Porto Alegre

Fique por dentro

Loteamentos irregulares, loteamentos clandestinos e ocupações podem acontecer tanto em áreas públicas quanto privadas. Cada termo tem significado diferente. Confira:

Loteamento clandestino

É aquele em que o proprietário vende lotes sem qualquer protocolo no município, sem que haja qualquer planta ou projeto.

Loteamento irregular

É aquele em que o chamado "processo de parcelamento do solo não foi concluído" junto ao município. Ocorre quando o proprietário ou um terceiro não tenham implantado toda a infraestrutura, ou ainda quando não finalizaram a abertura de matrículas no Registro de Imóveis.

Ocupação

Chamada, pelo Plano Diretor, de "assentamento autoproduzido", ocupação significa invasão. Ocorre quando alguém ocupa um imóvel sem qualquer vínculo contratual com o proprietário e sem pagar. Isso configura posse sem concordância do titular, o que geralmente leva a pedidos de reintegração de posse na Justiça.


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