Na Restinga
ONG fundada por gari de Porto Alegre, Renascer da Esperança completa 25 anos
Atualmente, 380 crianças e adolescentes recebem atendimento no local em horário inverso ao da escola
“Alguns pensam que o problema é de ninguém, mas é preciso ver que ele é seu também”. A plenos pulmões, um grupo de crianças e adolescentes cantava Um Mundo Bem Melhor, versão brasileira do clássico We Are The World, quando a reportagem chegou à sede do Renascer da Esperança, ONG da Restinga, na zona sul de Porto Alegre. Os versos serão apresentados na festa de Natal da instituição, que também vai celebrar seus 25 anos de existência, na próxima quarta-feira, mas bem que poderiam servir de lema de vida para Rozeli da Silva, 55 anos, gari aposentada e fundadora da iniciativa. Há quase 30 anos, a gari, então analfabeta, sonhou que “cuidava de crianças”.
Leia mais
Menino pede cavalo ao Papai Noel e tem o desejo atendido graças a rede de solidariedade
Festas de Natal buscam doações: veja como contribuir
Campanha Natal do Bem inicia arrecadações
– Minha ideia era que todas as crianças seguissem estudando, coisa que eu não tive oportunidade de fazer. E também que elas estivessem ocupadas e não ficassem pela rua – diz Rozeli.
Em 1990, ela percorreu o bairro em busca de iniciativas que cuidassem das crianças enquanto seus pais trabalhassem, e não encontrou. Rozeli decidiu, então, que aquele problema era dela também, e que era hora de voltar com seu antigo plano.
Uma colega de empresa escreveu um projeto, formalizando a ideia. Foram anos de busca até que a escola de samba União da Tinga ofereceu uma casa para as atividades que Rozeli idealizava. Mas ainda havia mais um obstáculo: o local precisava de reformas.
– Na época, a minha casa tinha sido quase derrubada por um temporal. Tive que fazer essa reforma, primeiro. Demorei meses, mas consegui um dinheiro para arrumar a casa onde seria a ONG. Eram duas peças. Consegui uma panela aqui, um fogão ali, e seis cestas básicas. Era tudo o que eu tinha – conta ela.
Profissionalização
Com a ajuda dos primeiros voluntários, o Renascer oferecia aulas de capoeira, música, futebol e hip hop para 50 crianças. O trabalho iniciou em 9 de dezembro de 1994.
Mesmo usando seu salário de gari para manter a ONG funcionando, nem sempre Rozeli conseguia dinheiro suficiente para as atividades e para o lanche das crianças. Para buscar doações mais consistentes, porém, era preciso profissionalizar o Renascer. Em 1997, a ONG ganhou um estatuto, foi registrada em cartório e cadastrada na prefeitura da Capital. Isso possibilitou sair das duas peças da União da Tinga.
– Passamos a funcionar em um local na Avenida Nilo Wulff. De 50 crianças, passamos a atender 120. Em um ano, demos este salto – diz a orgulhosa Rozeli.
Atualmente, a ONG funciona em um prédio de 1,5 mil metros quadrados na Avenida Macedônia. São oferecidas atividades no contraturno escolar para 380 crianças, dos seis aos 17 anos. O terreno, de 3,6 mil metros quadrados, foi obtido por meio do Orçamento Participativo. Já para construir as salas, foram captados R$ 642 mil em doações e convênios. O local foi inaugurado em 2008.
Sonhos para o futuro
Entre as atividades oferecidas atualmente no Renascer, estão reforço escolar, aulas de dança, artes marciais, capoeira, informática e diversos esportes. Cada criança faz duas refeições por dia (quem frequenta pela manhã, recebe lanche e almoço; quem frequenta durante a tarde, recebe almoço e lanche da tarde).
Leia mais
Saiba onde estão os filhos de Rozeli
Para manter tudo funcionando, a Renascer mantém um convênio com a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), ligada à prefeitura da Capital, por meio do qual recebe R$ 30 mil mensais. Com este valor, são pagos os salários dos funcionários (quatro educadores, dois auxiliares de cozinha, uma cozinheira e duas pessoas no RH, todos com carteira assinada), mantidos projetos pedagógicos e comprados alimentos. A dificuldade é para pagar as contas de luz e água, que não estão contempladas no convênio e dependem de doações.
No prédio antigo, da Nilo Wulff, funciona a Escola de Educação Infantil Renascer da Esperança, que atende 120 crianças de três meses a seis anos. O local tem convênio com a Secretaria Municipal de Educação (Smed).
Balanço
Quando solicitada a fazer um balanço sobre todos estes anos de trabalho, Roseli se emociona ao relembrar quantas crianças já ajudou e quantos futuros foram modificados graças ao seu trabalho. Um de seus orgulhos foi ter profissionalizado a ONG.
– Hoje, as pessoas são qualificadas para atender as crianças. Antes, os pequenos não tinham referência, pois a rotatividade de voluntários era alta. Com pessoas que estudaram para fazer isso, a qualificação é muito melhor – revela.
Porém, inquieta, a gari aposentada não se permite parar de sonhar:
– Eu tenho dois sonhos. Um deles é ter um mantenedor (empresa ou instituição que disponibilize recursos para manter o local). O outro é oferecer qualificação para o mercado de trabalho para jovens de 16 e 17 anos, com uma bolsa para mantê-los aqui e a chance de buscar um emprego, depois. É este jovem que vai pra rua e encontra as coisas ruins, é neste que precisamos focar.
Gratidão e retribuição
Educanda do Renascer há sete anos, Evellyn Regina Araújo Fernandes, 13 anos, procura aproveitar ao máximo tudo o que o local tem a oferecer. Ela já passou praticamente por todas as atividades oferecidas.
– Faço aulas de português e basquete, mas já fiz de tudo. Aqui, tive o primeiro contato com artes marciais e, há cinco anos, treino também no CPIJ (Centro de Promoção da Infância e da Juventude) – conta.
Apesar da pouca idade, a guria já pensa em retribuir tudo o que recebeu no local. Evellyn é aluna do 6º ano na escola Ildo Meneghetti, onde envolveu-se com um projeto que leva hortas para espaços diversos.
– Falei sobre isso com a Rozeli, ela gostou da ideia e, agora, vamos colocar em prática aqui também. O Renascer me ensinou a conviver em grupo, a ajudar o próximo, a aproveitar as oportunidades. Se eu puder retribuir de alguma forma, vai ser ótimo – finaliza.
Pura alegria
Emerson Diogo Carvalho da Silva, 13 anos, também está há sete na ONG. Sua paixão é o futebol, mas, nas artes marciais, desenvolveu uma série de habilidades.
– O que mais aprendi é o respeito. Pelas coisas e pelas pessoas – diz.
Uma das atividades favoritas da gurizada é a aula de dança. No dia da visita da reportagem, crianças de oito a 12 anos ensaiavam coreografias de olho na festa de quarta-feira.
Uma das mais dedicadas e animadas da sala era Kênya Ferreira Pio, 12 anos. Ela frequenta o Renascer há três anos.
– Quando eu danço, sinto alegria. Não penso nas coisas ruins, em mais nada. Só penso em felicidade – diz ela.
Peter da Conceição, 11 anos, tem pensamento semelhante. Para ele, faltar aula é um evento que só acontece em caso de doença grave.
– Venho sempre, não gosto de faltar. Na dança é onde eu tenho mais amigos, conheço todo mundo – revela.
De educando a voluntário
Uma das crianças atendidas no antigo prédio da Renascer, na Avenida Nilo Wulff, foi Daniel Rodrigues Fernandes, hoje com 28 anos. Atualmente, além de cabeleireiro, o morador da Restinga é voluntário, responsável por ajudar na captação de recursos para manter a ONG funcionando e por fazer “o que mais for necessário”. Durante vários anos, Daniel participou de oficinas de arte, reforço escolar e esportes.
– O trabalho era semelhante ao que temos hoje, só um pouco menos profissional. Agora, está mais avançado. Participar disso significou muito para mim. Muita gente que conheci naquela época não seguiu um bom caminho. Graças a Deus, eu faço parte dos que conseguiram um bom rumo – conta ele, que continua:
– Minha infância não foi fácil, mas a mão que o Renascer estendeu pra mim foi de grande valia.
Ele acredita que, quem se dedica a conhecer a fundo o trabalho do local inevitavelmente se apaixona:
– E não larga mais (risos)! Para muitos que são atendidos aqui, a ONG é a única coisa estruturada que eles têm na vida. Tanto que o trabalho não para, mesmo nas férias escolares.
Ajuda contínua
O Renascer da Esperança vai comemorar seus 25 anos na quarta-feira, dia 18, data em que também ocorre a festa de Natal da ONG. Com muito esforço, a instituição consegue se manter e fornecer a alimentação no local, mas também aceita doações.
– Aceitamos doações em dinheiro, que nos ajudam a pagar as contas que não são contempladas nos convênios, e também de alguns itens, como azeite, achocolatado, frutas e leite. Além disso, estamos sempre em busca de tecidos para as roupas usadas pelos alunos da dança em apresentações e tênis – diz Rozeli.