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Saídas para o problema

Para não entrar em extinção, transporte coletivo de Porto Alegre depende de novo modelo de financiamento

Pandemia do coronavírus tornou discussão sobre como sustentar o sistema mais urgente, e especialistas apontam que a conta não pode ser paga apenas pelo usuário

19/06/2020 - 09h32min


Bruna Vargas
Bruna Vargas
Alberi Neto
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Em 17 de abril, cerca de um mês depois de medidas de distanciamento social serem implantadas em Porto Alegre, apenas três de cada 10 usuários do transporte público embarcaram em ônibus da Capital, segundo dados do aplicativo Moovit. Mais baixa de todo o período, a média de circulação  — que no mês de abril oscilou entre 30% e 40% do normal  —, intensificou um problema ainda sem solução em várias cidades brasileiras: no atual modelo, o transporte coletivo está se tornando insustentável e corre risco de extinção.  

A questão é que o fim desse tipo de transporte não é uma opção. Os coletivos ainda são o meio de locomoção mais barato para a massa de trabalhadores que colocam a economia de pé e, apesar desses veículos contribuírem para a poluição, são uma alternativa menos nociva do que o carro, que transporta menos pessoas e ocupa um grande espaço viário. Sem os ônibus, a economia entraria em colapso, e, em pouco tempo, o ar dos centros urbanos se tornaria irrespirável. Além disso, o transporte é um direito previsto na Constituição, portanto, cabe aos governos garantir o seu funcionamento. 

Principal modal do sistema de transporte urbano em Porto Alegre, os coletivos perderam 31% dos seus passageiros pagantes nos últimos 10 anos. As causas da decadência são diversas e vão desde a crise econômica até questões relacionadas à qualidade do sistema, que deixa a desejar e faz com que dispute passageiros  — e geralmente os perca  — com alternativas como os aplicativos de transporte. 

A pandemia que tirou as pessoas das ruas intensificou o problema e escancarou o que é visto por nove entre 10 especialistas como uma das principais fragilidades do transporte público nos centros urbanos de todo o país. O modelo de financiamento pela tarifa, que coloca toda a conta no bolso do usuário, põe o sistema em xeque quando os passageiros deixam de usá-lo. 

— A covid-19 acelerou nossa entrada no século 21, na medida em que coisas que vínhamos discutindo há mais tempo entraram em cena. E nos leva a soluções que a gente conhece, mas que ainda não foram testadas. Não podemos continuar achando que vamos resolver com passageiros — observa Luiz Antonio Lindau, diretor do programa de cidades do WRI no Brasil, instituto de pesquisa voltado a soluções sustentáveis. 

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) coletados entre 2018 e 2019 mostram que, no Brasil, os gastos com transporte superam as despesas com alimentação: 18,1% contra 17,5%. O preço alto é o principal argumento de um em cada três passageiros que deixaram de andar de ônibus nos últimos anos, segundo informações da Confederação Nacional do Transporte (CNT) — a mesma proporção diz que voltaria para o sistema se a passagem fosse barata. Nesse quesito, Porto Alegre é a campeã: os R$ 4,70 praticados atualmente são a tarifa de ônibus mais cara entre as capitais — um novo aumento previsto para o começo do ano só não foi efetivado em razão da pandemia. 

Parte disso ocorre porque, diferentemente de outras cidades, como São Paulo, não há nenhum tipo de subsídio público para o transporte: os custos da operação são totalmente bancados pelo usuário, que anualmente sente no bolso o impacto de itens como reajustes salariais dos rodoviários e aumentos no preço do diesel. Uma série de benefícios e gratuidades acumuladas ao longo dos anos ajuda a encarecer a conta de quem paga o valor integral da passagem.  

Ao mesmo tempo em que expôs um dos maiores gargalos do atual modelo de funcionamento dos coletivos, a crise imposta pela chegada do coronavírus antecipou o que deve vir a ser uma nova realidade do sistema. Com mais atividades remotas, como o home office, e o crescimento dos serviços de delivery, a tendência é de que as pessoas se desloquem menos e, por consequência, usem menos o transporte público, ampliando a necessidade de buscar novas formas de custear o serviço.  

Sem recursos para investir diretamente no sistema, a prefeitura de Porto Alegre trabalha em formas de financiamento, com as chamadas receitas extratarifárias. Para isso, o poder público enviou à Câmara Municipal um pacote de projetos que propõem medidas para custear o sistema com recursos de outras fontes. A Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) estima que, caso todas elas fossem implementadas, o preço da passagem poderia cair a menos da metade, perto de R$ 2.  

Para elaborar as propostas, o governo baseou-se em uma palavra da moda entre especialistas em mobilidade urbana: externalidade. O conceito nada mais é do que cobrar pelos efeitos colaterais do uso do carro, que sobrecarrega vias e polui a cidade.   

— Estamos tentando alternativas operacionais. Tivemos de ser mais ousados e copiar modelos de outros países. Estamos tentando criar condições para que o problema seja resolvido — diz o secretário extraordinário de Mobilidade Urbana de Porto Alegre, Rodrigo Tortoriello.  

Um dos pontos mais audaciosos do pacote do Executivo propõe a cobrança da chamada taxa de congestionamento para veículos emplacados fora do município que ingressem na Capital em horários de pico, inspirada em iniciativas de cidades como Londres e Singapura  — segundo o Executivo, o texto deve passar por uma atualização, transformando-se em uma tarifa para circulação de carros pelo Centro Histórico. Também está em discussão uma cobrança por quilômetro rodado em viagens feitas por aplicativos de transporte individual — como Uber, 99 e Cabify —, já adotada em capitais como São Paulo, Curitiba e Fortaleza. Os itens são considerados polêmicos e, a poucos meses das eleições municipais, dificilmente entrarão na pauta do Legislativo.  

Foco dos projetos do poder público, buscar outras fontes de financiamento é importante, mas está longe de ser a única medida necessária para salvar os ônibus. Na visão de quem estuda o assunto, flexibilizar as regras de contratação dos serviços, modernizar as formas de cobrança e investir na qualidade são cruciais para dar sustentabilidade aos coletivos e permitir que a cidade se desenvolva de forma mais saudável. Para o arquiteto e urbanista Anthony Ling, editor do site Caos Planejado, a crise pode ser uma oportunidade para um debate mais aprofundado para transformar o sistema.  

— Os operadores têm incentivado que haja um pacote de salvamento financeiro. Isso é um problema, porque estamos trabalhando para salvar um sistema quebrado, um serviço que é ruim e ineficiente. O poder público pode usar essa situação para redesenhá-lo — defende. 

Nesta reportagem, GaúchaZH buscou opinião de especialistas e modelos adotados em outras cidades para propor um diálogo mais amplo sobre formas de garantir a sustentabilidade do sistema de ônibus. A trajetória não deve ser fácil, mas reflexos da desaceleração imposta pela pandemia, como um ar mais limpo, a redução de mortes no trânsito e o crescimento de alternativas que nos tornem menos dependentes de deslocamentos permitem abrir caminho para a discussão sobre como melhorar a qualidade da vida nas cidades.

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*Colaborou Josmar Leite


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