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Leitor do DG e fã da Rádio Gaúcha: conheça Jorge, "cidadão do bairro Farroupilha"

Ex-pintor dorme em praça que fica em frente ao colégio Julinho e durante o dia recebe ajuda de moradores 

16/07/2020 - 12h31min

Atualizada em: 16/07/2020 - 12h57min


Tiago Boff
Tiago Boff
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Tiago Boff / Agencia RBS
Jorge Antônio Cordeiro Barbosa tem uma rotina diária já conhecida por moradores do bairro Farroupilha

Sentado em uma cadeira de plástico, protegido pela marquise de uma agência bancária, Jorge Antônio Cordeiro Barbosa, 63 anos, inicia logo cedo uma rotina que é acompanhada pelos vizinhos do bairro Farroupilha, em Porto Alegre: acorda antes das 5h, apoia a mochila ao lado da porta giratória e lê as manchetes de capa do Diário Gaúcho. O jornal é cortesia do segurança aposentado Pedro José Nunes, 75 anos, morador de um prédio no mesmo quarteirão. Acostumado a saltar cedo da cama, o ex-vigilante entrega o exemplar antes das 6h. 

— Já criamos uma amizade. Há muitos anos, nem sei quantos, eu acompanho uma vizinha até o hospital e, na volta, trago o jornal para ele, daí ficamos conversando — detalha o aposentado, às 6h30min desta quinta-feira (16). 

Quando não recebe a visita do amigo que lhe entrega o impresso, uma banca de revistas realiza a doação, mantendo Jorge atualizado sobre os fatos mais importantes do Estado. 

No período de cerca de uma hora em que a reportagem de GaúchaZH acompanhou o morador de rua, mais de uma dezena de pedestres cumprimentou o vizinho sem-teto. “Bom dia”, “Como está?” e “Precisa alguma coisa?” foram as frases mais repetidas, atitudes que lembram a convivência de municípios do Interior, surpreendente em meio aos grandes edifícios da área central da Capital. 

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Com o passo apressado, desacelerado ao passar em frente ao homem que consome as reportagens do DG, a técnica em enfermagem Denise Cruz Oliva, 34 anos, diz se sentir mais segura com o zelo demonstrado: 

— Ele cuida a gente — diz a profissional da saúde. 

Jorge saiu de casa há 30 anos, resumindo os motivos a desavenças familiares. A filha e a ex-mulher moram na zona sul da Capital, mas o contato seria limitado. Na mesma época, um acidente de trabalho restringiu os movimentos da perna esquerda. 

— Eu caí do alto de um prédio, pintando. Quebrei a perna em três partes, e aí não deu mais para trabalhar — relembra, ao lado da muleta que auxilia sua locomoção. 

Diferentemente de uma parcela da população de rua que vive em dezenas de barracos vistos por toda a cidade, ele não ergueu qualquer construção, pois teme perder o ponto na calçada da instituição bancária - na esquina da Rua Lobo da Costa com a Avenida João Pessoa. As noites, passa na Praça Piratini, em frente ao Colégio Estadual Júlio de Castilhos – o Julinho.

Para encarar o frio dos últimos dias, conta com doações: veste jaqueta, blusão com capuz, luvas de crochê, touca e máscara descartável, retirada no posto de saúde Modelo. Na bolsa, um pão com molho e salsicha aguarda o café entregue por trabalhadores que iniciam sua jornada em horário comercial.

A barba alinhada, afirma, é um cuidado dispensado por um amigo que cativou nas ruas, barbeiro que perdeu o emprego e a capacidade de manter o aluguel em dia. Despejado, o profissional passou a integrar a lista de 2,6 mil pessoas em situação de rua, números oficiais da prefeitura estimados em abordagens das equipes da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc). Defasados, os dados representam a realidade medida em janeiro, e passam por um processo de atualização. 

Como companhia constante, duas rádios: a Gaúcha, sintonizada de forma ininterrupta no aparelhinho de pilhas, e a Farroupilha – Jorge confessa um carinho especial pelo comunicador Gugu Streit. 

— Ah, a oração do Gugu eu não perco. Me ajuda a ficar bem, ao lado de Deus. Eu sou feliz aqui — reitera, deixando de lado as dificuldades de quem não tem um lar há décadas. 

A ajuda do comércio local é confirmada pelo proprietário do Mercado Soares, próximo à Avenida Venâncio Aires. O empresário diz ter colaborado com alimentos, mas pondera o que acredita ser uma espécie de “malandragem” de Jorge. 

— Realmente, o pessoal ajuda muito ele, tanto moradores quanto mercadinhos do bairro. Mas ele aproveita e fica ao lado do banco para ganhar dinheiro das senhorinhas que usam a agência — diz Marcelo Soares, sem deixar de reconhecer a necessidade das pessoas em situação de vulnerabilidade. 

Ivan de Lemos, 82 anos, entregou o troco da padaria para o vizinho menos afortunado. 

— Um cara sereno e comunicativo. Cidadão do nosso bairro — definiu, seguindo para casa com a sacola ainda quente. 

O sorriso mantido durante a conversa é cerrado quando vêm à tona um sonho aparentemente distante: a possibilidade de voltar a viver em uma casa leva o idoso às lágrimas, e a realidade da rua faz pender o olhar com tristeza.


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