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Com planos engatilhados

Professor constrói sala para reforço escolar, fecha espaço na pandemia e vira sem-teto em Porto Alegre 

Farizeu vive em um depósito de gás após dormir por seis meses em garagem na Cidade Baixa  

02/10/2020 - 08h53min


Tiago Boff
Tiago Boff
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Ronaldo Bernardi / Agencia RBS
Professor Farizeu mantém o otimismo e a expectativa de reiniciar atividades

Ao dizer que é sem teto, o professor Alexandre de Tomaszewski, 52 anos, fica incomodado. Mas reconhece sua situação. 

— É o que sou. Não tenho casa, e só não durmo na rua porque alguém sempre me empresta um lugar — resume, agradecido, o especialista em História do Brasil. 

A trajetória do educador, conhecido como Professor Farizeu em vídeos na internet ou nos cursinhos pré-vestibulares de Porto Alegre e da Região Metropolitana, começou há duas décadas. Após semestres na faculdade de História e outros tantos na de Artes Plásticas da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), ele encontrou na formação do país o seu chão. E passou a levar esse conhecimento às turmas que se preparavam para concursos e seleções das universidades gaúchas. 

Bem remunerado no auge da carreira, lembra da época em que viajava o Estado com palestras sobre o período colonial, a origem da imprensa brasileira, as guerras e invasões de esquadras estrangeiras. 

— Nos cursinhos a gente ganhava por hora aula, e eu tinha muitas turmas. Cheguei a tirar R$ 5 mil, R$ 6 mil nos últimos salários — estima. 

Um fato, em 2018, iniciou a derrocada. 

— Eu fui demitido, mas ainda estava tranquilo, porque tinha dinheiro guardado. Achei que viveria bem até buscar algo novo. Montei meu curso, que no início se pagou, mas depois tive de desistir — relembra, sobre a primeira escola formada na Rua Felipe Camarão, no Bom Fim. 

Pouco antes da entrada de 2020, já sem renda, o apartamento ficou inviável de ser mantido, e a saída foi a rua. O filho adolescente foi acolhido por um compadre, morador de Canoas. Móveis e pertences acabaram amontoados em uma garagem, na Cidade Baixa, região central da Capital. No local, também dormia o educador, com um colchão no piso. 

No último verão, ele decidiu que retomaria as aulas de reforço, e para montar uma mini-escola contou com a ajuda do empresário Marcelino Dreher, 56 anos. Proprietário de um estacionamento na Avenida Venâncio Aires, o administrador aceitou ceder uma peça que não estava sendo usada, sem cobrar aluguel. Farizeu diz ter admitido estar falido e que dividiria igualitariamente os lucros do novo negócio, assim que as mensalidades fossem depositadas. 

— Meus filhos já precisaram muito de aula particular, e achei que o professor merecia essa ajuda. Ele que fala em 50% do lucro, eu emprestei sem cobrar nada — reitera o empresário. 

A reforma do espaço de 12 metros quadrados foi realizada pelo próprio educador: latas de tinta encontradas nas esquinas pintaram paredes de verde e amarelo. Classes retiradas da antiga sala ganharam os mesmos tons, e foram dispostas em três fileiras, atingido a capacidade de 19 alunos. Louças, quadros, espelhos e até um telefone antigo, retirados do lixo, viraram acessórios temáticos no local que transpira nacionalismo, com a bandeira brasileira ao fundo. 

Uma semana antes da inauguração, contudo, um decreto municipal suspendeu qualquer atividade pedagógica que não fosse virtual. 

— Os alunos desapareceram. Isso aqui estava montado, limpinho, pronto, brilhando. De repente foi esvaziando. Essa rua ficou deserta, um silêncio que dava pra ouvir a bandeira do colégio (Colégio Militar de Porto Alegre, no mesmo quarteirão) batendo com o vento. É por 15 dias, é por mais 10 dias, mais 15 dias, as proibições. Não sabia mais o que fazer — lamenta, ao chorar. 

A noite de quarta-feira (30) teve como casa um depósito de gás do mesmo amigo que acolheu seu filho. O jantar é fruto de doações de equipes que distribuem marmitas a pessoas em situação de rua. O almoço, “não pensei ainda”, confessa, mesmo próximo do fim da manhã desta quinta-feira (1º). 

A credibilidade do professor Farizeu é reforçada por um antigo colega, o também pedagogo Fabiano Bernardes, 43 anos. O matemático, que lecionou a seu lado no colégio Unificado de Viamão, soltou um palavrão ao saber da situação enfrentada pelo amigo. A expressão jocosa dimensiona seu espanto.  

— Desculpa pelas palavras, mas é inacreditável. Esse cara tem uma didática incrível e um coração enorme — afirmou. 

A escolinha de cadeiras vazias tem um quadro com o batismo "índio Poti”, homenagem ao guerreiro potiguar Felipe Camarão, soldado que lutou pelo Brasil no século 17. Na manhã desta quinta, enquanto mostrava o esforço entregue para a construção do local, Farizeu recebeu a visita de um casal de pais de um aluno do Colégio Militar. O garoto é colega do filho adotivo do professor, também estudante da instituição que ostenta o título de “Colégio dos Presidentes”.  

— Ele é muito esforçado. Apoio a ideia, quem sabe trago o meu filho para cá como reforço — avalia o capitão da reserva Luiz Cabreira, 54 anos, ex-integrante do Exército. 

Enquanto não há definição sobre a liberação das atividades pedagógicas, o especialista busca alunos virtuais. Com o canal Índio Poti no YouTube, ou por aulas em chamadas de vídeo no WhatsApp (51 99444-4084). E sonha com um 2021 diferente. 

— Vou me reerguer. Quem sabe sair desta salinha e levar minha escola para um casarão que tem aqui perto — vislumbra, ao escrever “venceremos” no quadro. 

Confira, em áudio, a reportagem veiculada na Rádio Gaúcha:



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