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Superação 

Sem movimento de braços e pernas, estudante de Psicologia pinta quadros e panos de prato com pincel entre os dentes 

Produtos são vendidos para ajudar na renda da família, que mora de aluguel na vila São José 

04/02/2021 - 20h57min

Atualizada em: 05/02/2021 - 14h34min


Tiago Boff
Tiago Boff
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Ronaldo Bernardi / Agencia RBS
Jéssica exibe seus panos de prato

Em uma casa decorada com capricho, Jéssica Teixeira Gomes, 29 anos, tem seu ateliê. Nas três peças do imóvel, ursos e bonecas dividem espaço com caixas repletas de insumos coloridos: potes de tinta, tecidos, pincéis, papéis-carbono e revistas que servem como molde para as criações.  

Acomodada na cadeira de rodas, Jéssica observa a publicação e colore, com o pincel entre os dentes, o espaço previamente contornado. Ela não tem o movimento dos braços e das pernas. Para levar a ferramenta até a boca, precisa da mãe, Cristiane Andrade Teixeira, 46 anos, mais do que uma auxiliar. 

— Ela é tudo para mim — define a pintora. 

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Cristiane separa a cor pedida pela artesã, lava a ponta do pincel e posiciona o utensílio com cuidado nos lábios da filha. Com a mordida, Jéssica firma o pincel. Observa a revista para manter os tons do desenho original, repassado para a tela à lápis — o contorno é feito pela mãe. 

A paixão pela pintura foi cultivada ainda na infância, quando ela estudou no Centro de Reabilitação de Porto Alegre (Cerepal), na Zona Norte. Para chegar à perfeição dos tons de cores e seus sombreados, ela buscou vídeos no YouTube, prática que se intensificou há quatro anos. 

— Isso é a minha terapia, quando relaxo e fico bem. E uma forma de ser mais independente e ajudar nas contas da casa — explica Jéssica. 

O objeto mais comumente utilizado para virar obra de arte é um pano de prato, vendido para ajudar na renda familiar. Ambas precisam custear sozinhas aluguel, água, luz, alimentação e transporte. Com a demanda que os cuidados exigem, a mãe não pode sair de casa em busca de trabalho. 

Cada pano de prato leva uma semana para ficar pronto: quatro dias para colorir e mais três para secar. A mãe compra os rolos de 10 metros e corta o tecido em partes iguais. O valor cobrado é de R$ 25 por peça, e os desenhos variam entre uma menina de vestido e laço rosa, com um chapéu verde na mão, ou uma vaca malhada vestindo um avental. Símbolos religiosos também integram o catálogo. 

Jéssica nasceu prematura e ficou um mês hospitalizada. Os músculos da estudante são atrofiados devido a uma doença chamada artrogripose múltipla congênita. Até os sete anos de idade ela fez fisioterapia, mas a família foi informada que o quadro era irreversível, e desistiu do tratamento. 

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Em 2020, começou o curso de Psicologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Com o ensino remoto, estuda em um notebook na sala de casa. Para alcançar o teclado, adaptou uma borracha na ponta de uma agulha de tricô. 

— Jéssica mostrou para todo mundo que pode fazer o que quiser. É o meu orgulho — afirma a mãe, emocionada a cada fim de frase. 

A primeira opção era outro curso: Artes Visuais. Em uma visita ao campus, ela notou uma escadaria e ficou temerária de não haver condições de chegar à sala de aula. Trocou a opção por Psicologia, pois afirma ser uma boa ouvinte. 

No caderno em que copia as lições, exibe uma caligrafia belíssima, de letras arredondadas e bem desenhada. A velocidade com que escreve surpreende quem desconhece a capacidade de adaptação de Jéssica. A escrita foi ensinada por uma amiga da família, a quem ela se refere como “avó de coração”, dona de um terreno onde ela viveu quando criança. 

À noite, quando não está estudando, ela cria quadros e pinta os panos de prato. Um dos seus sonhos é viver em uma casa com melhores condições de acessibilidade. E com vista para a rua. 

— Aqui tenho só uma parede. Queria ter um quarto só para mim também, pois preciso dividir com a mãe — justifica a estudante. 

O imóvel onde elas vivem fica na vila São José, bairro Partenon, zona leste de Porto Alegre. No terreno, há uma série de construções. Para chegar até a residência atual, precisam enfrentar uma rampa de concreto, íngreme em relação à rua. 

Há outra dificuldade, segundo a artista: a falta de ônibus adaptados. Ela afirma que já teve de esperar duas horas em uma parada até que chegasse um veículo com elevador para cadeirantes.

— Passaram quatro ônibus, todo mundo subiu e ficamos esperando. Às vezes a gente precisa ir até a Bento (Avenida Bento Gonçalves), mas subir de volta eu não consigo, é muito pesado para mim — relata a mãe. 

Para buscar uma casa própria, uma vaquinha virtual foi criada, que pode ser acessada neste link. As criações são divulgadas em dois perfis do Instagram: @jessikagomesss e @pinturas_dajeh

Como o trabalho artesanal é demorado, Jéssica recebe depósitos adiantados, e entrega os pedidos após vencer a quantidade de encomendas. Seu número de telefone foi cadastrado no sistema de transferências bancárias PIX: 51992798545. 


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