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Imunização cruzada

É possível usar vacinas contra a covid-19 diferentes para a primeira e segunda doses? Veja perguntas e respostas

Quase 500 pessoas no país receberam aplicações de imunizantes distintos, apesar de governo e cientistas serem contra

16/04/2021 - 15h00min


Marcel Hartmann
Marcel Hartmann
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Joseph Prezioso / Agencia RBS
Orientação oficial é de que a vacinação aconteça sempre com duas doses do mesmo laboratório

Aplicar em uma mesma pessoa doses de vacinas contra a covid-19 de laboratórios diferentes pode ter alguma vantagem ou desvantagem? Há estudos no mundo que analisam a interação entre a vacina de Oxford e a Sputnik, a Pfizer e a Novavax. Mas não há, neste momento, pesquisas sobre a interação entre a CoronaVac e a vacina de Oxford, que são as duas em uso no Brasil e que funcionam com tecnologias diferentes.

A orientação oficial é de que a vacinação aconteça sempre com duas doses do mesmo laboratório. Aplicar vacinas diferentes pode ocorrer por desatenção do aplicador ou da pessoa vacinada, que não conferiu na carteira de vacinação qual foi a primeira dose injetada — daí a importância de levar o documento ao posto. Aplicar injeções cruzadas, a princípio, não faz mal à saúde, mas não se sabe se a combinação pode assegurar a proteção esperada.

De janeiro até esta quarta-feira (14), 481 brasileiros receberam erroneamente uma dose da CoronaVac e outra da vacina de Oxford, segundo o Ministério da Saúde. A despeito de considerar a aplicação cruzada um erro, a pasta diz que nada deve ser feito.

— Não temos estudos de intercambialidade das vacinas para a covid. A grande dúvida é se a pessoa ficará protegida utilizando vacinas de laboratórios diferentes — resume o médico Juarez Cunha, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).

A situação deve se tornar cada vez mais comum com o avanço da campanha de imunização e a entrada de novas vacinas no Brasil. Até agora, estão aprovadas no país a CoronaVac, a vacina de Oxford/AstraZeneca e a da Pfizer (esta ainda não chegou efetivamente por aqui) – cada qual com uma tecnologia diferente para funcionamento, o que complica ainda mais a possibilidade de mistura.

O Ministério da Saúde orienta, no Plano Nacional de Imunizações (PNI), que a vacinação cruzada deve ser notificada como erro e que indivíduos que receberam doses de laboratórios diferentes "não poderão ser considerados como devidamente imunizados, no entanto, neste momento, não se recomenda a administração de doses adicionais de vacinas”.

Questionado sobre qual é a orientação para as pessoas que receberam doses de laboratórios distintos, o Ministério da Saúde afirma, em nota a GZH, que “cabe aos Estados e municípios o acompanhamento e monitoramento de possíveis eventos adversos a essas pessoas por, no mínimo, 30 dias”.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informou a GZH que não recebeu estudos sobre a intercambialidade das vacinas nos pedidos de uso emergencial ou definitivo das farmacêuticas, mas que “o entendimento da Anvisa é que, com as informações conhecidas até o momento, as vacinas não são intercambiáveis. A orientação é que seja respeitado o esquema terapêutico e que seja tomada uma segunda dose da última vacina recebida, respeitando-se o intervalo recomendado entre as doses”, diz a entidade por e-mail.

A Secretaria Estadual da Saúde (SES) afirma por e-mail que “está aguardando retorno do Ministério da Saúde com orientação sobre esta questão”. A pasta não informou quantos gaúchos receberam vacinas de farmacêuticas diferentes.

A Secretaria Municipal da Saúde (SMS) aponta que notifica esses casos no sistema em Porto Alegre e aguarda orientação da SES “para o desfecho das situações verificadas”.

Veja perguntas e respostas sobre o assunto:

Posso tomar vacinas contra o coronavírus de laboratórios diferentes?
Não. Em nota divulgada no fim de março, a Anvisa alerta que a aplicação deve ser feita com doses do mesmo laboratório e que “não há dados que sustentem que a troca de fabricantes de vacinas entre a primeira e a segunda dose produza resposta imune ao Sars-CoV-2”. O Ministério da Saúde considera o uso de vacinas diferentes um erro, e especialistas defendem que a aplicação seja sempre de uma mesma farmacêutica.

Tomei vacinas de diferentes laboratórios. O que faço?
Caso sua carteira de vacinação aponte uma dose da CoronaVac, do Instituto Butantan, e outra da vacina de Oxford, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), você deve comunicar ao posto de saúde e mostrar sua carteira de vacinação. A unidade de saúde, por sua vez, fará a notificação à Secretaria Municipal da Saúde. A despeito de não considerar esse caso como uma imunização efetiva, a orientação do Ministério da Saúde é de que a pessoa não tome uma terceira dose.

Faz mal misturar vacinas de laboratórios diferentes?
Não se sabe ainda, mas, a princípio, a mistura não faz mal à saúde. O sistema imunológico está acostumado a lidar com diferentes agentes diariamente em nosso corpo – é o que permite que estejamos vivos.

— Não existe nenhum estudo científico com resultado avaliando isso, mas, a principio, é seguro e não há motivo para imaginar que vá causar dano. Essas vacinas, já sabemos o que é demonstrado como efeito adverso. A avaliação é mais sobre a eficácia de misturar as vacinas, não tanto sobre a segurança. As vacinas vêm sendo utilizadas há mais de um século com muita segurança — diz a médica Viviane Boaventura, pesquisadora da Fiocruz e professora de Imunologia na Universidade Federal da Bahia (UFBA).

A pessoa que tomou doses de laboratórios diferentes estará imunizada?
Não se sabe. Há estudos sendo conduzidos para a aplicação de algumas vacinas, mas ainda não há conclusões. Analistas ouvidos por GZH divergem: de um lado, há a expectativa de que a prática possa reforçar o sistema imune, mas, por outro, também se imagina que possa despertar uma segunda onda de proteção que não reforce aquela gerada pela primeira dose.

Por que não se deve misturar, hoje, doses de laboratórios diferentes?
Porque não há estudos que embasem a decisão. As pesquisas feitas até agora comprovam eficácia e tempo de intervalo apenas para doses do mesmo laboratório, e não com cruzamento. O risco é gerar duas respostas imunes diferentes, em vez de um reforço da primeira. Além disso, caso haja um efeito colateral, não será possível saber a qual vacina ele pode estar conectado.

— A diferença é a forma como cada plataforma estimula o sistema imunológico. Temos respostas imunes diferentes a depender do produto utilizado. Se uma tem 50% de eficácia e a outra, de 90%, não significa que fazer intercâmbio terá uma eficácia meio termo de 75% — explica Juarez Cunha, médico e presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).

Qual é a solução? Manter como está ou oferecer uma terceira dose?
Não há resposta, ainda. O caso do Brasil é mais delicado porque a CoronaVac e a vacina de Oxford usam tecnologias diferentes para despertar a resposta imunológica contra a covid-19 – nos Estados Unidos, admite-se para casos excepcionais o uso da Pfizer e da Moderna porque ambas atuam de forma semelhante, com RNA mensageiro.

Veja a opinião de quatro especialistas:

Eduardo Sprinz, médico infectologista, chefe do setor de Infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e coordenador dos estudos da Janssen e da vacina de Oxford na instituição:
No Brasil, temos duas vacinas de plataformas diferentes. Uma é com vírus inativado (CoronaVac) e outra é com uma proteína do vírus, a proteína S (Oxford/AstraZeneca). Os anticorpos induzidos por uma não necessariamente serão os mesmos estimulados pela outra. Baseado nisso, provavelmente, quem fez a intercambialidade da CoronaVac e a de Oxford seria recomendado fazer o reforço de uma dessas duas. Por hipótese, o uso de vacinas de plataformas diferentes não funciona, mas de plataformas semelhantes, sim. Mas não temos resposta sobre isso, ainda.”

Viviane Boaventura, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e professora de Imunologia na Universidade Federal da Bahia (UFBA):
Cada vacina monta uma resposta contra um material do vírus. Se você der uma segunda vacina, você estimularia a resposta contra uma outra parte do vírus. Então você potencializa diferentes braços da resposta de defesa do organismo. É como se ativasse diferentes componentes do sistema de defesa. Mas faltam estudos.”

Juarez Cunha, médico e presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm):
Minha opinião é de que pessoas que receberam vacinas de plataformas diferentes deveriam tomar uma terceira dose de uma dessas vacinas. Isso porque os estudos que temos é de uma mesma vacina.”

Cristina Bonorino, professora de Imunologia na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e membro de um grupo de trabalho da SES que estuda os efeitos de vacinas:
A CoronaVac e a Oxford são contra o coronavírus, mas uma funciona com o vírus inteiro e a outra só para a proteína S do vírus. É possível funcionar (a mistura das duas), mas não sabemos quanto. A mistura está sendo considerada como erro pelo Ministério da Saúde, mas o ministério não diz o que fazer e é urgente que se manifeste. Eu sugiro que, se ainda está no prazo de uso de uma das duas vacinas, que se complemente com a que está no prazo. Mas, se passou o prazo de aplicação das duas, o que é possível só no futuro, já que agora Oxford sequer teve a segunda dose, que se comece o esquema de novo.”

Tomar uma terceira dose faria mal ao organismo?
Não – e talvez você já tenha feito isso com outra vacina, ao esquecer se tomou, anos atrás, a dose necessária. Assim como tomar uma dose de laboratório diferente, receber uma terceira injeção também não faz mal ao organismo. Tomar uma terceira dose é, inclusive, a solução oferecida pelo Ministério da Saúde para outro problema: quem toma a dose de reforço da CoronaVac antes do intervalo de 14 dias. Nota técnica de 8 de março da pasta diz que, para esses casos, "a segunda dose deverá ser desconsiderada e reagendada uma segunda dose conforme intervalo indicado da primeira vacina covid-19 recebida".

— Não vai sobrecarregar o corpo nem nada parecido. O sistema imune está acostumado a lidar com várias infecções e imunizações ao mesmo tempo. Todos os dias o sistema imune lida com patógenos e, graças a isso, estamos vivos — diz Cristina Bonorino, professora da UFCSPA.

Por que a vacinação cruzada tem mais chances de dar certo para algumas combinações de vacina?
A hipótese de cientistas é de que vacinas com a mesma tecnologia trabalhariam de forma semelhante para gerar uma resposta do sistema imune, então, o esforço de uma ajudaria a outra. No entanto, não é a realidade atual do Brasil, onde circulam dois imunizantes com plataformas distintas – CoronaVac com vírus inativado e Oxford/AstraZeneca com vetor viral.

É por isso que há estudos sobre o uso da AstraZeneca com a Sputnik (ambas de vetor viral que inserem um pedacinho do Sars-Cov-2 dentro de um vírus de resfriado que funciona como mensageiro) ou da AstraZeneca com a Pfizer (ambas com foco em uma proteína do coronavírus).

— Quando tomamos a AstraZeneca, o sistema imunológico monta resposta contra a covid, mas também contra o adenovírus que carrega um pedacinho da covid. Na segunda dose, o sistema combate o adenovírus antes de ele entregar as partes da covid. A ideia de usar a Sputnik na segunda dose é que, por ela usar outro vetor viral, nosso sistema imune não teria resposta montada com ele e, assim, o fragmento da covid chegaria ao destino para o sistema imune montar uma resposta — diz Viviane Boaventura, da Fiocruz.

Pelo mesmo raciocínio, o uso da Pfizer com a Moderna também poderia dar certo, porque ambas usam a tecnologia de RNA mensageiro. Mas não há, tampouco, estudos que comprovem a prática.

Se der certo, por que será bom misturar vacinas diferentes?
Para além da suposição de aumentar a eficácia, pela logística: se o país estiver em falta das doses de um laboratório, mas tiver estoque de outro, poderá aplicar na população as injeções que tiver disponíveis.

— O que se imagina é que possa ter um efeito de potencialização ao combinar duas vacinas, na expectativa de flexibilizar os usos. Se conseguirmos, isso ajudaria na questão logística. No caso do Brasil, por causa das novas variantes, dar mais de um tipo de vacina pode ser uma vantagem — diz Viviane Boaventura, pesquisadora da Fiocruz e professora de Imunologia na UFBA.

Como a situação é tratada em outros países?
A França decidiu que a população com menos de 55 anos que tiver tomado a primeira dose da vacina de Oxford deverá tomar, como segunda dose, a Pfizer ou a Moderna, mas o governo francês reconhece que não há estudos científicos comprovando que a estratégia funcione. A vacina de Oxford é feita com a tecnologia de vetor viral, enquanto que Pfizer e Moderna usam RNA mensageiro.

No início do ano, em meio à falta de doses, o Reino Unido decidiu autorizar a mistura de imunizantes – estavam à disposição a vacina de Oxford e a da Pfizer, ambas com tecnologias distintas, mas responsáveis por inserir no corpo uma proteína do coronavírus que, embora não seja infecciosa, ensina o organismo a lutar contra a covid-19.

— Todo esforço deve ser feito para dar a mesma vacina, mas, quando isso não for possível, é melhor dar uma segunda dose de outra vacina do que não dar — afirmou Mary Ramsay, chefe de imunizações da Public Health England.

Nos Estados Unidos, onde o uso massivo é das vacinas da Pfizer e da Moderna – ambas com a tecnologia de RNA mensageiro –, o governo desaconselha a vacinação cruzada, mas diz que, se não for possível saber qual foi a primeira dose, pode-se dar o reforço 28 dias depois com uma vacina da mesma tecnologia. Ao mesmo tempo, salienta que é preferível atrasar a aplicação da segunda dose se isso permitir vacinar com a injeção da mesma farmacêutica.

— Ter duas vacinas de uma mesma plataforma é uma coisa. Mas hoje temos no Brasil vacinas de plataformas distintas. Vacinadores e quem recebe a vacina precisam prestar atenção ao produto e ao que está registrado na carteira de vacinação — diz o médico Juarez Cunha.

A China avalia misturar vacinas para aumentar a eficácia ou mesmo aumentar o número de doses de um imunizante. O país conta com três vacinas, sendo uma delas a CoronaVac.

Qual é a regra para vacinas contra outras doenças?
Usar a vacina do mesmo laboratório, explica Juarez Cunha, médico e presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). Em casos nos quais existe a intercambialidade, como a vacina contra a meningite, foram feitos estudos para atestar a segurança e a eficácia da prática.


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