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Quem são as famílias que ainda não deixaram a Vila Nazaré, em Porto Alegre

Moradores que vivem no sítio aeroportuário há décadas querem indenização justa para poder buscar nova moradia

22/04/2021 - 05h01min


Alberi Neto
Alberi Neto
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Roberto Witter / Divulgação
Maria espera conseguir indenização justa

Os últimos detalhes que envolvem a conclusão do reassentamento da Vila Nazaré, na zona norte de Porto Alegre, têm sido os mais complicados. A comunidade que ocupa a cabeceira da pista do Aeroporto Salgado Filho há mais de cinco décadas resume-se agora a menos de 140 famílias —  eram 1,2 mil quando a transferência iniciou, ainda em 2019. Deste grupo restante, 70 famílias estão dentro do chamado sítio aeroportuário. A área está sob administração da empresa alemã Fraport, que opera o Salgado Filho, e sua desocupação é essencial para que seja concluída a ampliação da pista do aeroporto, obra de importância econômica para todo o Estado. 

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Recentemente, além de anunciar que as obras vão parar até que a remoção seja concluída, a administradora iniciou a judicialização individual dos moradores, pedindo a reintegração de posse dos locais, o que surpreendeu as famílias restantes, como conta o advogado Cícero Damim, representante da maioria dos residentes do sítio.

—  Já são ao menos 34 moradores que receberam o processo. Como resposta, estamos ajuizando um pedido de indenização. Algumas destas pessoas, inclusive, aceitariam ir para os loteamentos oferecidos pela prefeitura. Mas, diante dessa ação da Fraport, houve um consenso de que agora a luta será por um indenização justa — pontua Cícero.

O viés social do reassentamento não fica de lado. Desocupar a área é um desafio que o poder público empurrou com a barriga por décadas, fazendo crer aos moradores que este dia, inclusive, nunca chegaria. Quando a Fraport venceu a licitação para administrar o aeroporto, conhecia a situação na cabeceira da pista e sabia da necessidade de remover as famílias. 

A remoção ficou nas mãos da prefeitura, que foi quem ofereceu dois loteamentos do programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV) como opção de moradia às famílias reassentadas. A Fraport arca com os custos das mudanças, fornece um voucher de R$ 2 mil para os moradores comprarem novos móveis e eletrodomésticos e será responsável pelo construção de espaços nos loteamentos, como creche e área comercial. 

Exceção

Acontece que, para acessar aos locais pelo MCMV, é preciso atender requisitos da Caixa Econômica Federal (CEF), como um teto de renda, por exemplo. Mas, este nem é o único problema. Alguns comerciantes locais não conseguiram receber nos novos loteamentos espaços comerciais para seguirem com suas atividades. Assim, tendo só a moradia, mas sem a garantia do sustento, a mudança fica impossibilitada. 

— Os casos que aqui restam são exceção. E precisam ser tratados como tal. São pessoas que estão no espaço há décadas e que, por tempos, acreditaram que essa era uma área privada e passível de usucapião. Na maioria dos casos, as residências ofertadas pela prefeitura representaram melhor condição do que as vividas aqui para alguns moradores. Não é o caso destes que permanecem — pontua o advogado dos moradores.

Nas ações movidas, a Fraport chegou a oferecer uma ajuda de custo de R$ 17 mil para algumas famílias que aceitem se mudar para o loteamento Irmãos Maristas, no bairro Rubem Berta, local que recebe as famílias da Nazaré atualmente. As conciliações deveriam ocorrer na Justiça Federal, mas diante da discordância entre as partes, serão necessárias audiências judiciais, não mais de conciliação. 

O fato é que todo o imbróglio que envolve o sítio aeroportuário tem uma curiosidade. Em teoria, aviões nunca tocarão o solo no espaço hoje ocupado. A área a ser desocupada servirá como a chamada RESA, área de segurança de fim de pista. Sem essa obra, não é possível usar os 920 metros de pista a mais que, aliás, já estão prontos.

Morando entre escombros

Roberto Witter / Divulgação
Maioria das residência já foi derrubada

Hoje, circular pela Nazaré é como ver um cidade bombardeada. A maioria das casas já foi demolida, restam escombros, alguns comércios fechados e pouquíssimas residências, comparado ao que o local já foi. As consequências disso incomodam quem ainda permanece. Lixo, escombros e animais domésticos deixados para trás geram mau cheiro e proliferação de mosquitos e ratos. 

A constante interrupção no abastecimento de água e a falta de energia elétrica também são presenças cotidianas, como relata a agricultora aposentada Maria Valdecy Feil dos Santos, 64 anos. Há 40 anos, ela deixou o interior do Estado, em Fontoura Xavier, para se estabelecer em Porto Alegre junto do marido, o ferreiro aposentado Remi Rosa dos Santos, 67 anos. Na Vila Nazaré, criaram os três filhos e construíram uma residência de 120 metros quadrados, além de um bom pátio onde correm os dois cachorros e o gato da família. 

— Eu queria sair logo, resolver isso. Mas a nossa renda de aposentados ultrapassou pouco do teto da Caixa. Estava esperando uma saída justa, mas fiquei surpresa com esse processo de reintegração de posse. Quero sair e resolver a situação, mas de maneira justa. Estamos aqui há 40 anos, a gente tem direito, não quero nada que já não é meu — deseja a moradora.

Comércio

Para o reciclador de metais Adão Alves de Braga, 71 anos, o cenário é outro. Apesar de poder ir para um apartamento no Irmãos Maristas, ele não teve direito a ocupar uma área comercial no novo lar. Por isso, decidiu esperar para resolução do impasse. Agora, com o pedido de reintegração pela Fraport, Adão pretende obter uma indenização. 

— Imagina se eu tivesse deixado derrubarem tudo, ia estar na rua hoje. Sem meu comércio, não tenho como sair daqui. A situação já está complicada com o bairro aqui vazio, tenho a sorte de que meus irmãos têm me ajudado com doações — cita Adão.

Ele divide a casa com a esposa Marcelina de Lima Braga, 61 anos, e três netos. Os três filhos do casal já deixaram a Nazaré antes do reassentamento.

Para o aposentado por invalidez Reni da Conceição Almeida, 42 anos, a mudança era uma opção. Mas, com dificuldades de locomoção, Reni não teve como aceitar o apartamento oferecido pela prefeitura, no terceiro andar do loteamento Senhor do Bom Fim, no bairro Sarandi. Os prédios não têm elevador. Enquanto aguardam na Nazaré, ele e a esposa, também aposentada por invalidez, Elisete Francisca Wienkoski, 51 anos, passam por dificuldades. 

Entre dezembro e fevereiro, ela ficou internada no Hospital Conceição com leptospirose. No atestado, o médico responsável pelo atendimento escreveu que "a patologia (doença) pode estar relacionada com a situação de vulnerabilidade social, contato com ratos e região com alagamento".

"Residências estão à disposição"

André Machado, titular da Secretaria Municipal de Habitação e Regularização Fundiária (SMHARF), que coordena o reassentamento por meio do Departamento Municipal de Habitação (Demhab), afirma que a prefeitura segue com a intenção de transferir todas as famílias para o Irmãos Maristas. Segundo o secretário, mesmo aquelas que não se encaixam em algum dos critérios do MCMV, se puderem ser transferidas após decisão judicial, serão. Para os que optarem pelas vias indenizatórias, o contato é com a Fraport, explica André. 

Atualmente, das 70 famílias dentro do sítio aeroportuário, 14 estão com a transferência em trâmites finais. O número pode aumentar, diz o secretário. Mas, por enquanto, as outras 56 são as que precisam resolver seus trâmites junto à administradora do aeroporto. E a Justiça Federal retomou semana passada as audiências com estas 56 famílias. Nos três casos primeiro analisados, a juíza federal substituta Thais Helena Della Giustina determinou prazo de cinco dias para que as famílias escolham os imóveis oferecidos pela prefeitura, mas eram casos específicos. 

Nesta semana, outras 10 famílias tiveram sua decisão, e a magistrada determinou que as famílias receberão indenização de R$ 78,88 mil da Fraport, caso não aceitem os imóveis construídos no Loteamento Irmãos Maristas. O valor está abaixo do que desejam os moradores. 

Pepino

O secretário ressalta que, além das famílias do sítio aeroportuário, outras cerca de 70 famílias vivem na chamada Vila Pepino, uma espécie de anexo da Nazaré, mas que não está na área das obras do aeroporto. Neste ponto, o trabalho é todo de responsabilidade da prefeitura. Então, os embates judiciais entre quem preferir não deixar o local serão diretamente entre morador e poder público.

— Estamos intensificando o trabalho na Pepino, são pessoas que também precisam deixar a área, que é privada e irregular para moradia. As residências estão à disposição de todos que se interessarem e forem aptos para a mudança. Há apartamentos suficientes no Irmãos Maristas para toda a demanda da Nazaré — garante o titular da pasta de Habitação.

O que diz a Fraport

A reportagem procurou a empresa Fraport para esclarecer as razões das ações de reintegração de posse contra os moradores. Além disso, questionou-se qual será a postura da empresa, de tentar negociar com as famílias ou não. Em nota, a assessoria de imprensa da empresa apenas informou que "este assunto está sob discussão judicial no Tribunal Federal".


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