Pobreza menstrual
"Improviso com papel higiênico ou paninho": a realidade de mulheres que não têm dinheiro para comprar absorventes
Na Ilha do Pavão, em Porto Alegre, moradoras da comunidade fazem fila para receber doações de produtos de higiene pessoal
O carro da ONG Dia do Amor entra na Ilha do Pavão, em Porto Alegre, onde uma fila de mulheres e meninas já espera pelos voluntários na porta da associação de moradores. O grupo se prepara para entregar absorventes e itens de higiene a moradoras da comunidade que não têm dinheiro para esses produtos. Com sorrisos, mães e filhas recebem os kits e agradecem, enquanto também seguram flores carinhosamente dadas pelos jovens.
Em famílias de baixa renda, o que deveria ser um direito de higiene básico, se torna motivo de vergonha e pode até oferecer riscos à saúde pela falta de informação e de infraestrutura em casa. A pobreza menstrual evidencia a dificuldade de acesso de muitas mulheres a absorventes, produtos de higiene e condições de saneamento básico, como ter água encanada em casa. Um relatório divulgado em maio pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) evidencia que 713 mil meninas vivem no Brasil sem acesso a banheiro ou chuveiro.
Na terça-feira (14), os senadores aprovaram a distribuição gratuita de absorventes no Brasil e encaminharam o projeto de lei para sanção presidencial. Antes do Senado, o texto para o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual (PL 4968/2019) já havia sido aprovado na Câmara dos Deputados, em agosto.
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A proposta prevê distribuição de absorventes gratuitos em escolas, à população de rua, em comunidades carentes e em penitenciárias, além de incluir o absorvente como item essencial na cesta básica. Os recursos previstos viriam do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Fundo Penitenciário Nacional.
A dificuldade de comprar itens para higiene menstrual está muito relacionada às condições financeiras das famílias. Quanto menor a renda, mais o orçamento prioriza a alimentação, não restando o suficiente para esses gastos. Na Ilha do Pavão, uma recicladora de 34 anos conta que é normal não ter absorvente em casa. A filha dela, de 14 anos, escuta a conversa e concorda. Questionada sobre quantas vezes no ano ela já perdeu aula por causa disso, afirma:
— Uns 10 dias.
A adolescente não é a única. Um levantamento nacional inédito, coordenado pela antropóloga Mirian Goldemberg, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mostra que uma em cada quatro jovens brasileiras já faltou à escola por não ter dinheiro para comprar absorvente. Essas meninas podem perder até dois meses de aula durante um ano por ter que ficar em casa durante o período menstrual, conforme estima a ginecologista e obstetra Juliana Paulina Schneider.
A solução é recorrer ao que estiver ao alcance para conter o sangramento de cada mês. Na Ilha do Pavão, a maioria das moradoras ouvidas pela reportagem improvisa com os paninhos que se costumava usar anos atrás. Desempregada, Raquel Alves da Fontoura, 36 anos, é uma delas.
— Eu improviso com papel higiênico ou paninho, e quando dá a gente compra.
Além de desconfortáveis, por não serem materiais feitos para este uso, esses produtos também podem oferecer riscos à saúde. A doutora Juliana Paulina Schneider relata algumas situações que já encontrou durante os atendimentos pelo SUS.
— Os paninhos de antigamente são lavados em casa e podem gerar bactérias. Tem o algodão que muitas vezes elas não conseguem retirar e acabam até numa emergência ginecológica. Já vi colocarem frutas que absorvem, tipo banana. Nada disso é o ideal, porque tudo é meio de cultivo para bactérias, que fazem com que elas desenvolvam doenças, como vaginites, ou até uma doença inflamatória pélvica — explica a ginecologista.
A reportagem de GZH entrou em contato com as secretarias estaduais da Saúde e da Educação, e também com essas duas áreas na prefeitura de Porto Alegre. Todas afirmaram que não há projetos para distribuição de absorventes em postos de saúde, escolas ou comunidades carentes.
— A parte mais difícil é para quem trabalha e tem que frequentar um colégio. A pessoa não consegue se sentar à vontade porque não tem o mínimo e acaba sendo constrangida e sofrendo bullying — lamenta Sandra Ferreira, presidente da Associação Vitória, que representa os moradores da Ilha do Pavão.
Passar por uma situação como esta foi o que motivou a voluntária Carla Müller a entregar doações com a ONG Dia do Amor. A ideia veio quando ela foi abordada por uma pessoa no mercado porque estava com uma mancha de sangue na calça.
— Eu fiquei me sentindo supermal e fiquei pensando que tenho todas as condições de comprar um absorvente e mesmo assim isso aconteceu, então pensei nesse desconforto e o que poderia fazer com a ONG — relembra.
Para a doutora Juliana, o coletor menstrual pode ser uma alternativa de investimento pelo poder público. Por ser reaproveitável, é um método mais econômico do que o absorvente e ecologicamente correto, por ter menos descarte.
Segundo a ginecologista, a aceitação do coletor ocorre mais entre as meninas e jovens, mas há também mulheres que querem experimentar. Neste caso, o trabalho de orientação é extremamente importante, para que o produto seja utilizado da maneira certa e com a higienização adequada.
Outro desafio: vencer o tabu e a desinformação
Outro problema que impede que muitas mulheres tenham absorventes e entendam a importância da higiene íntima para a saúde é a vergonha de falar sobre menstruação. Até pouco tempo, comentar sobre o assunto era considerado inadequado, algo que ainda acontece em muitas famílias.
— A gente sabe que algumas pacientes têm até dificuldade de falar que estão menstruadas e acabam usando apelidos e sinônimos. Isso dificulta o processo de autoconhecimento e até de informação. E elas vão ter filhas e vão seguir passando essa dificuldade de informação, fazendo com que persista um tabu em cima de um assunto que deveria ser mais falado — avalia a coordenadora docente da Liga Acadêmica de Ginecologia e Obstetrícia da PUCRS (Ligo), Camila Henz.
Um exemplo que ainda ocorre nos consultórios é a lenda de que faz mal lavar o cabelo quando a mulher está menstruada ou após o parto.
— A mulher ganha nenê e também vai precisar de absorvente, porque fica sangrando, daí a mãe dela fala que não pode lavar o cabelo. Às vezes, a paciente chega na revisão de 14 dias após o parto e pergunta “doutora, já posso lavar meu cabelo? Minha mãe disse que não podia lavar” — conta a doutora Juliana.
A médica também lembra que há pacientes que menstruam e não sabem o que fazer, complicando mais ainda em casos em que o posto de saúde não tem ginecologista, que seria o profissional ideal para explicar mais. Para ela, questões como essa poderiam ser evitadas se o assunto fosse mais discutido entre as famílias, nas escolas e por meio de campanhas de conscientização.
O básico que não é básico a muitas
- 713 mil meninas vivem sem acesso a banheiro ou chuveiro em seu domicílio.
- 4 milhões de meninas sofrem com pelo menos uma privação de higiene nas escolas. Isso inclui falta de acesso a absorventes e instalações básicas, como banheiros e sabonetes. Dessas, quase 200 mil alunas estão totalmente privadas de condições mínimas para cuidar da menstruação na escola.
- 900 mil não têm acesso a água canalizada em seus domicílios e 6,5 milhões vivem em casas sem ligação à rede de esgoto.
- Enquanto cerca de 24% das meninas brancas residem em locais avaliados como não tendo serviços de esgotamento sanitário, quase 37% das meninas negras vivem nessas condições.
Fonte: Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e o UNICEF: relatório sobre a pobreza menstrual no país (maio/2021)
Como eu posso ajudar?
- ONG Dia do Amor – Porto Alegre
Recebe doações de absorventes e itens de higiene pessoal.
Contribuições financeiras: Dia do Amor (Banco do Brasil Ag 4612-4 CC 26201-3. Chave PIX - CNPJ 36287.872/ 0001-20
Contato pelo Instagram @diadoamor e www.diadoamor.org.br
- Mais Empatia – Porto Alegre
Entrega doações e no dia 25 de setembro terá mais uma ação para levar marmitas e kits de higiene.
Chave do PIX: igorcarbonim@gmail.com
Pontos de coleta e mais detalhes para a entrega pelo Instagram @maisempatiapoa
- Projeto Sobre Nós – Porto Alegre
Recebe doações de roupas, absorventes e alimentos não perecíveis
Chave do PIX 51 98050-5328
Entregas na Avenida Desembargador André da Rocha, 216
Mais informações pelo Instagram @sobrenos_poa
- Absorventes do Bem – Porto Alegre
Perfil no Instagram (@absorventesdobem) que divulga ações e facilita doações a projetos que precisam.
Para assistir no streaming
Documentário Absorvendo o Tabu (2018): a produção indiana ganhou o prêmio de Melhor Documentário em Curta Metragem no Oscar 2019 e mostra mulheres de uma vila na Índia rural produzindo absorventes e como a questão da menstruação ainda é um estigma social no país. Disponível na Netflix.
Filme Homem-Absorvente (2018): o longa indiano conta a história de um empreendedor que enfrenta a humilhação pública e resistência para vender absorventes com valores acessíveis para que até as mulheres mais pobres da Índia possam comprar. Disponível na Netflix.