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Pobreza menstrual

"Improviso com papel higiênico ou paninho": a realidade de mulheres que não têm dinheiro para comprar absorventes

Na Ilha do Pavão, em Porto Alegre, moradoras da comunidade fazem fila para receber doações de produtos de higiene pessoal 

15/09/2021 - 21h47min


Kathlyn Moreira
Kathlyn Moreira
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Kathlyn Moreira / Agencia RBS
Moradoras da comunidade da Ilha do Pavão, na Capital, fazem fila para receber doações de produtos de higiene pessoal

O carro da ONG Dia do Amor entra na Ilha do Pavão, em Porto Alegre, onde uma fila de mulheres e meninas já espera pelos voluntários na porta da associação de moradores. O grupo se prepara para entregar absorventes e itens de higiene a moradoras da comunidade que não têm dinheiro para esses  produtos. Com sorrisos, mães e filhas recebem os kits e agradecem, enquanto também seguram flores carinhosamente dadas pelos jovens.

Em famílias de baixa renda, o que deveria ser um direito de higiene básico, se torna motivo de vergonha e pode até oferecer riscos à saúde pela falta de informação e de infraestrutura em casa. A pobreza menstrual evidencia a dificuldade de acesso de muitas mulheres a absorventes, produtos de higiene e condições de saneamento básico, como ter água encanada em casa. Um relatório divulgado em maio pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) evidencia que 713 mil meninas vivem no Brasil sem acesso a banheiro ou chuveiro.

Na terça-feira (14), os senadores aprovaram a distribuição gratuita de absorventes no Brasil e encaminharam o projeto de lei para sanção presidencial. Antes do Senado, o texto para o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual (PL 4968/2019) já havia sido aprovado na Câmara dos Deputados, em agosto.

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A proposta prevê distribuição de absorventes gratuitos em escolas, à população de rua, em comunidades carentes e em penitenciárias, além de incluir o absorvente como item essencial na cesta básica. Os recursos previstos viriam do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Fundo Penitenciário Nacional.

A dificuldade de comprar itens para higiene menstrual está muito relacionada às condições financeiras das famílias. Quanto menor a renda, mais o orçamento prioriza a alimentação, não restando o suficiente para esses gastos. Na Ilha do Pavão, uma recicladora de 34 anos conta que é normal não ter absorvente em casa. A filha dela, de 14 anos, escuta a conversa e concorda. Questionada sobre quantas vezes no ano ela já perdeu aula por causa disso, afirma:

— Uns 10 dias.

A adolescente não é a única. Um levantamento nacional inédito, coordenado pela antropóloga Mirian Goldemberg, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mostra que uma em cada quatro jovens brasileiras já faltou à escola por não ter dinheiro para comprar absorvente. Essas meninas podem perder até dois meses de aula durante um ano por ter que ficar em casa durante o período menstrual, conforme estima a ginecologista e obstetra Juliana Paulina Schneider.

A solução é recorrer ao que estiver ao alcance para conter o sangramento de cada mês. Na Ilha do Pavão, a maioria das moradoras ouvidas pela reportagem improvisa com os paninhos que se costumava usar anos atrás. Desempregada, Raquel Alves da Fontoura, 36 anos, é uma delas.

— Eu improviso com papel higiênico ou paninho, e quando dá a gente compra.

Kathlyn Moreira / Agencia RBS
Raquel Alves da Fontoura, 36 anos, é moradora da Ilha do Pavão

Além de desconfortáveis, por não serem materiais feitos para este uso, esses produtos também podem oferecer riscos à saúde. A doutora Juliana Paulina Schneider relata algumas situações que já encontrou durante os atendimentos pelo SUS.

— Os paninhos de antigamente são lavados em casa e podem gerar bactérias. Tem o algodão que muitas vezes elas não conseguem retirar e acabam até numa emergência ginecológica. Já vi colocarem frutas que absorvem, tipo banana. Nada disso é o ideal, porque tudo é meio de cultivo para bactérias, que fazem com que elas desenvolvam doenças, como vaginites, ou até uma doença inflamatória pélvica — explica a ginecologista.

A reportagem de GZH entrou em contato com as secretarias estaduais da Saúde e da Educação, e também com essas duas áreas na prefeitura de Porto Alegre. Todas afirmaram que não há projetos para distribuição de absorventes em postos de saúde, escolas ou comunidades carentes.

— A parte mais difícil é para quem trabalha e tem que frequentar um colégio. A pessoa não consegue se sentar à vontade porque não tem o mínimo e acaba sendo constrangida e sofrendo bullying — lamenta Sandra Ferreira, presidente da Associação Vitória, que representa os moradores da Ilha do Pavão.

Passar por uma situação como esta foi o que motivou a voluntária Carla Müller a entregar doações com a ONG Dia do Amor. A ideia veio quando ela foi abordada por uma pessoa no mercado porque estava com uma mancha de sangue na calça.

— Eu fiquei me sentindo supermal e fiquei pensando que tenho todas as condições de comprar um absorvente e mesmo assim isso aconteceu, então pensei nesse desconforto e o que poderia fazer com a ONG — relembra.

Para a doutora Juliana, o coletor menstrual pode ser uma alternativa de investimento pelo poder público. Por ser reaproveitável, é um método mais econômico do que o absorvente e ecologicamente correto, por ter menos descarte.

Segundo a ginecologista, a aceitação do coletor ocorre mais entre as meninas e jovens, mas há também mulheres que querem experimentar. Neste caso, o trabalho de orientação é extremamente importante, para que o produto seja utilizado da maneira certa e com a higienização adequada.

Outro desafio: vencer o tabu e a desinformação

Outro problema que impede que muitas mulheres tenham absorventes e entendam a importância da higiene íntima para a saúde é a vergonha de falar sobre menstruação. Até pouco tempo, comentar sobre o assunto era considerado inadequado, algo que ainda acontece em muitas famílias.

— A gente sabe que algumas pacientes têm até dificuldade de falar que estão menstruadas e acabam usando apelidos e sinônimos. Isso dificulta o processo de autoconhecimento e até de informação. E elas vão ter filhas e vão seguir passando essa dificuldade de informação, fazendo com que persista um tabu em cima de um assunto que deveria ser mais falado — avalia a coordenadora docente da Liga Acadêmica de Ginecologia e Obstetrícia da PUCRS (Ligo), Camila Henz.

Um exemplo que ainda ocorre nos consultórios é a lenda de que faz mal lavar o cabelo quando a mulher está menstruada ou após o parto.

— A mulher ganha nenê e também vai precisar de absorvente, porque fica sangrando, daí a mãe dela fala que não pode lavar o cabelo. Às vezes, a paciente chega na revisão de 14 dias após o parto e pergunta “doutora, já posso lavar meu cabelo? Minha mãe disse que não podia lavar” — conta a doutora Juliana.

A médica também lembra que há pacientes que menstruam e não sabem o que fazer, complicando mais ainda em casos em que o posto de saúde não tem ginecologista, que seria o profissional ideal para explicar mais. Para ela, questões como essa poderiam ser evitadas se o assunto fosse mais discutido entre as famílias, nas escolas e por meio de campanhas de conscientização.

O básico que não é básico a muitas

  • 713 mil meninas vivem sem acesso a banheiro ou chuveiro em seu domicílio. 
  • 4 milhões de meninas sofrem com pelo menos uma privação de higiene nas escolas. Isso inclui falta de acesso a absorventes e instalações básicas, como banheiros e sabonetes. Dessas, quase 200 mil alunas estão totalmente privadas de condições mínimas para cuidar da menstruação na escola.
  • 900 mil não têm acesso a água canalizada em seus domicílios e 6,5 milhões vivem em casas sem ligação à rede de esgoto.
  • Enquanto cerca de 24% das meninas brancas residem em locais avaliados como não tendo serviços de esgotamento sanitário, quase 37% das meninas negras vivem nessas condições.

Fonte: Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e o UNICEF: relatório sobre a pobreza menstrual no país (maio/2021)

Como eu posso ajudar? 

  • ONG Dia do Amor – Porto Alegre

Recebe doações de absorventes e itens de higiene pessoal.
Contribuições financeiras: Dia do Amor (Banco do Brasil Ag 4612-4 CC 26201-3. Chave PIX - CNPJ 36287.872/ 0001-20
Contato pelo Instagram @diadoamor e www.diadoamor.org.br 

  • Mais Empatia – Porto Alegre

Entrega doações e no dia 25 de setembro terá mais uma ação para levar marmitas e kits de higiene.
Chave do PIX: igorcarbonim@gmail.com
Pontos de coleta e mais detalhes para a entrega pelo Instagram @maisempatiapoa

  • Projeto Sobre Nós – Porto Alegre

Recebe doações de roupas, absorventes e alimentos não perecíveis
Chave do PIX 51 98050-5328
Entregas na Avenida Desembargador André da Rocha, 216
Mais informações pelo Instagram @sobrenos_poa

  • Absorventes do Bem – Porto Alegre

Perfil no Instagram (@absorventesdobem) que divulga ações e facilita doações a projetos que precisam.  

Para assistir no streaming

Documentário Absorvendo o Tabu (2018): a produção indiana ganhou o prêmio de Melhor Documentário em Curta Metragem no Oscar 2019 e mostra mulheres de uma vila na Índia rural produzindo absorventes e como a questão da menstruação ainda é um estigma social no país. Disponível na Netflix.

Filme Homem-Absorvente (2018): o longa indiano conta a história de um empreendedor que enfrenta a humilhação pública e resistência para vender absorventes com valores acessíveis para que até as mulheres mais pobres da Índia possam comprar. Disponível na Netflix.  


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