Duas doses
67 municípios do RS têm 70% da população com o esquema vacinal completo contra a covid-19
Entendimento de que a imunidade coletiva erradicaria a doença foi trocado por outra expectativa: a de que o coronavírus se torne mais um vírus com o qual conviveremos, em baixos patamares
Com a terceira vacinação contra a covid-19 mais avançada do país, atrás de São Paulo e Mato Grosso do Sul, o Rio Grande do Sul aplicou duas doses em 54% de todos os gaúchos até quarta-feira (13). Localmente, há coberturas ainda mais altas: 67 dos 497 municípios atingiram 70% de toda a população com esquema completo, segundo dados da Secretaria Estadual da Saúde (SES-RS) – o equivalente a 13% de todas as cidades em solo gaúcho.
Entre municípios acima dos 100 mil habitantes, onde a vacinação costuma ser mais demorada, Porto Alegre tem o melhor desempenho, conforme o governo do Estado – 57% de todos os habitantes com duas doses. Dados da prefeitura da Capital — que costumam ser mais atuais devido à demora de repasse das informações ao Estado — mostram números melhores: 59% de todos os porto-alegrenses com duas doses
Quais dados utilizamos?
Esta reportagem utiliza dados da cobertura vacinal de toda a população de municípios do Rio Grande do Sul porque discute a imunidade coletiva, quando vacinados protegem não vacinados. Não confundir com outra estatística citada por governos, especialistas e imprensa: a cobertura na população apta a se vacinar (adolescentes a partir dos 12 anos), que costuma trazer uma porcentagem mais alta e é utilizada sobretudo para debater a adesão dos brasileiros à vacinação. As porcentagens de cobertura vacinal em cada município citadas neste texto foram informadas pela Secretaria Estadual da Saúde (SES-RS) e levam em conta estimativas populacionais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A meta de vacinar 70% dos habitantes de uma região com duas doses era citada, até pouco tempo atrás, como necessária para atingir a imunidade coletiva, uma forma controle da disseminação da doença segundo a qual há tantos vacinados que o vírus enfrenta grande resistência para circular – como se houvesse um cordão de proteção comunitária. Nesse cenário, vacinados protegem não vacinados.
A fração de 70%, citada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) caso fossem usadas vacinas com pelo menos 50% de eficácia, dependia da demografia e geografia da região (maior ou menor concentração populacional), do nível de transmissão do vírus (ou seja, a característica da covid-19 de ser passada adiante) e da circulação viral (ou seja, se a doença circula muito na população).
Com o surgimento da Delta, altamente transmissível, o entendimento de que a imunidade coletiva erradicaria a doença deu lugar à expectativa de que a covid-19 será mais um vírus com o qual conviveremos, em baixos patamares, e para o qual será necessário revacinar-se, como é o caso da gripe H1N1. Cristina Bonorino, integrante do comitê científico da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI), reforça que atingir 70% da população com duas doses não representa o "fim" da pandemia, mas um cenário no qual o coronavírus poderá estar controlado e flexibilizar atividades será mais seguro.
— Não é um número mágico, mas uma previsão para haver queda significativa no número de casos e de mortes. À medida que as pessoas se vacinam, o vírus chega no individuo, mas se multiplica menos por causa da resposta imune induzida pela vacina. Então, essa pessoa vacinada vai transmitir menos. Riscos de novas variantes diminuem quanto mais vacinados tivermos — destaca a imunologista especialista em vacinas.
Há uma clara redução da força da epidemia quando entre 70% e 90% da população de uma região está com duas doses, pontua Alexandre Vargas Schwarzbold, presidente da Sociedade Sul-Riograndense de Infectologia e professor na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
— A constatação dos 70% era baseada em estimativa de meta de imunização com o comportamento das variantes anteriores, que estabeleciam uma taxa de transmissão mais baixa. Uma flexibilização completa de medidas restritivas, como uso de máscara, distanciamento físico e eventos sem nenhum tipo de protocolo, afeta as metas. Esse é um vírus que pode ser controlado, não erradicado. A obtenção desse status, de imunidade coletiva, em que a maioria da população está protegida contra o vírus, depende da quantidade de pessoas vacinadas e da queda na taxa de transmissão — diz o infectologista, alertando que permitir grandes aglomerações eleva a necessidade de cobertura vacinal para garantir segurança.
Do debate, há um consenso: é preciso aumentar o máximo possível o número de pessoas a serem vacinadas – afinal, quanto mais protegidos, melhor, destaca o médico Juarez Cunha, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). Com um movimento antivacina mais fraco, o desafio pode ser alcançado – em Porto Alegre, por exemplo, 97% de todas as pessoas aptas a se vacinarem, acima dos 12 anos, já receberam uma dose.
— Ainda é discutido se vamos atingir a imunidade coletiva ou não, mas os 70% de vacinados podem ser um percentual bastante protetor. A gente não trabalha mais com porcentagem. Poderemos chamar de imunidade coletiva com a possibilidade de surgirem outras variantes que modifiquem o cenário? A eliminação da doença não é mais colocada como viável. Provavelmente, teremos o controle da doença — afirma Cunha.
Com transmissão ou não, fato é que as vacinas estão ajudando a controlar a epidemia no Brasil desde junho. Se a média de mortes diárias no Rio Grande do Sul chegou a 300 por dia, hoje está em cerca de 14, conforme dados da Secretaria Estadual da Saúde.
É o avanço da vacinação, aliás, que está associado a uma maior segurança para a retomada das atividades econômicas: na Dinamarca, com 85% de toda a população com duas doses, o governo suspendeu todas as restrições aplicadas durante a pandemia.
— Quem não entendeu que as vacinas derrubaram a circulação do vírus e vão permitir a retomada da normalidade não vive neste planeta. Fico muito feliz com a cobertura de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul, mas não dá para esquecer países onde nem médicos foram vacinados. Teremos que conviver com a covid porque não tem vacina para todo mundo e a covid não foi embora no resto do mundo — acrescenta Bonorino, citando o receio de novas variantes em regiões com baixa cobertura vacinal.
A alta cobertura vacinal em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul, contudo, deve ser entendida como sinal de que há uma luz no fim do túnel, e não para liberar geral, dizem analistas. Como o futuro é construído agora, é preciso manter o uso de máscaras, buscar locais ao ar livre para interagir e evitar aglomerações para alcançar o controle da epidemia nos próximos meses.
— Pode começar a sair, sentar em um restaurante na rua, estando vacinado. Hoje não é mais isolamento, e sim distanciamento. São coisas simples para incorporar no dia a dia: saber que é mais arriscado ficar em ambiente fechado com uma pessoa que tu não sabe se está vacinada, sem máscara — resume a imunologista Cristina Bonorino.
Além disso, a cobertura vacinal precisa ser uniforme em diferentes municípios e regiões do país, uma vez que há mobilidade entre as pessoas, acrescenta o médico infectologista Alexandre Vargas Schwarzbold.
— Com a conjunção de taxas mais altas de imunização de forma uniforme no Estado e no país, e prolongar as medidas de precaução, acredito que, a partir do próximo ano, teremos surtos, como na influenza, quando há surtos em pessoas desprotegidas. Aí, não veremos mais, ao menos tão cedo, a situação de pressão hospitalar — afirma Schwarzbold.
Melhor cobertura é em Engenho Velho
As estatísticas do governo do Estado mostram que a melhor cobertura é em Engenho Velho, única cidade gaúcha que já vacinou 100% da população com duas doses. O pequeno município de 932 habitantes fica na Região Norte, a cinco horas de distância de Porto Alegre.
A Vigilância em Saúde do município afirma não ter aplicado a segunda dose em todos os moradores. Segundo a enfermeira Rosemar Gollo dos Santos, 140 adultos ainda precisam receber a segunda aplicação. Dados da Secretaria Estadual da Saúde apontam segunda dose aplicada em 1.019 pessoas – segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o município tem população estimada de 932 pessoas.
— É que a nossa população real é maior do que a estimada pelo IBGE. Então, temos ainda 140 pessoas acima de 18 anos para tomar a segunda dose, o que deve levar cerca de um mês. E temos ainda os adolescentes, que recém tiveram a primeira aplicação. Esses, devemos concluir no final de novembro — diz Santos.
A enfermeira considera que o alto percentual de esquema completo se deve à busca ativa feita na população. Desde a primeira dose, a prefeitura fez uma lista dos vacináveis e contatou todos com agendamento da aplicação.
— Quando alguém não ia, ligávamos de novo, remarcávamos. E no caso de pessoas acima de 90 anos ou acamadas, íamos aplicar na residência. Tivemos uma adesão muito boa, as pessoas ajudaram — observa a servidora.
Rosemar lembra que o município teve quatro mortes por covid-19. Por se tratar de um município pequeno, os óbitos tiveram grande repercussão e sensibilizaram ainda mais as pessoas a buscar a imunização.
Colaborou Leandro Rodrigues