Observador prodígio
Com 15 anos, adolescente já observou quase 500 espécies de aves e dá oficinas sobre os animais para crianças
Augusto Pötter quer se tornar um grande ornitólogo e ajudar na preservação de espécies ameaçadas
Jaqueta de estampa camuflada, calça preta apinhada de pega-pega, binóculo e câmera pendurados no pescoço, Augusto Pötter passa horas no Jardim Botânico de Porto Alegre, circulando sorrateiramente para escutar as aves. E não se acanha em mandar a repórter tagarela falar mais baixo, fazendo um movimento enérgico com a mão.
Mãe do observador prodígio, a advogada Vanessa Canabarro, 41 anos, tenta me confortar relatando que isso acontece com ela o tempo todo. É que, para Guto, “passarinhar” não é brincadeira. Com apenas 15 anos, ele está prestes a atingir a marca de 500 espécies observadas e devidamente registradas no aplicativo eBird. E é capaz de dar uma aula sobre anatomia, hábitos e o som dos animais. Depois de alguns segundos de silêncio, emenda:
— Agora, por exemplo, consegui escutar cinco espécies: caturrita, bem-te-vi, sabiá laranjeira, pica-pau-verde-barrado e saracura-do-mato.
Oficialmente, o menino começou a explorar esse mundo aos nove anos, quando se juntou ao Clube de Observadores de Aves de Porto Alegre (COA-POA). Mas é aficionado por animais desde que se conhece por gente: observava insetos no começo, répteis e aves à medida que foi crescendo.
Mesmo antes de ser alfabetizado, fazia os pais ficarem horas lendo em voz alta livros sobre a natureza, e chegou a corrigir a nomenclatura de um dinossauro no material do jardim de infância. Naquela época, sua professora já o via enfurnado na Amazônia gravando documentários, segundo profetizou à mãe.
Guto nunca gostou de jogar bola ou de jogos eletrônicos. Quando os pais cogitaram presentear-lhe com um videogame, ele respondeu com uma lista de livros que poderiam comprar pelo preço do eletrônico. E o Jardim Botânico sempre foi o refúgio do porto-alegrense, nascido e criado “no meio do concreto” da Avenida Nilo Peçanha.
— A gente só conseguia acalmá-lo trazendo-o para o verde — conta a mãe.
Foi ali que ele ficou sabendo da existência do Clube de Observadores de Aves, em uma exposição de fotos realizada no museu. Inicialmente a única criança em um grupo composto inclusive por especialistas, foi “adotado” pelos integrantes e tratou de raptar a câmera Nikon P900 do pai para participar das saídas.
O biólogo Glayson Bencke, que Guto considera seu mentor, lembra do entusiasmo e da curiosidade do garoto:
— Fazia muitas perguntas, sempre teve interesse e entusiasmo. Pesquisava sobre as aves internet e trazia nas reuniões, pronto para colaborar.
O registro do qual Guto mais se orgulha foi feito em Trancoso, na Bahia, em um evento para jovens observadores promovido por uma universidade americana. Trata-se do crejoá, ave ameaçada de extinção, de penas azuis, com o peito e o papo roxos.
— As pessoas viajam o Brasil inteiro para ver ela — conta ele.
A missão que Guto aceitou na quinta-feira passada (18) era fazer a repórter, leiga e um pouco descoordenada, colocar o binóculo e observar aves. E o primeiro achado da tarde foi um carcará, imponente e estático no topo de uma árvore. Perguntei o que Guto poderia falar sobre ele.
— Para começar, ele é muito bonito. — diz sorrindo, para emendar em tom professoral e sóbrio:
— Mas falando sério agora: o carcará é da ordem falconiformes, a mesma do falcão, embora muita gente pense que seja da ordem do gavião. A primeira coisa notável é o bico muito robusto e forte, pois ele se alimenta principalmente de carniça. E daí eu te pergunto: quem mais se alimenta de carniça? — aqui ele respira e aponta na direção aposta:
— Aquele cara ali, o urubu. O bico de um urubu é curvo e fino, frágil até, feito para desfiar. Então ocorre tipo uma simbiose entre eles, em que o carcará perfura o couro mais duro, e os urubus se alimentam depois.
A observação da tarde ainda rendeu registros de aves que viajaram muito para chegar no Jardim Botânico, como o suiriri. Ela vai para a Amazônia durante o inverno, retornando na primavera para se reproduzir aqui.
— É uma ave migratória. Vocês estão tendo o privilégio de ver ela aqui antes que ela parta — afirma Guto.
Por enquanto, no ninho
Aluno do 1º Ano do Colégio Província de São Pedro, em Porto Alegre, Guto já ministrou oficinas de observação de aves para estudantes mais novos e agora planeja organizar aulas para crianças de abrigos. Recentemente, em saída do COA-POA em Barra do Ribeiro, também coletou informações para o primeiro artigo científico que pretende escrever, com o auxílio de Bencke.
Assim que se formar no Ensino Médio, Guto deve cursar biologia com o objetivo de se tornar "um grande ornitólogo”. Tentará uma bolsa na Universidade Cornell, em Nova York, uma das maiores referências nessa área, e quer lutar pela preservação de espécies.
— Quero fazer algo que ajude na conservação, categorizar algo que diga: essa área tem tal espécie, então não se pode derrubar essa mata, porque ela é ameaçada.
Após se tornar uma das frequentadoras mais assíduas do Clube de Observadores, apenas para acompanhar o filho, Vanessa imagina que logo a profecia da professora do Jardim vai se concretizar. Assim que ele se tornar maior de idade, vê Guto se metendo no mato por dias, sem sinal de telefone nem jeito de se comunicar com a mãe.
Mas vem se conformando faz tempo. Desde que ele era pequeno, Vanessa sabia que não ficaria debaixo das suas asas:
— Eu sei que ele vai voar.