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O drama da fome

Moradores da Ilha do Pavão dividem comida doada para animais: "Às vezes vem criança com balde pedindo"

Região tem um dos piores índices de desenvolvimento humano da Capital

26/11/2021 - 08h46min

Atualizada em: 26/11/2021 - 08h47min


Tiago Boff
Tiago Boff
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Félix Zucco / Agencia RBS
Cléber busca sobras de comida em restaurantes para alimentar a família e animais, e divide com os vizinhos

Sob a sombra de uma amoreira, em frente a um matagal repleto de sacolas de lixo, moradores da Ilha do Pavão aguardam a chegada da comida de um restaurante "da cidade", como se referem à parte de Porto Alegre no continente.

O que foi destinado a eles são as sobras de bufês, recolhidas por um criador de galinhas, gansos, patos e cachorros. Parte vai para porcos mantidos próximo às casas da comunidade. Já o que está em melhores condições preenche os baldes dos próprios vizinhos.

— É triste de ver. Às vezes vem criança com balde pedindo: "Tio Cléber, enche pra mim". Já teve um que estava passando e eu vi ele comer direto do lixo. Chamei e dei uma comida melhor — conta o dono da propriedade, ao lado dos bichos. 

Cléber pediu para não ter o sobrenome divulgado. Teme perder a comida com a qual também alimenta a esposa, os filhos e a neta. Ele é um dos 19,6 milhões de brasileiros em insegurança alimentar grave, número que dobrou entre 2018 e 2020, segundo estudo referencial da Rede Penssan — as histórias por trás desses índices estão em reportagem especial de Fábio Schaffner publicada nesta sexta-feira (26) em GZH.

Cléber ganha pouco mais de R$ 178 por mês, ficando acima do que se determina — estatisticamente — como "linha de pobreza". Porém, 1,29 milhão de gaúchos recebem esse valor como teto, conforme dados divulgados em outubro pelo Departamento de Economia e Estatística (DEE) do governo do Estado.

É uma parcela dessa população que bate palmas no acesso ao terreno de Cléber pedindo sobras de arroz, massa, carne e molho. Mas até essa comida, compartilhada com os bichos, reduziu: sem dinheiro para abastecer o velho furgão, ele dispensou um dos bares mais distantes, cortando a importante contribuição que vinha do estabelecimento.

Na tarde de quinta-feira (25), o reciclador transportou para a ilha — um dos piores índices de desenvolvimento humano (IDH) da Capital — marmitas improvisadas em vasilhas plásticas e galões de refeições rejeitadas pelos clientes dos restaurantes. Uma das cumbucas foi entregue a Raquel Alves da Fontoura, 36 anos.

— Às vezes vem um pedaço de carne ou alguma coisa que dá para usar. Mas às vezes não tem condições de comer — lamenta a mulher.

O pote serviria a mãe, de 73 anos, e três filhos que vivem com ela em um barraco. Raquel tem como fonte de renda o Bolsa Família e o que recebe com a venda de material reciclado, insumo que "cada vez paga menos", segundo a catadora. Ela se diz grata pelo auxílio de Cléber, pois nem sempre tem na despensa o mínimo para cozinhar.

— Tem momento que aperta, e sobra só uma polenta — conta.

Félix Zucco / Agencia RBS
Raquel e Cléber são moradores da Ilha do Pavão, em Porto Alegre

Antes de morar na Ilha do Pavão, ela viveu um período nas ruas do bairro Partenon. A época é relembrada com certa revolta na fala, mas sem demonstrar vergonha pela situação a que acabou submetida.

— Já limpei comida do lixo, pra comer, da lixeira da lanchonete. E não tenho vergonha de dizer, não tenho vergonha de pegar comida, porque a gente precisa — finaliza.

Noêmia Severo, 54 anos, também precisou da comida dividida com os animais. A costureira tem oito filhos, mas "só seis" vivem com ela. Sobre a busca do que é compartilhado por Cléber, garante já ter perdido a conta de quantos flagrantes presenciou.

— No fim de tarde, tu vê uma fila de gente com balde, bacia, panela. Um atrás do outro, tudo para pegar a comida lá.

Na localidade, vivem 120 famílias, registradas na Associação de Moradores da Ilha do Pavão. Com média de seis a sete pessoas por residência, o total da população alcança 800 habitantes.

Ao lado da associação, fogões foram substituídos por tijolos na calçada, e galhos ajudam a formar as chamas. Para atender os que não conseguem improvisar a cozinha na rua, tampouco adquirir um botijão, é estudada a produção de um forno de barro.

— Assim, quem tem farinha pode fazer um pão, vai doando um para o outro, aprende a se virar — argumenta a presidente da associação, a pedagoga Sandra Ferreira, 52 anos.

De acordo com o padre Rudimar Dal'Asta, pároco da Igreja Nossa Senhora da Boa Viagem, na Ilha da Pintada, seriam necessárias 4 mil cestas básicas por mês para atender a todos.

— Mas nunca chega a isso. Eu não posso sair de mochila na rua que as pessoas pensam que eu vou distribuir ficha com senha para pegar cesta. Se me veem, já gritam pedindo algum alimento. Se marco entrega de cestas às nove da manhã, já tem gente desde as três da madrugada na fila — explica o religioso.

Dentre os motivos alegados para a queda na renda dos moradores está a maior dificuldade imposta pela prefeitura para reciclagem por quem é autônomo. Atualmente, o lixo seco só pode ser comercializado pelas unidades de triagem conveniadas com o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU). Os carrinheiros prometem manifestações contra as restrições nos próximos dias.

GZH procurou a prefeitura, que não se manifestou até a publicação desta matéria.


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