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Pandemia  às escuras

Apagão de dados sobre a covid-19 no Brasil completa um mês; RS desconhece real número de casos e vacinados

Ataque hacker ao Ministério da Saúde não foi resolvido pelo governo federal e coloca Estados em voo quase cego para combater nova onda de Ômicron

10/01/2022 - 09h17min

Atualizada em: 10/01/2022 - 09h18min


Marcel Hartmann
Marcel Hartmann
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André Ávila / Agencia RBS

O apagão de dados oficiais sobre a covid-19 no Brasil, após ataques hackers ao Ministério da Saúde, está prestar a completar um mês. A cegueira estatística ocorre no pior momento possível: em meio à nova onda da variante Ômicron, que já eleva casos e hospitalizações no Rio Grande do Sul. 

Em 10 de dezembro, o Ministério sofreu um ataque cibernético que deixou fora do ar o sistema de notificação de casos leves, o e-SUS Notifica; o Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunização (SI-PNI), responsável por dados de vacinas aplicadas; o Sivep-Gripe, para registro de hospitalizações e mortes; e o Conecte-SUS, que emite o comprovante de vacinação.

Além disso, como mostrou GZH com exclusividade, a invasão cibernética atingiu o principal sistema do Ministério da Saúde, a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), conhecida por ser a “plataforma-mãe” que reúne todas as informações registradas por servidores do Sistema Único de Saúde (SUS). 

A despeito de o governo federal afirmar que todos os sistemas foram restabelecidos (leia nota ao fim do texto), Estados, municípios e especialistas reclamam que há instabilidade nas plataformas. Resultado: o país desconhece o real número de novos casos, mortes, hospitalizados por covid-19 e vacinados. 

Alguns Estados acompanham certos indicadores por possuírem sistemas próprios (como o Rio Grande do Sul, para hospitalizados), mas outros, não (como Tocantins e Roraima). Soma-se a isso a subnotificação de casos por ausência de testagem em massa – na Alemanha, por exemplo, testes gratuitos estão à disposição de vacinados sem necessidade de consulta.

Sem dados fiéis sobre a realidade, o país não sabe o impacto de fato da covid-19 e depende de dados de laboratórios privados ou da procura por postos de saúde e hospitais para saber como anda a epidemia.

— Isso é grave, estamos em época na qual apenas esperamos a enxurrada de casos trazida pela Ômicron. Como a Ômicron acaba sendo menos grave, o indicador de hospitalização e morte não dá a visão completa da pandemia. Quanto mais tempo demorarmos para visualizar esses casos, mais vamos demorar para tomar medidas sanitárias adequadas. Esse apagão de dados é conveniente àqueles que negam a pandemia. Quanto maior a desinformação e menor a confiabilidade em dados, mais fácil é para manipular a informação e negar a pandemia — diz Álvaro Krüger Ramos, professor de Matemática Aplicada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador de estatísticas da covid-19.

Como o RS é afetado?

Por deter sistema próprio de registro de hospitalizações, o Rio Grande do Sul contabiliza normalmente os números de uso de Unidades de Terapia Intensiva (UTI) e de leitos clínicos. O registro de mortes também está normalizado, segundo governo do Estado e Conselho de Secretarias Municipais do Rio Grande do Sul (Cosems-RS).

A Secretaria Estadual da Saúde do Rio Grande do Sul (SES-RS) afirma que apenas o sistema de dados de vacinação está fora do ar, mas municípios e especialistas alegam que outros programas de informática também. 

O Estado diz que o registro de casos leves pelo e-SUS Notifica ficou impossibilitado em 10 de dezembro e retornou em 27 de dezembro, data a partir da qual “a publicação dos dados pelo Estado está normalizada”, dependendo apenas de municípios inserirem dados no sistema e atualizarem retroativamente as estatísticas de dezembro. 

No entanto, o secretário-executivo do Cosems-RS, Diego Espindola, descreve que o sistema está instável e que profissionais da saúde têm dificuldade em inserir dados de casos leves no sistema federal. Como resultado, há represamento de estatísticas. 

A notificação no e-SUS Notifica ocorre quando um profissional de um posto de saúde senta no computador, abre o sistema, coloca usuário e senha e preenche uma planilha com os dados do indivíduo que testou positivo para coronavírus. Mas esse movimento básico não consegue ser feito normalmente, segundo Espindola.

Estatísticas do governo do Estado anteriores a 27 de dezembro seguem desatualizadas (há dias com menos de 100 casos positivos notificados em todo o Rio Grande do Sul). A partir de 27 de dezembro, quando o sistema supostamente foi normalizado, o número de casos diários ficou entre 1 mil e 1,5 mil. Na última sexta (7), deu um salto para 6,5 mil infecções registradas e, neste sábado (8), para 7,9 mil.

— O e-SUS Notifica não voltou à normalidade total. As informações não estão sendo colocadas em tempo real porque o sistema está instável. O e-SUS Notifica entra no ar dois ou três dias com estabilidade, depois “buga” e cai. O profissional insere os dados, mas não consegue encerrar porque a página fica atualizando. Antes, levava 30 segundos para notificar um caso, agora leva três, quatro minutos. O sistema não está 100% funcionando no Brasil inteiro, não só no Rio Grande do Sul — diz Espindola.

O cientista de dados Isaac Schrarstzhaupt, coordenador da Rede Análise, considera que o Rio Grande do Sul não vive um apagão completo de dados, mas um "meio apagão": não sabe como anda a vacinação, desconhece o real número de casos, mas acompanha ocupação hospitalar e óbitos. Ele alerta sobre o risco de pautar a gestão da pandemia apenas em dados de casos graves – portanto, tardios.

— Na onda de fevereiro de 2021, a gente viu primeiro as hospitalizações em leitos clínicos e depois os casos confirmados, por atraso — afirma. — Se houver grande aumento de casos, é represamento de estatísticas, é aumento natural ou os dois? Não é total apagão, mas deixa a gente com pé atrás para saber se os dados são confiáveis. Na vacinação, é importante para sabermos se estagnamos ou se podemos flexibilizar mais. Perder o controle sobre a cobertura vacinal é perder o controle sobre as decisões de política pública — diz Schrarstzhaupt. 

Questionada se reconhece o represamento de dados de casos leves no Rio Grande do Sul, a Secretaria Estadual da Saúde afirma que não é possível ter certeza de quantas notificações ainda possam estar represadas ou não, pois isso “depende de uma análise de cada município, que durante o período onde o e-SUS esteve fora do ar estavam orientados a manter esses registros em paralelo (sistemas próprios ou fichas manuais e digitais)”. 

O Estado diz que, assim que o acesso ao sistema foi restabelecido em 27 de dezembro, “os municípios puderam então inserir os dados, conforme suas capacidades”.

Quem está hospitalizado?

O controle do número de hospitalizados seguiu inabalado em solo gaúcho porque o governo do Estado tem sistema próprio. Mas a invasão hacker ao Ministério da Saúde afetou o sistema de registro de hospitalizações por síndrome respiratória, o Sivep-Gripe, que permite verificar o perfil dos internados, como idade, sexo e raça. 

O Ministério da Saúde diz que o sistema foi normalizado, informação endossada pela Secretaria Estadual da Saúde, mas negada por especialistas. O médico epidemiologista Ricardo Kuchenbecker, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, comenta que o Sivep-Gripe está instável. 

— A gente continua tendo dificuldade de acessar o Sivep-Gripe. A dificuldade é integralizar os dados a partir da variação. Nem sempre a informação está disponível. Seguimos com dificuldade de obter o conjunto de informações estratificadas por semana epidemiológica e faixa etária de hospitalizados — diz o epidemiologista. 

Dados de vacinação fora do ar

Desde 10 de dezembro, todos os Estados estão com o SI-PNI, que permite acompanhar avanço ou estagnação da aplicação de doses, fora do ar. Há um mês, o Rio Grande do Sul artificialmente estagnou em 70% da população com duas doses. O governo federal diz que o sistema voltou.

A Secretaria Estadual da Saúde do Rio Grande do Sul afirma que o sistema de vacinas chegou a ser restabelecido no final de dezembro para consulta ou registro de novos dados, mas “ainda não está fornecendo o acesso ao banco de dados completo, pelo qual a SES carrega as informações que geram os números do painel do Estado”. Acrescenta que aguarda o governo federal resolver o problema.

Com a queda do sistema, servidores de postos de saúde não conseguem checar quem está com a dose atrasada para ligar ou visitar a residência e convocar o indivíduo à revacinação. 

Questionada, a SES não respondeu se considera estar apta a controlar a nova onda de covid-19 sem dados fidedignos de casos e de vacinação, apenas com hospitalizações e mortes. 

GZH questionou o Ministério da Saúde sobre quando os sistemas serão restabelecidos, por que o governo leva um mês para resolver o problema e se o apagão prejudica o controle da pandemia. A pasta respondeu por nota:

"O Ministério da Saúde informa que em dezembro foram restabelecidas as plataformas e-SUS Notifica, Sivep-Gripe, SI-PNI e Conecte SUS, possibilitando a inclusão de dados por Estados e municípios. Alguns dos dados lançados podem ainda não constar nas interfaces dos sistemas, entretanto, todas as informações podem ser registradas pelos gestores locais e, assim que a integração de dados for restabelecida, os registros poderão ser acessados pelos usuários.

Nesta sexta-feira (7), foram restabelecidas as integrações dos sistemas de imunização com a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), possibilitando assim o retorno do envio dos dados à referida rede, pelos Estados, Municípios e Distrito Federal, e a visualização por parte do cidadão de seus registros de imunização.

Cabe ressaltar que o Departamento de Informática do SUS (Datasus) segue atuando para restabelecer as demais plataformas e integradores de forma gradativa, com previsão de normalização para janeiro".


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