Da rede para a mesa
Apesar da inflação e safra ruim, 242ª Feira do Peixe inicia em busca de retomada no centro de Porto Alegre
Colônia de Pescadores Z5, nas Ilhas, espera vender cerca de 200 toneladas de peixes congelados, frescos, assados ou fritos na semana da Páscoa
O primeiro dia da 242ª Feira do Peixe de Porto Alegre foi marcado por atrasos para o início das vendas. O Largo Glênio Peres recebeu, desde a noite de domingo (10), 40 expositores com freezers e demais equipamentos para armazenar, preparar e vender, ao todo, 200 toneladas de pescados, das 8h às 20h, até a Sexta-Feira Santa. O movimento de vendas começou, efetivamente, por volta das 14h desta segunda-feira (11).
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Enquanto o fornecimento de água e de energia elétrica eram estabelecidos no local, no Centro Histórico, por volta das 9h, feirantes comentaram a perspectiva de vendas para os próximos cinco dias de evento.
— A pesca deste ano não foi tão generosa, alguns peixes demoraram a aparecer pelo nosso litoral, as condições climáticas não eram as ideais. Além da inflação, que subiu o preço de tudo e vai fazer o peixe chegar mais caro para a gente aqui também — comenta o vendedor Charles Silveira, 43 anos, que voltará a vender peixe com sua família no Largo Glênio Peres depois de não participar do evento em 2021 por conta dos riscos da pandemia naquele mês de março.
O pescador Henrique Ordovás, 46, observou uma queda do volume de pescados na costa doce gaúcha em relação aos anos anteriores:
— A safra da tainha, por exemplo, deveria ter começado em outubro, mas aconteceu só em janeiro. São José do Norte é onde mais dá peixe, e ali já não foi tão bom quanto nos outros anos. Então imagina nos outros lugares.
Com o combustível dos automóveis mais caro e a dificuldade para encontrar a mesma quantidade de peixes por perto, a tabela de preços é o primeiro indicador de mudanças para a feira de 2022. Na chegada do primeiro caminhão com pescados ao Largo, por volta das 10h30min desta segunda, Charles e a esposa calculavam quanto investiriam na primeira compra da semana para encher seus freezers de peixes congelados. Ao lado do veículo, que trazia 15 toneladas de peixes refrigerados de Laguna, no litoral sul de Santa Catarina, comparavam os preços de corvina, tainha, cação, panga, pescada, merluza, tilápia e outros — o quilo mais barato entre os comercializados sem escamas nem vísceras era encontrado a R$ 21, com a alternativa da corvina inteira por R$ 12.
— Durante a semana passada, recebemos uma tabela com um preço da tainha, que agora já está outro. Nos próximos dias, os valores também devem flutuar, dependendo dos preços da concorrência e da procura. Os preços de muita coisa subiram, mas a gente tem que trabalhar igual, né? — pondera o feirante.
Ainda assim, a Colônia de Pescadores Z5 prevê que o público vai voltar a ir até o Largo para matar a saudade do evento. O atraso do início das vendas é justificado pelos últimos ajustes nos estandes para que nenhum detalhe ficasse para trás depois que muitos vendedores passaram dois anos sem participar da feira, explica a organização do evento.
— Esperamos que o público venha ao longo da semana, mas sabemos que a quinta e a sexta, por conta do feriadão da Páscoa, são os principais dias em questão de vendas e movimento — projeta o presidente da Z5, Gilmar Coelho.
Outros dois pontos complementam a venda na cidade. Na Avenida Heitor Vieira, 494, no Belém Novo, acontece também a 10ª Feira do Peixe do Extremo Sul, de quarta a sexta. Na Esplanada da Restinga, a 20ª Feira do Peixe do local mobilizará a comunidade, também de quarta a sexta. Ambas funcionam das 8h às 20h.
Os preços
O filé de tainha congelado deve ser vendido por Charles, no Largo Glênio Peres, por R$ 26, e o de tilápia, a R$ 36. Já a tainha assada na taquara, uma especialidade da Ilha da Pintada, será vendida por outros feirantes entre R$ 30 e R$ 40 — dependendo do tamanho do bicho, da quantidade ou do dia em que o cliente pedir pela iguaria.
Ao fundo do pavilhão, a família das irmãs Paula, 47, e Cátia Araújo, 53, se divide em duas bancas. A mais nova vende apenas tainha na taquara, enquanto a mais velha aposta na fritura de iscas de filé em espetinhos. Ambas acompanhavam os pais, Nildethe e Dilson da Silva, desde a adolescência, e agora perpetuam a tradição da família da Ilha da Pintada. No começo da manhã, já tinham suas equipes e estandes prontos para atender os clientes, porém, dependiam da chegada dos protagonistas da semana ao local: os peixes.
Paula conta que levou 600 quilos de carvão e 500 taquaras adaptadas para servirem como grelha para assar as tainhas que serão compradas e vendidas ali ao longo da semana. Os seis parentes escalados para trabalhar com ela na feira atenderão clientes a qualquer hora do dia ou da noite — com direito a balcão para apreciar o peixe que leva tempero secreto e trocar alguns minutos de conversa.
— Queremos vender uma tonelada de peixe nesses dias, mas uma coisa é querer, outra é conseguir — brinca, esperançosa de uma retomada nas vendas potencializada pelo seu tempero secreto, depois de desfalcar o evento por dois anos devido à pandemia.
— O cheiro vai ser irresistível por aqui — garante Paula Araújo.
Em 2020, no último evento antes de a pandemia impedir uma nova edição, 376,4 toneladas de peixes foram vendidas, de acordo com a organização do evento. Já em 2021, o montante caiu para 51 toneladas, segundo a prefeitura da cidade, por conta das restrições de circulação e necessidade de distanciamento decorrentes daquele momento de pandemia.
Entre as duas bancas da família Araújo, um cartaz anuncia promoção de cinco bolinhos de peixe frito por R$ 4 e uma porção de iscas filés por R$ 8, os melhores preços que a reportagem encontrou na feira antes da abertura. A maioria dos feirantes aceitará cartões de débito e crédito, dinheiro em espécie e Pix.
Referência histórica
A banca seguinte é a mais tradicional da feira, comandada por Salomão Souza, 82. O pescador conta com clareza de detalhes as primeiras edições do evento que ele participou, até então sem muita escolha, mas com a mesma dedicação de 2022.
— Eu tinha sete anos, era pequeno, mas inteligente. Vinha remando com o pai em uma canoa que parava ali no cais (Mauá). O pai atendia as pessoas e eu cuidava dos peixes na rede, que segurava eles ainda vivos dentro da água ao lado da nossa canoa. Lá de cima, o cliente olhava os peixes que eu mostrava e escolhia qual queria. Eu colocava a mão na água e o pegava, o pai enrolava e entregava — relembra, ao lado das quatro churrasqueiras em que pretendem assar duas toneladas de tainha nos próximos cinco dias.
Nesta edição de 2022, 75 anos depois, os peixes irão até sua banca em um caminhão. As tainhas pescadas na Praia do Laranjal são armazenadas e transportadas com parceiros de longa data, a quem Salomão confia na seleção de pescados mesmo quando as condições climáticas não são favoráveis. Os sete filhos e genros colocarão a mão na brasa por ele, sempre com a companhia e supervisão do mais experiente.
Ele mostra o tempero secreto que dá sabor e aroma à carne dos pescados que assarão nos latões da família. Com os espetos de bambu feitos por ele mesmo em mãos, recebe a ajuda de um dos 29 netos para ajustar a gola da camisa polo branca por fora do avental preto que leva seu nome bordado no peito. Os espetos de bambu feitos por Salomão seguram a tainha inteira em uma abertura interna, como se fosse uma grelha. Além de vender os peixes assados nas mil taquaras de cerca de um metro, ele espera vender os próprios espetos.
— Tem gente que compra um peixe e 10 espetos. Podem ser usados três ou quatro vezes, dependendo de como a pessoa manuseia. Eu os considero um troféu do meu trabalho. Mais do que ganhar dinheiro, a gente gosta de ver quem compra gostar do peixe e voltar para comprar mais — comenta.
Seu Salomão, nascido na Ilha da Pintada e casado há 51 anos com dona Maria Dolores de Oliveira Rodrigues, é o mais antigo feirante da Colônia de Pescadores Z5. Além das histórias de feira e pesca, conserva memórias dos tempos de juventude, quando diz ter sido campeão de remo nas águas da cidade. Religioso, encerra a conversa mencionando dois salmos bíblicos e projetando uma terceira passagem sagrada para ele, essa última, de própria autoria:
— No sábado, depois da feira, vou direto para Magistério com a patroa. Se olhar no meu quarto às 6h da manhã do domingo, já não vão me encontrar, pois estarei caminhando na beira da praia.