Saúde bucal
Espera para tratamento de canal pelo SUS chega a quase quatro anos em Porto Alegre
Em agosto, cerca de 8,5 mil pessoas estavam na fila para atendimento em endodontia
Um menino de seis anos e a prima dele, da mesma idade, olham curiosos para duas dentistas voluntárias que chegam na Ilha do Pavão. As duas jovens fazem parte de uma iniciativa que ajuda crianças de baixa renda a terem acesso a tratamentos odontológicos. Depois de serem apresentados, os pequenos abrem a boca e mostram os dentes para as profissionais. Não demora muito para que elas comecem a encontrar as cáries em várias crianças do grupo que se aproxima.
— Dói quando eu como maçã e comida — conta o mesmo menino.
A reportagem de GZH pergunta se ele sabe o que é cárie, diagnóstico informado pela dentista.
— Ele deixa podre — responde o garoto.
Em agosto deste ano, mais de 17 mil pessoas estavam na fila aguardando por um tratamento odontológico pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em Porto Alegre. Quase metade delas (8.498), precisavam de um atendimento de endodontia — como um tratamento de canal, por exemplo, que serve para curar uma infecção na raiz do dente. A espera, no entanto, é longa. Para esta subespecialidade, foram disponibilizadas 531 ofertas de primeira consulta em agosto, levando anos para ser chamado.
— Chega a até quatro anos, porque também tem as prioridades. Criança, gestante, tem alguns critérios que a pessoa passa na frente. A fila da endodontia é a maior fila do município — afirma a Caroline Schirmer, diretora de Atenção Primária da Secretaria Municipal da Saúde de Porto Alegre e também dentista.
As duas principais doenças da cavidade bucal, que são a cárie dentária e doença periodontal (de gengiva), estão diretamente ligadas aos hábitos de vida em família e podem começar desde cedo, segundo o professor da Faculdade de Odontologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Fernando Ritter.
— Se as pessoas não tiveram a oportunidade de receber orientações corretas sobre a importância da higienização dos dentes várias vezes ao dia, de usar uma escova dental macia e fio dental, é possível que, ao longo da vida, elas sofram consequências e até perdas dentárias precoces. Outro fator determinante são os hábitos alimentares, prejudicados pelo uso indeterminado do açúcar — avalia.
Caroline explica que os Centros de Especialidades Odontológicas (CEOs) em Porto Alegre não têm recursos suficientes para atender toda a demanda. Como os tratamentos são mais complexos, são necessárias pelo menos quatro consultas até a finalização dos casos de endodontia, o que prolonga o tempo até o próximo paciente ser chamado.
Outras subespecialidades também estão com filas extensas. Em agosto, 3.349 aguardavam para conseguir marcar uma cirurgia bucomaxilofacial (que inclui a remoção de siso, por exemplo) em um CEO, sendo que havia apenas 246 ofertas para primeira consulta. A situação também é complicada para quem precisa de prótese dentária. No mês passado, 2.568 pacientes estavam na lista para 87 vagas ofertadas para o primeiro atendimento.
Uma explicação para essa demanda represada é a pandemia, que oferecia risco alto de contaminação.
— A gente continuou encaminhando os pacientes, mas os centros de especialidades e os hospitais tiveram uma restrição muito forte. As duas principais filas, que é a bucomaxilofacial e a endodontia, hoje, são os piores cenários. A gente está fazendo uma contratação para diminuir esses procedimentos e a fila. Encaminhamos para o tratamento de canal, mas muitas vezes o dente acaba sendo perdido antes — frisa Caroline Schirmer.
Segundo a diretora da Atenção Primária da Secretaria Municipal da Saúde de Porto Alegre, não há espera para os atendimentos de baixa complexidade, como limpeza, restauração de dentes e extração dentária. No entanto ela afirma que isso ocorre porque não existe procura da população nas unidades de saúde, inclusive nas que oferecem atendimento noturno.
— Acaba tendo unidades em que (o atendimento) vai ficando ocioso. A gente até abriu no aplicativo 156 a possibilidade agendar, porque por demanda espontânea não preenchia — afirma.
A presidente da Associação de Moradores da Ilha do Pavão, Sandra Noeli Ferreira, conta que o posto de saúde que atende a região está fechado há dois anos, o que dificultou ainda mais o acesso dos moradores a tratamentos odontológicos.
— A gente tinha um dentista bom ali, que fazia todo tipo de tratamento. Agora, a gente está há dois anos sem ir ao dentista — afirma.
Sandra era uma das pacientes que precisava de tratamento de canal. No entanto, como ficou três anos aguardando, o dano gerado no dente já é irreversível.
— A dentista olhou meu dente na triagem e disse que não dava mais para fazer tratamento de canal. Pela demora no atendimento, eu perdi o dente, então, vou ter que extrair — desabafa.
Sandra diz que está tentando marcar uma consulta para realizar a extração na Unidade de Saúde Mário Quintana. Ela chegou a conseguir um horário, mas teve que reagendar porque a dentista estava com covid-19 e entrou em férias logo depois. Desde então, a moradora diz estar buscando uma nova data.
Sobre o fechamento da unidade da Ilha do Pavão, a Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre (SMS) afirma que o encerramento dos atendimentos ocorreu porque o local era alugado, mas prevê a reabertura de um posto para a região no mês de outubro.
Mais consultas e menos filas
A atual situação do atendimento odontológico em Porto Alegre é acompanhada pelo Ministério Público do Estado, que firmou um termo com a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) para que cirurgiões-dentistas sejam realocados para unidades que estão com mais demandas. As mudanças foram acordadas para começar em julho. A partir desta data, o MP vai analisar em seis meses se haverá alguma mudança.
— Durante esses meses a gente vai monitorar para saber se isso vai fazer a tendência de reversão do aumento do número de pessoas na fila de espera — explica promotor dos Direitos Humanos de Porto Alegre Mauro Luís Silva de Souza.
GZH procurou a SMS e questionou sobre quais melhorias já foram implementadas, se houve remanejo de profissionais e também sobre a possibilidade de novas contratações. A pasta respondeu que houve nomeação de 15 dentistas, sendo que oito foram para as unidades e centros de especialidade.
Comparando os relatórios das filas, foi registrado um aumento na oferta de primeiras consultas entre julho e agosto para as subespecialidades com maior procura. No mês passado, foram disponibilizadas 531 vagas para endodontia, o dobro em relação a julho, que foram 266. Para cirurgia bucomaxilofacial nos CEOs, também houve uma elevação de 41%, ou seja, passou de 174 consultas disponíveis em julho para 246 em agosto.
Centros especializados
Porto Alegre tem 222 equipes de saúde bucal, formadas por um dentista e um auxiliar. Elas atuam em 118 das 132 unidades de saúde da cidade, 16 deles com horários noturnos, segundo a Secretaria Municipal de Saúde.
Para os procedimentos mais complexos, como periodontia especializada (tratamento de gengiva) e endodontia (tratamento de canal), foram criados os Centros de Especialidades Odontológicas (CEO). Na Capital, são seis em funcionamento: UFRGS, Bom Jesus, IAPI, Santa Marta, GCC (Vila dos Comerciários) e um vinculado ao Grupo Hospitalar Conceição (GHC).
De acordo com a coordenadora da Política Estadual de Saúde Bucal, Tatiana Damiani Lafin, a manutenção dos CEOs deve ser feita pelas prefeituras. GZH questionou nesta semana qual o aporte aplicado em Porto Alegre, e aguarda retorno.
O Estado oferece R$ 2,7 mil por mês a cada centro e ajuda no custeio de próteses. Há ainda um recurso que vem do governo federal, cerca de R$ 60 mil, e uma contribuição mensal do Ministério da Saúde, que varia de acordo com cada local.
— A gente acredita que precisaria um maior aporte de recursos para os municípios, para eles conseguirem fazer a contratação desses profissionais. E outra coisa que prejudica é a mudança de profissional. Teriam que ser mais atrativos os salários — analisa Tatiana.
Avaliação
Para acompanhar o desempenho dos CEOs, o Ministério da Saúde faz uma avaliação em cada estado conforme uma produção mínima exigida. No Rio Grande do Sul, o centro de São Lourenço do Sul lidera, seguido do de Alvorada (confira abaixo). No caso da cidade da Região Metropolitana, que tem cerca de 215 mil habitantes (sete vezes menor que Porto Alegre), a fila de espera atual é de menos de um ano.
Para a técnica em saúde bucal do CEO de Alvorada Simone Pacheco da Silva, a pandemia afetou a demora, que antes era de dois a três meses. Para melhorar a situação, estão previstos mutirões aos sábados para agilizar os atendimentos.
— A gente tem o cuidado de ligar para o paciente para reforçar a data da consulta. Caso não possa vir, colocamos outro no lugar. A fila de espera, hoje, devido à pandemia, está demorada. Estamos chamando o pessoal de janeiro deste ano — esclarece a técnica.
Entre os seis CEOs disponíveis em Porto Alegre, o da UFRGS é o melhor avaliado no ranking, ocupando a 6ª posição. A Capital volta a aparecer em 18º lugar, com o CEO do Grupo Hospital Conceição. Na sequência, estão os CEOs Bom Jesus, Vila dos Comerciários e Santa Marta. Já o CEO IAPI aparece na 28ª posição.