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Vulnerabilidade

"Não tomo banho de chuveiro há 20 anos": projeto que constrói banheiros de graça atende 1,8 mil famílias no RS

Estimativa é de que há 30 mil casas sem banheiro na região metropolitana de Porto Alegre

19/09/2022 - 11h21min

Atualizada em: 19/09/2022 - 11h23min


Tiago Boff
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Aline Ecker
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Faz 20 anos que Patrícia Reis Machado não toma um banho de chuveiro. Desde que perdeu o apartamento, a pensionista de 50 anos passou a viver em uma casa de madeira onde não há banheiro. A ducha, hoje, é uma mangueira enrolada na parede, esticada do pátio até a peça improvisada ao lado da cozinha, sem luz, privada ou encanamento.

— Se tá frio, a gente esquenta a água no fogão e toma banho de bacia. Mas quando não tem gás, a gente esquenta na rua, com o que acha — explica, sobre as saídas encontradas por ela e os cinco filhos, moradores do bairro Guajuviras, em Canoas.

Se não houver atraso no cronograma, Patrícia e outros 358 vizinhos do município da região metropolitana de Porto Alegre terão, ao menos nesse quesito, a dignidade restabelecida ainda em 2022. Canoas teve a maior adesão ao programa Nenhuma Casa Sem Banheiro, no qual os imóveis são contemplados com um projeto elaborado por um arquiteto e verba para a execução da obra de uma unidade sanitária completa, com saída de esgoto, instalação hidráulica, elétrica e dos equipamentos para higiene pessoal. Em casos especiais, um tanque também é entregue para quem quiser um ponto extra.

— É o meu sonho. Não tomo banho de chuveiro há 20 anos — repete, ansiosa, Patrícia.

Sem custos à população em vulnerabilidade, o projeto foi criado pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul (CAU/RS), no final de 2021. Ele é viabilizado por uma parceria entre a entidade e o poder público. Inicialmente, o programa previa melhorias em toda a residência, mas a partir de janeiro de 2022, teve o foco alterado com base em um dado alarmante: 1,6 milhão de brasileiros não têm banheiro em casa, segundo o IBGE, cerca de 30 mil somente na Grande Porto Alegre, de acordo com o presidente do CAU/RS, Tiago Holzmann da Silva.

— Tem uma série de pesquisas que mostra isso e os dados no Rio Grande do Sul certamente estão defasados. Provavelmente seja ainda maior. Provamos que ajudar essa população é urgente, super necessário e que é viável — avalia.

Atualmente, duas iniciativas correm em paralelo no RS: 426 imóveis estão em execução a partir de convênio do CAU com o Estado ou diretamente em tratativas com as prefeituras. Além de Canoas, participam Charqueadas, na Região Carbonífera, Caxias do Sul, na Serra, Santa Cruz do Sul, no Vale do Rio Pardo e Lajeado, no Vale do Taquari. De janeiro até o dia 15 de setembro foram iniciadas 48 obras, 15 destas já entregues.

Sem participação direta do Conselho de Arquitetura, a Secretaria Estadual de Obras e Habitação mantém outro projeto — de mesmo nome e finalidade —, na revitalização ou construção de 1,1 mil banheiros em 42 cidades. Esse total, após o período eleitoral, subirá para 1,4 mil, por convênios já firmados com os prefeitos, informa o governo gaúcho.  

— É um divisor de águas na vida das famílias. Temos encontrado condições muito precárias, de improviso nas casas visitadas — reforça Holzmann da Silva.

Banheiros entregues na Serra 

Em Caxias, a proposta é entregar 30 banheiros novos ou reformados, como na casa de Franciele Rufino, 31 anos, onde já foram finalizadas melhorias no piso, reboco, forro, pintura, porta e janelas: 

— Tínhamos um banheiro improvisado. Era muito frio e as minhas filhas ficavam doentes porque tomavam banho quente e depois saiam no vento. Mudou tudo, ficou mais quentinho e confortável. Temos box também — conta ela, com timidez, mas sem esconder a alegria.

Franciele mora com o marido Daniel dos Santos, 29 anos, e as filhas Isadora, 14, Isabelle, 10, Angel, 6, e Pietra, 3, no Loteamento Morada Feliz, bairro Mariani II. Ela soube do projeto no Centro de Referência de Assistência Social (Cras), no dia em que pediu ajuda para reformar seu imóvel, situado no alto de um barranco com pedras e terra. 

Por uma rampa, é possível acessar outra casa, num conjunto habitacional do bairro Reolon. As adaptações previstas para o banheiro de Luceni Pedroso, 58 anos, irão melhorar muito a rotina dela e do filho, Jeferson Pedroso Hirt, 20 anos, cadeirante. Para chegar ao chuveiro, a mãe precisa carregar o jovem no colo, passando por espaços apertados — a sala, também usada como cozinha, tem boa parte da metragem ocupada pela cama hospitalar. O banheiro atual é ao lado de uma escada de madeira, caminho do quarto no andar de cima. Ela usa esses degraus para sentar o filho e secá-lo. 

A obra está no começo. Além de ampliar, tornará o banheiro mais acessível, com assentos para auxiliar na ducha, barras no box e próximas ao vaso sanitário.  

— Vai me ajudar um monte porque é dificultoso dar banho nele nesse banheiro. Ali não cabe nem eu e nem ele. Ele fica com a metade do corpo para fora do box, passa frio também, até eu conseguir secar ele. É um sonho realizado — emociona-se.  

Bruno Todeschini / Agencia RBS
Luceni Pedroso, que cuida do filho cadeirante, assegura que a reforma vai melhorar muito a qualidade de vida dos dois

Na cidade serrana, foi firmado um convênio entre o CAU/RS e o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB/RS). Quem financia é o Ministério Público (MP), com repasse dos recursos provenientes de condenações judiciais, ações civis públicas e extrajudiciais. Dos R$ 400 mil orçados, metade já foi destinada ao Nenhuma Casa Sem Banheiro. O município, por sua vez, assinou um termo de apoio, em 2019, quando a proposta foi apresentada, mas o apoio foi do corpo técnico, principalmente da Fundação de Assistência Social (FAS) e da Secretaria de Habitação.

Banho na casa vizinha  

Cada cidade integrante do Nenhuma Casa Sem Banheiro é responsável por designar o endereço apto a ser examinado pelo arquiteto. Após a visita, o especialista envia um relatório ao município, informando o que será necessário para a construção: se há rede cloacal ou se uma fossa precisará ser escavada, se a obra será dentro ou fora da residência, entre outras referências. A partir daí, o Executivo monta um edital para a contratação das empreiteiras, com valor médio de até R$ 18 mil por unidade.

Em Canoas, foram definidos como critérios o imóvel estar em uma área regular ou passível de ser regularizada, fora de regiões de risco, sob fios de alta tensão ou próxima a rios e ferrovias. Os contemplados, sem exceção, vivem na linha de pobreza ou extrema vulnerabilidade, segundo Odavir Júnior, o Juninho, coordenador do projeto na Secretaria Municipal de Habitação. 

— Quem é que não tem banheiro em casa, às vezes a gente pensa, né? Mas aqui tem muita gente que usa sacola plástica ou um balde para fazer as necessidades, e agora vai ter um banheiro, inclusive com barras de acessibilidade nos casos que identificamos a necessidade — informa o gestor da prefeitura de Canoas. 

Em outro ponto do Guajuviras, um beco estreito pelo qual passa apenas um carro por vez, moram Lair Beatriz Santos Rodrigues, 63 anos, seus filhos, netos e bisnetos — por um período, viveram nove pessoas em dois dormitórios. Não há vaso sanitário ou chuveiro, sequer improvisados. Quando precisam, os moradores vão até a vizinha.

— Toma banho lá atrás e vêm ali pelo ladinho — aponta.  

No início do ano, Lair foi visitada pelos avaliadores. Ela imaginava que, já neste inverno, teria o banheiro erguido na varanda, espaço de 3,6 metros quadrados onde hoje ela guarda garrafas e outros recicláveis vendidos como complemento de renda.

— O pior do inverno foi dar banho nas crianças, trazer elas na rua, no frio, enroladas no chambre. Com um banheiro aqui, vai ser uma beleza — vislumbra.  

Novo programa na Capital

No dia 14 de setembro, foi publicado no Diário Oficial de Porto Alegre a instrução normativa do Morar Melhor, projeto do programa Mais Habitação. A medida tem foco na reforma de cômodos diversos a moradores de áreas regulares ou em processo de regularização.  

Na Capital, há exigências quanto aos ganhos mensais dos beneficiários: até cinco salários mínimos de renda familiar, ou, para núcleos com mais de três pessoas, vencimento per capita que não ultrapasse 1,5 salário mínimo. Um edital para credenciamento de empresas interessadas em participar do programa será lançado em seguida, segundo a prefeitura de Porto Alegre. 


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