Lá Vou Eu
Teste de acessibilidade: será que o Mercado é para todos os públicos?
Reportagem mostra se um dos prédios mais antigos da Capital tem condições adequadas às pessoas com deficiência
Um gigante de 154 anos se impõe em meio à paisagem do Centro Histórico de Porto Alegre. Inaugurado em 1869, o Mercado Público segue firme e inabalável, apesar das intempéries. Foram quatro grandes incêndios: em 1912, 1976, 1979 e o mais recente, em 2013, do qual o prédio ainda não se recuperou totalmente. Há reparos estruturais a serem feitos, como o telhado, com fendas e telhas quebradas, o que provoca alagamentos das bancas nos dias de chuva. Outros problemas, no entanto, precedem os estragos causados pelo último incêndio. Questões de infraestrutura estão presentes no local centenário há bem mais do que 10 anos.
Dando continuidade à série de reportagens sobre acessibilidade em lugares públicos de Porto Alegre, o DG foi conferir, afinal, se é possível para uma pessoa com deficiência circular livremente – e sem percalços – pelo Mercado Público da Capital.
Obstáculos
O carro da reportagem nos deixou em frente ao nosso destino, mas teve que ficar dando voltas, já que vaga de estacionamento livre é artigo raro naquele ponto da cidade durante a semana. Existe a alternativa de estacionar no Largo Glênio Peres, mas apenas nos finais de semana ou, de segunda a sexta-feira, a partir das 19h. Há vagas reservadas para PCDs em frente à prefeitura, mas raramente estão desocupadas. Ainda que, por lei, seja obrigatório o uso de uma credencial específica para estacionar nos locais especiais, isso quase nunca é respeitado.
Até chegar à entrada principal do Mercado, foi preciso transpor alguns metros dos paralelepípedos que rodeiam o Largo Glênio Peres. Fazer esse tipo de trajeto sobre rodas é difícil, mas não impossível. Tal como na vida, as pedras no meio do caminho fazem parte.
Ao entrar no imponente prédio, concluo que é fácil de transitar livremente, não há imperfeições no piso. Até ali, tudo bem.
No térreo
O primeiro obstáculo não tardou a se apresentar. Na tradicional Banca 43 – inaugurada em 1949 – parei para comprar uma água, o que exigiu um certo contorcionismo. O balcão era alto demais, fazendo com que o simples ato de entregar o dinheiro e receber o troco se tornasse um exercício de alongamento. Não chega a ser um ponto negativo, afinal, há a opção de sentar à mesa e fazer o pedido a algum atendente. Pena que não tínhamos tempo para degustar a famosa salada de frutas com nata.
Quem conhece a disposição das bancas no Mercado sabe que é comum caixas de frutas e outros produtos serem expostos do lado de fora, o que pode impedir a passagem de uma cadeira de rodas em alguns pontos. Fica a critério dos vendedores organizar a disposição dos produtos de forma que não impeçam a movimentação.
Uma lojista, que preferiu não ser identificada, destacou que, em alguns casos, expositores trancam entradas e saídas, o que vai contra as normas do Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndios (PPCI). Ou seja, é um risco para todos que transitam pelo local.
Passando por uma das fruteiras, que exibia diversos itens fresquinhos e a preços módicos, tentei entrar para, como sempre dizem os clientes, “dar uma olhadinha”. Impossível. A disposição das caixas deixava uma brecha intransponível para a cadeira de rodas. Contei com a boa vontade dos vendedores, que se dispuseram a alcançar algum produto ou receber o pagamento na porta. Chegaram até a sugerir que poderiam movimentar algumas caixas, mas seria um transtorno maior do que o necessário. O mais adequado seria que os espaços fossem planejados antes, e não improvisar movimentações na hora do atendimento.
Tanto nas bancas centrais quanto nas lojas laterais do Mercado, não houve orientação alguma da prefeitura a respeito de acessibilidade. Algumas melhorias partem dos próprios lojistas, que se sensibilizam com a questão.
Adriana Kauer, presidente da Associação do Comércio do Mercado Público, defende que cada um deve fazer sua parte, alinhando seu espaço conforme as necessidades do público:
– Tenho uma loja e estou reformando outra, que adquiri na última licitação. A primeira coisa que eu fiz foi a rampa de acessibilidade. O prédio é histórico, mas a sensibilidade de adaptar é atual e urgente.
Adriana resume em uma frase o que deveria ser regra em qualquer situação:
– Temos que ter empatia.
Sinalização precária
Uma das grandes dificuldades foi a falta de sinalização ao longo de todo o Mercado Público. Foi preciso parar e perguntar sobre o elevador e os banheiros. A Secretaria Municipal de Administração e Patrimônio (SMAP) alega que está ciente dos problemas de sinalização e identificação: “Estamos elaborando um estudo de sinalização interna no Mercado Público. Por se tratar de um prédio tombado e histórico, necessitamos, primeiramente, da aprovação da identidade visual junto à equipe do Patrimônio Histórico e Cultural (EPAHC)”.
No dia da visita do DG ao Mercado, o elevador social encontrava-se em manutenção, por isso subimos pelo elevador de carga.
No segundo andar
O segundo piso do Mercado ainda está sendo reconstruído e há vários espaços vazios ou para alugar. Foi somente em julho de 2022 que os restaurantes do andar foram entregues após nove anos de interdição. Em lojas abertas ao público, degraus altos impossibilitam a entrada de pessoas com problema de locomoção. Ao perceber minha dificuldade, um dos comerciantes se ofereceu para ajudar a transpor o obstáculo de seu estabelecimento. Gentileza dele, mas não é essa a solução ideal. Questionado, o vendedor, que também preferiu não ser identificado, informou que as melhorias referentes à acessibilidade seriam de responsabilidade da prefeitura. No entanto, uma ou duas lojas improvisaram rampas de madeira na entrada.
Como a presidente da Associação do Comércio comenta, iniciativas que facilitem o acesso vão além de autorização ou iniciativa dos órgãos públicos. É uma questão de empatia.
A SMAP ressalta que algumas melhorias podem levar tempo por se tratar de um prédio histórico:
“Pelo prédio ser tombado precisamos ter um estudo avançado sobre o assunto para conseguirmos fazer a mudança de todos os passeios com precisão”.
Banheiro ou depósito?
Nem só de rampas, elevadores e pisos planos vive um PCD. Ainda faltava verificar as condições do sanitário acessível. Conforme indicação de um guarda municipal – vide a falta de sinalização já apontada – chegamos ao banheiro. Deparamos com uma porta trancada. É comum, a fim de se evitar o acesso de pessoas que não precisam de um sanitário acessível. Uma das moças encarregadas da limpeza surgiu com a chave em mãos. Enfim, entrei. Mas foi preciso desviar de um balde, um esfregão e até de uma escada encostada na parede. O banheiro adaptado faz as vezes de depósito para a equipe de manutenção e limpeza.
A SMAP assegurou que tomará providências: “Vamos averiguar essa questão e mandar retirar os materiais que lá estão”.
O Mercado Público de Porto Alegre é um dos 10 prédios mais antigos da Capital. Mas sua importância vai além disso: pode ser considerado o lugar mais democrático da cidade, onde acontecem as mais diversas manifestações religiosas, circulam pessoas de todas as classes sociais, ponto de encontro de amigos, local de acolhimento a quem vem de fora. Entre variados tipos de erva-mate, linguiças, peixes, frutas e verduras, doces e o que mais se precisar, tudo se encontra lá. Só não se encontra (ainda) acessibilidade total e irrestrita. Só um lugar pensado para todos pode, aí sim, ser considerado democrático.