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Desigualdade

Como vivem os brasileiros com renda média inferior a R$ 18 por pessoa ao dia

Por um mês, o Diário Gaúcho acompanhou uma família da Capital que sobrevive com a renda média igual à de metade da população, segundo estudo do IBGE

18/08/2023 - 05h00min

Atualizada em: 18/08/2023 - 10h48min


Alberi Neto
Alberi Neto
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Por um mês, acompanhamos a família Conceição da Cruz, composta pelos pais Rogério e Roselaine. Por seus filhos Henrique, Vanessa, Amanda, Alice e Yasmim. E por um neto de três anos. A reportagem busca retratar como vivem os brasileiros que tem renda média inferior a R$ 18 por dia e por pessoa. Foi a quantia média com que 50% dos brasileiros viveram em 2022, segundo o IBGE. Esta é primeira parte da reportagem, que foi dividida em três. As outras duas partes estão aqui e aqui.

André Ávila / Agencia RBS
Roselaine é a mãe da família que mora na Ilha dos Marinheiros e vive da reciclagem

É 3 de julho de 2023, uma segunda-feira. São 7h30min da manhã. Roselaine Ayres da Conceição, 48 anos, está de pé. Ela arruma o neto, dois anos, para levá-lo à creche. Um ônibus passa na porta de casa para fazer o trajeto entre a residência e a instituição. O mesmo acontece para as quatro filhas de Roselaine. São as trigêmeas Amanda, Aline e Yasmim, de 13 anos, e Vanessa, de 14. Na porta de casa, elas embarcam na condução para ir ao colégio onde, respectivamente, cursam o 7º e 8º anos do Ensino Fundamental.

O filho Henrique, 16 anos, ainda dorme no chão da sala. Ele estuda, mas durante a noite. Está no 1° ano do Ensino Médio. O garoto também pega uma condução escolar para o deslocamento até a aula. A residência ainda tem a presença de Pedro Rogério Telles da Cruz, 54 anos, esposo de Roselaine e pai das quatro meninas e de Henrique. A família Conceição da Cruz vive na Ilha Grande dos Marinheiros, uma das 16 ilhas que compõem o bairro Arquipélago, em Porto Alegre.

Este grupo de oito pessoas vive a realidade de metade da população brasileira, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo dados divulgados em maio deste ano, 107 milhões de brasileiros sobreviveram com uma média de R$ 17,90 por dia em 2022. São R$ 537 mensais por pessoa. A família Conceição da Cruz embarca neste coletivo. Eles fazem parte dos mais de 100 milhões de brasileiros que compõem os 50% da camada mais pobre da população.

Estar no meio do caminho, como é de se esperar, tem prós e contras. A fome não é um um problema, todos comem ao menos três vezes no dia, seja em casa ou na escola. Por outro lado, qualquer gasto que fuja dos centavos contados mês a mês prejudica o orçamento. Com isso, mesmo que haja comida na mesa, roupa para vestir e tênis para calçar, não há passeio no final de semana nem presente fora de ocasião, somente em datas especiais. E muito menos qualquer produto que não esteja estampado num cartaz de oferta no supermercado mais próximo.

Como vivem os milhões de brasileiros nesta fatia do estrato social? É o que esta reportagem busca traduzir, ao menos em parte, depois de acompanhar por um mês os Conceição da Cruz. O texto mostra como a família obtém a subsistência através do trabalho com a reciclagem, passando pela batalha semanal para fechar o orçamento, construindo o sonho da casa própria, até a busca para interromper um ciclo de pobreza entre gerações. É o retrato de um Brasil que, mesmo estando presente numa fatia tão grande da população, por vezes, se sente esquecido.

Mesmo que não vivam com sobras, os Conceição da Cruz estão relativamente distantes da classe mais baixa considerada pelo IBGE, que reúne os 5% mais pobres da população, cuja renda média ficou em R$ 87 por pessoa ao mês. E mais longe ainda dos 1% mais ricos, onde esse valor é de R$ 17.447 mensais per capita.

O sustento através da reciclagem

Ainda é segunda-feira, e pouco passa das 8h, as filhas e o neto estão nos ambientes educacionais. Henrique acordou e saiu para um novo trabalho informal que conseguiu em outro ponto da Ilha dos Marinheiros. Começa, então, o expediente diário de Roselaine, no pátio da residência onde vive.

É ali que, acompanhada de Elisângela dos Santos Salvato, 49 anos, ela separa os resíduos recicláveis recolhidos no continente. Elisângela recebe R$ 250 semanais pelo trabalho prestado. Em outros tempos, o valor não afetava tanto o orçamento. Mas o preço dos materiais tem caído severamente. Ainda assim, a família sabe como a renda gerada para Elisângela é importante.

O que é separado durante a semana é vendido na sexta-feira. Os materiais são pesados em grandes sacos, chamados de bags. Dentro dos bags, eles são separados por seus tipos e valores. Boas semanas podem render mais de R$ 700 na venda em resíduos, mas as semanas não têm sido boas. Durante este ano, a média de arrecadação semanal com os recicláveis fica entorno de R$ 500, sendo que metade vai para Elisângela.

É uma cena comum na Ilha dos Marinheiros a separação dos resíduos feita em casa. Sem um espaço adequado para trabalhar, os recicladores transformam as próprias residências em um centro de triagem. Nem todos conseguem tocar a própria reciclagem, como é o caso de Elisângela, que trabalha com Roselaine. Isso porque alguém precisa "puxar o lixo". Na casa dos Conceição da Cruz, este papel é de Pedro Rogério.

Cabe a ele a missão diária de desbravar o continente. Na condução de uma valente e mutante Volkswagen Kombi ano 1986, ele cruza a Capital por condomínios onde recolhe os resíduos recicláveis. Valente e mutante também é o motorista, que já migrou por diversas profissões para sustentar a casa, muito por causa da falta de qualificação profissional. As mudanças duraram até se estabelecer na Ilha dos Marinheiros com Roselaine, em 2016.

Com pontos certos de coleta, o caminho é mais tranquilo. Mas não foi sempre assim. Antes, o lixo era recolhido na rua, onde Rogério encontrasse recicláveis. A questão chegou a gerar confrontos entre catadores da Capital e o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), que multava os trabalhadores por recolherem o que, em tese, só pode ser recolhido pela coleta seletiva.

— Tenho meus condomínios certinho. Os porteiros e síndicos me conhecem, chego com a Kombi, carrego e vou pro próximo. É corrido, mas faz parte. O lixo ajuda bastante, não se pode negar — garante Rogério.

As multas do DMLU, claro, nunca foram pagas. Os valores das infrações chegavam a R$ 7 mil em alguns casos. Certamente, se tivesse dinheiro sobrando para pagar multas exorbitantes, Rogério não perderia tempo garimpando na internet pneus usados e baratos para a Kombi. Os problemas do veículo, aliás, são sempre surpresas desagradáveis no orçamento do mês. O motor já foi refeito três vezes, recorda Roselaine.

Entretanto, sem a Kombi fica impossível laborar. Até há outro caminho, que é ser membro da cooperativa de recicladores da Ilha dos Marinheiros. Os membros recebem cargas da coleta seletiva e podem fazer a separação destes resíduos. Só que, para ser cooperado, é necessário desembolsar cerca de R$ 40 mensais. Quantia que os Conceição da Cruz preferem aplicar em outro investimento: comida.

A Kombi ainda tem outro papel, prover moradia. A casa onde a família vive pertence à mãe de Roselaine, que mora em outra residência no mesmo pátio. E, assim como a filha, também vive da reciclagem. O aluguel dos Conceição da Cruz não é pago em dinheiro, mas sim com resíduo reciclável. Toda semana, umas das cargas que Rogério busca no continente vai para a sogra.

— A gente se ajuda, no fim. Ela precisa alugar a casa, eu preciso ter onde morar — diz Roselaine.

Aniversário sem festa

Seguimos na primeira semana do mês, mas agora é dia 5 de julho. Dia do aniversário do neto e data em que uma parcela assalariada dos brasileiros está feliz, pois recebeu. Entretanto, nem o festejo da idade ou do salário estão presentes na residência dos Conceição da Cruz. Como o pagamento pelos resíduos vem às sextas-feiras, ainda há de se esperar mais dois dias até receber.

O que foi pago pela semana anterior de trabalho não existe mais, ficou no supermercado em Eldorado do Sul, cidade próxima da Ilha dos Marinheiros, onde Roselaine costuma fazer as compras semanais. Porém, se os preços estiverem mais baixos em outro supermercado, na entrada da Capital, é lá que ela vai.

— Fico sempre conferindo as ofertas, onde tiver mais barato, é onde eu vou — conta ela.

O aniversariante está na creche. Ele fica entre a manhã e o final da tarde no local. As meninas também não perdem tempo, passam em casa ao meio-dia apenas para trocar de roupa e colocar o uniforme do centro social que frequentam no contraturno, onde recebem alimentação, aulas de dança, futebol e outras atividades.

O Centro Social Marista Aparecida das Águas atende 206 crianças na Ilha dos Marinheiros. A família já deixou claro que não haverá festa de aniversário. Ao menos, não no dia certo, "só depois que chegar o Bolsa Família", comenta Roselaine.

Os Conceição da Cruz recebem cerca de R$ 700 mensais do governo federal através do benefício. O dinheiro tem uma prioridade: atender as crianças. Seja com roupas, calçados, material escolar e, em raras ocasiões, festas de aniversário. O pagamento só vem na última semana do mês. Até lá, nada de festa.

Nem para as trigêmeas Aline, Amanda e Yasmim, que também comemoraram mais um ano de vida, no dia 13 de junho. Elas não tiveram comemoração no mês de nascimento, apenas ganharam um tênis novo cada uma. Yasmim, entretanto, não conseguiu calçar o presente, por isso o tênis foi para outra irmã. Agora, só quando o novo benefício vier é que ela conseguirá ter o regalo que encaixe no seu pé.

— Vamos fazer uma única festa para as meninas e meu neto. E dividir os custos entre mim e a Graziele — diz Roselaine.

Graziele, 29 anos, é filha mais velha de Roselaine e Rogério a mãe do neto que eles criam. Ela não vive com a família, mas sim em Gravataí, na Região Metropolitana. Mas, o conjunto de problemas de saúde e os efeitos do ciclone que atingiu o Estado no fim de maio, fizeram a mulher buscar abrigo materno por uns dias. Com ela, veio apenas o aparelho de televisão da casa.

Deficiente auditiva e de fala, é por meio de sinais que Graziele se comunica com a família, onde passou os primeiros dias do mês. Ela comprou alguns carrinhos plásticos e um pequenino chocolate para presentear o menino. Logo que Roselaine viu os regalos, questionou a filha por meio de sinais se os itens não tinha sido muito caros.

A conversa é durante uma pequena pausa na separação nos resíduos no meio da tarde. Roselaine e Elisângela vão tomar café. Além da bebida, há pães, margarina e doce de leite. Elas conversam sobre a qualidade do doce de leite disponível na refeição, mas Roselaine logo se defende:

— Peguei o mais barato.

Enquanto saboreiam o produto, as duas divagam sobre o sabor dos deuses de outro doce, um famoso creme de avelã, considerado inacessível.

— É mais de R$ 11 um potinho minúsculo — critica Roselaine.

Por volta das 16h30min, Roselaine encerra o expediente e começa a se preparar para o segundo trabalho, organizar a casa para a chegada do resto da família. Graziele vai buscar o menino na creche, função que Roselaine costuma cumprir.

A creche e o colégio onde as meninas estudam ficam próximos, na parte mais central da Ilha dos Marinheiros, às margens da BR-290. Já o centro social que as irmãs frequentam no contraturno fica no lado oposto, encravado na ponta sul da ilha. E assim como há coletivos para a creche e o colégio, também há para o centro. Por volta das 17h esses ônibus se cruzam, desembarcando a turma ao longo da Rua Nossa Senhora Aparecida, que corta todo o sul da ilha.

Amanda, Aline, Yasmim e Vanessa disputam para dar abraços e carinhos ao sobrinho aniversariante. E também disputam o controle remoto. A TV trazida pela irmã tem sido o grande entretenimento do mês. Pela primeira vez, elas têm acesso a um aparelho com conexão à internet e podem assistir vídeos na tela grande da sala, não apenas no celular da mãe ou de Vanessa, a única das irmãs que têm um aparelho funcionando. A família não tem internet em casa, mas conseguiu emprestado um sinal de wi-fi próximo para a TV.

Enquanto disputam o próximo vídeo que entrará na lista de reprodução do aparelho, as irmãs contemplam Graziele entregando o presente. O garoto, agora com três anos, está feliz da vida. O chocolate entregue pela mãe é o seu preferido, os carrinhos também lhe atraem. A reportagem pergunta se apesar de não haver festa, haverá algo especial na janta para o aniversário do neto.

— Ainda tem alguns pés de galinha ainda no congelador. Vou fazer uma sopa com eles — projeta a avó do aniversariante.



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