Cultura e Lazer



Análise de fora

Flip discute a crise brasileira pelo olhar de dois estrangeiros

Benjamin Moser, biógrafo de Clarice Lispector, e o historiador especializado em Brasil Kenneth Maxwell, participaram da sexta mesa da Flip na manhã desta sexta-feira

01/07/2016 - 14h24min

Atualizada em: 25/07/2016 - 10h15min


Carlos André Moreira
Carlos André Moreira
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Walter Craveiro / Divulgação
Benjamin Moser na Festa Literária Internacional de Paraty

Uma das mesas mais contundentes politicamente até agora da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) reuniu dois estrangeiros com um olhar aprofundado sobre o Brasil. O americano Benjamin Moser, que está em Paraty para lançar o volume que organizou com todos os contos de Clarice Lispector, e Kenneth Maxwell, historiador inglês autor de Chocolate, piratas e outros malandros. O encontro foi mediado pela historiadora Lília Moritz Schwarcz, coautora do recente Brasil: uma biografia.

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Os dois começaram relatando seus primeiros contatos com o Brasil. Maxwell data a descoberta em 1961, quando ele e uma jovem geração de alunos de Cambridge fizeram de um cinema decadente um ponto de reunião e encontros, e lá ele viu pela primeira vez o filme Orfeu negro, de Marcel Camus. Já Benjamin Moser narrou como, após a universidade, pensou em cursar uma língua não europeia, se matriculou em chinês, achou muito difícil e desistiu em duas semanas. Aí começou a frequentar aulas de português e acabou viajando ao Brasil numa jornada em que descobriu, a um só tempo, o país e Clarice Lispector.

– Oficialmente eu estudava na PUCRS, mas extraoficialmente eu viajei o Brasil todo por falta do que fazer, conhecendo o país. E nessa época eu li Clarice e aconteceu aquilo que acontece com um amor adolescente, mas a diferença é que permaneceu, e deu no que deu. – disse.

A mediadora provocou Moser a explicar um pouco mais a epígrafe de seu livro Autoimperialismo, que também está sendo lançado na Flip, reunindo três ensaios sobre o Brasil, um deles uma polêmica análise de Brasília como a síntese de uma forma de pensamento do país na gestão da cidade. A epígrafe apontava o Jaburu como a árvore símbolo do país, por ter tronco forte, pernas fortes e passar o dia melancólico de pernas cruzadas. Moser respondeu aproveitando a menção de Maxwell ao filme Orfeu negro para emendar algo que considera muito interessante no Brasil: o quanto um país que fez uma reputação em nome da alegria pode ser triste.

– A imagem que se tem do Brasil lá fora é muito a desse filme: alegria, samba, muito colorido, mas o país é mais triste do que parece. É um país que quanto mais você se aprofunda, menos você entende. – disse Moser, acrescentando que a tristeza brasileira parecia a de pessoas bipolares, uma euforia seguida de uma queda.

– Vivemos um período de euforia. Mas quando a estrutura social não é forte, a sociedade não se assenta em base sólidas, a depressão volta. E estamos vivendo isso agora. O Jaburu voltou – concluiu, provocando risos e um entusiasmado grito de "Fora Temer" que se elevou na plateia.

Ao longo do debate, os dois palestrantes foram naturalmente complementando o pensamento do outro, ao ponto de uma longa sessão da mesa ter se desenrolado sem a necessidade de intervenção da mediadora. Ao comentar um dos temas sobre os quais mais tem escrito, Moser ressaltou que a arquitetura monumental no Brasil, aquela patrocinada pelo Estado, deixa clara uma dualidade de ânimo presente no país, que ele comparou a uma pessoa visivelmente ansiosa dizendo que está tudo bem. E que os termos retóricos utilizados para as questões urbanas e sociais no Brasil denotam a ideia de uma tomada violenta de algo que em tese está ali.

– Fala-se muito em invasão: movimentos invadem áreas, invadem terras de fazendeiros, fazendeiros invadem reservas indígenas, e é sempre uma retórica que busca conquistar o que já está ali, porque o Brasil está em uma disputa interna de território, não em guerra com a Bolívia.

De acordo com Moser, isso se reflete na arquitetura monumental feita no país.

– Você vê que é uma coisa dedicada a celebrar o Brasil, celebrar a cultura e a "libertação" do Brasil mas usando ideologias, modelos estrangeiros, muitas vezes feitos por artistas estrangeiros.

Maxwell fez um aparte comentando que eram características históricas do Brasil as crises e retrocessos, muitas vezes nomeados com a retórica da novidade.

– Vários momentos da história do Brasil se intitularam revolucionários e foram na verdade contrarrevolucionários. É como a foto de posse do novo governo interino, com um ministério todo composto de homens e representando uma mudança.

Moser então explicou o que o motivou a escrever sobre Brasília, em um dos ensaios reunidos no livro Autoimperialismo. O fato de que a cidade é a cristalização de um pensamento político que tenta evitar o povo e isolar o centro de poder, diferentemente do que ocorria no Rio, com uma faixa de território entre os morros e o mar e o convívio do público com os palácios sedes de política.

– Vimos isso agora nas manifestações pró e contra Dilma. Havia o Congresso, o eixão, e centenas de milhares de pessoas que ocupavam uma manchinha no canto, é claro que os políticos não vão se sentir impelidos a dar ouvidos àquilo. Brasília se tornou sinônimo de algo que fica isolado do povo, na distância. Lá no cu do mundo – complementou o americano, que, assim como Mawxell, se dirigiu ao público sempre em português.

Maxwell na sequência lamentou a falta de consequências para muitos dos participantes da ditadura militar, outra infeliz característica da política nacional.

– O Brasil é o único país da América Latina em que não há ninguém que esteve envolvido na ditadura na cadeia. Não foi assim no Chile, na Argentina.

A última parte da discussão enveredou por um tema que vem sendo bastante discutido na programação paralela, o racismo arraigado mas velado da sociedade brasileira. Moser, principalmente, foi bastante crítico com o legado de Gilberto Freyre nesse processo.

– Não escrevo muito sobre o Gilberto Freyre, mas acho que ele foi o criador de uma ideologia do "deu tudo certo" que é prejudicial ao Brasil. Séculos de escravidão, milhões de negros importados e cativos, mas aí houve a abolição e tudo bem. E o resultado é algo que eu vejo até aqui olhando a plateia, não vejo nenhum negro.

Ao som dos aplausos que se seguiram, as luzes foram acesas e Moser viu uma mulher negra na plateia. Depois um homem, e complementou em tom sarcástico:

– Nossa, tem dois. Ufa, deu tudo certo, desculpem o que eu falei.

Depois, mais críticas ao governo Temer – cuja fotografia, citada por Maxwell, Moser definiu como uma imagem que correu o mundo como símbolo do retrocesso atual. Ao fim, Maxwell, contudo, encerrou com um tom otimista:

– Eu quero dizer aqui que o Brasil vai sobreviver. O Brasil não acabou. Pode demorar uns 10 anos, 20 anos, e a crise é séria, mas o Brasil vai sobreviver. – concluiu, aplaudido.


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