DEVAGAR, DEVAGARINHO
Martinho da Vila lança disco para comemorar seus 80 anos
Bandeira da Fé é o 48º álbum do artista
Em fevereiro de 2018, Martinho da Vila completou 80 anos. Porém, quem achava que a idade iria fazer com que o sambista, uma das referências da cultura nacional, diminuísse o ritmo, se enganou. No dia 26 de outubro, ele lançou seu 48º disco, repleto de temas que cultivou ao longo da carreira. O álbum celebra, ainda, suas oito décadas de serviços prestados à música nacional. Nesta entrevista exclusiva, Martinho fala da negritude, do avanço das mulheres na sociedade, de como acompanha o mercado musical e passa em revista sua carreira. Ah, e sempre com uma baita risada em cada resposta.
80 anos, 48 discos e muita música
Bandeira da Fé (R$ 20, preço médio, também disponível nas plataformas digitais), 48º álbum da longeva trajetória de Martinho da Vila, foi produzido pelo próprio sambista, que completou 80 anos em fevereiro de 2018. O disco traz uma formação instrumental enxuta, com apenas cinco músicos, incluindo três jovens já presentes no álbum De Bem com a Vida (2016): Gabriel de Aquino (violão), Alan Monteiro (Cavaco), e Gabriel Policarpo (percussão), além de Bernardo Aguiar (também na percussão) e João Rafael (baixo acústico). A faixa-título, pra lá de atual, foi o embrião da ideia de gravação do disco.
Canção composta por Martinho em parceria com Zé Catimba, Bandeira da Fé foi lançada sem maior repercussão por Luiz Carlos da Vila, em 1983, e regravada por Agepê (1942 – 1995) em seu LP Mistura Brasileira, em 1984.
Para seu novo disco, Martinho atualizou a faixa, trocou algumas palavras e, inicialmente, pensou em lançá-la de forma avulsa, mas, em seguida, lembrou de outras três que gostava e nunca havia gravado. Daí, partiu para o conceito do álbum.
– Este disco é comemorativo aos meus 80 anos. Então, eu quis botar as coisas que gosto nele, a (escola de samba carioca) Vila Isabel, minha militância na negritude, falar da mulher, do negro – explica o sambista, em entrevista por telefone, do Rio de Janeiro.
Político e posicionado
Além de falar de temas que o cantor tratou durante toda a sua trajetória, o álbum também trás um evidente viés político e de protesto, como é possível perceber em um dos trechos de Bandeira da Fé: “Não esmoreçam e fiquem de pé”.
Em O Sonho Continua, ele conta com a participação especial de uma de suas filhas, Jujuh Ferreira, e do rapper Rappin’ Hood, para misturar samba com rap.
– Fizemos este rap para um disco do Rappin, que seria lançado no ano passado, mas não saiu. Então, eu falei para ele que tinha gostado, e queria colocar neste disco. Com a participação dele, é claro – afirma Martinho, para emendar mais uma gargalhada.
Em Não Digo Amém, ele demonstra certa decepção com o país.
– É um desencanto com esse Brasil que a gente gosta, mas que, no momento, não está gostando muito dele, não – lamenta o sambista.
O álbum, que tem 12 faixas, ainda tem participações especiais de outros filhos de Martinho: Tunico da Vila (em Baixou na Avenida) e Mart’nália (em A Tal Brisa da Manhã).
Poesia com Glória Maria
No álbum, uma das participações especiais que mais chama atenção é a de Glória Maria. Na faixa Ser Mulher, ele chamou a jornalista para gravar o poema-musicado, como Martinho define a canção:
– Neste disco, eu misturo poesia com a música. Tem dois poemas que escrevi, que são declamados, mas não é aquela coisa tradicional, aquela poesia “dura”. Parece uma música falada. E chamei a Glória Maria porque ela se encaixa perfeitamente, é aquela mulher que trabalha, que não é casada, que adotou filhos. Ela está inserida perfeitamente nesta música, é uma mulher independente.
No seu Instagram, Glória celebrou a oportunidade.
“Tenho que agradecer a Deus! Presente lindo e inesperado. Obrigada, Martinho! Graças a você vi luz no fim do túnel!”, escreveu Glória em seu perfil na rede social, ao compartilhar um trecho do poema.
Novidades no show
No lançamento do novo show, que ocorrerá neste sábado, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, Martinho apresentará algumas faixas do disco. Mas não todas, como ele faz questão de ressaltar:
– Em lançamento de disco, não é recomendável cantar todas as músicas, pois o público não conhece, gosta de participar e eu gosto da interação (risos). Normalmente, eu escolho algumas canções inéditas e coloco no roteiro, para o público ter uma ideia do que é o trabalho.
No Rio, os fãs de Martinho verão uma novidade no seu espetáculo. Na segunda parte do show, quando ele interpreta sucessos como Disritmia e Feitiço da Vila, estará acompanhado de uma orquestra sinfônica, com cerca de 50 músicos. De acordo com o cantor, o show deve vir para Porto Alegre em breve, mas ainda sem data definida.
– Não conseguiremos levar a orquestra, mas minha ideia é fazer um concerto “pop-clássico”. Daí, a parte clássica fica com a minha filha, Maíra (Freitas), que toca piano – anuncia o bamba.
Depois de ter gerado desconforto no programa Encontro com Fátima Bernardes, durante participação na atração matinal, na terça-feira passada, Martinho tenta suavizar o discurso. Na ocasião, durante uma discussão sobre o aumento no número de casos de assédio a mulheres no transporte público, o cantor revelou que acredita existir um exagero e deixou a plateia agitada.
– O cara que é solteiro, descompromissado, ele está com problema para conseguir chegar numa mulher… Meu Deus, o que não é assédio? Qual é a maneira que vou chegar nela e que não é assédio? Isso também é uma questão – disse.
A apresentadora Fátima Bernardes, educadamente, firmou posição, para que ele pudesse entender a diferença:
– Engraçado que esta é uma questão masculina, mas não é uma questão feminina. A gente sabe quando é a paquera e quando é o assédio. Muitos homens ainda pensam qual seria esta diferença. Para as mulheres, é muito mais tranquilo. É quando ela não se sente invadida de alguma maneira.
“Musa dos poetas”
Para Retratos da Fama, Martinho evita tocar no tema, mas elogia os avanços da mulher. Lembra que a mulher brasileira começou a votar somente em 1933, na eleição para a Assembleia Nacional Constituinte, no Governo Provisório de Getúlio Vargas (1882 – 1954).
– É um absurdo, faz pouco tempo que a mulher pode votar, se compararmos com os homens.
Mas acredito que a mulher tem muito a avançar – afirma.
Ele diz, ainda, que o seu novo disco é uma homenagem às mulheres:
– Desde que o mundo é mundo, ela é a maior musa de todos os poetas. Então, pensei em fazer canções como se eu fosse uma, falando sobre como é bom ser uma mulher.
ENTREVISTA
“O negro ainda tem mais a avançar do que a mulher”
Entrevistar Martinho da Vila não é somente embarcar em uma viagem pela história do samba nacional mas, principalmente, ter uma lição de como se leva a vida “devagar, devagarinho”, como diz o trecho de um de seus clássicos, de mesmo nome, e de maneira bem-humorada. Ao final de cada resposta, ou até no meio de suas falas, sempre surge uma gargalhada. E é assim, de maneira leve, mas extremamente articulada, que Martinho fala de Carnaval, de como faz seus shows e da batalha que os negros ainda enfrentam na sociedade brasileira.
No novo disco, tu falas de temas que permearam tua carreira, como o Carnaval, a mulher, o samba e a negritude. Como enxergas o atual momento do Carnaval e do folclore, que são temas que te interessam?
O Carnaval do Rio de Janeiro é muito forte, seja de rua ou de sambódromo. Atualmente, vejo centenas de blocos e bandas que passam aqui pelo Rio. E as escolas de samba cresceram muito. Antigamente, lembro que elas saiam com 800 componentes, se tivesse 1,2 mil, era uma grande escola. Hoje, sai com 3.500 integrantes (risos). Então, tudo vai mudando, e a gente tem que ir acompanhando a coisa. Tudo que fica estático, tende a acabar. O Brasil tem um folclore riquíssimo. O Rio Grande do Sul, então, tem um folclore muito rico.
Assistes aos shows de sambistas e músicos mais novos, para ver o que eles estão fazendo?
Não gosto muito de ver o que os outros estão fazendo, para não fazer igual (risos). Eu só tenho que estar informado do que está acontecendo. Senão, a gente vira cópia, né? Eu estou sempre na frente. É exatamente o contrário (risos).
Com mais de 50 anos de carreira, e com tantas mudanças no mundo, mudaste o jeito de fazer música?
Eu não penso muito, só faço (música). O artista não pode fazer uma música para fazer sucesso. Não dá, pois não tem como adivinhar se uma música fará sucesso. Senão, todo mundo faria (risos). Não tem fórmula. Você não pode fazer uma música para agradar ao fulano, para agradar a um segmento. Às vezes, a música até pode se encaixar em um segmento, tudo bem. Mas ela não foi feita de propósito para aquilo. Você tem que gravar um disco pensando que a pessoa vai ficar feliz em ouvir. É por aí.
Com tantos discos lançados, consegues falar de algum, especialmente, que tenha te marcado?
Meus discos são muito distintos, conceituais. Geralmente, eu penso em uma temática e vou por ali. Em um ano, gravo um tipo de disco, no outro ano, outro tipo. E, geralmente, a tendência é repetir o que foi sucesso, né? Eu não faço isto, mudo tudo, eu faço outra coisa. Mas, respondendo à sua pergunta, acho que o disco mais marcante é o que tem O Pequeno Burguês (disco que leva o nome de Martinho, lançado em 1969, com faixas como Casa de Bamba, Grande Amor e Quem é do Mar Não Enjoa). É sucesso até hoje. Tenho que cantar canções dele até hoje. Se eu fizer um show só com músicas dele, tá tudo certo (risos), pois o público gosta de show com músicas que conhece (risos).
No material de divulgação do disco está escrito que este será teu último álbum. É isto mesmo?
Daqui para frente, dentro do formato atual do disco, creio que não lançarei mais. Hoje, o ideal não é gravar um LP inteiro, um disco inteiro. Hoje, você grava uma música ou duas, coloca na rede, faz um clipe. Pode ser que eu faça isto. Mas, fazer um disco completo, não pretendo. Se bem que já falei isto outras vezes e fiz um disco de novo (risos).
Sempre foste uma voz forte em defesa da negritude no país. Como vê a situação dos negros hoje?
Sabe, antes eu te falei que a mulher tem muito para avançar. Mas o negro ainda tem mais a avançar do que a mulher. O negro está mais para trás do que a mulher.
Por quê?
Porque a gente participa muito menos da classe dominante. Têm muitas mulheres na classe dominante, que estão no comando. Já negros, temos poucos. Em alguns setores, não temos nenhum negro.