Oito décadas de história
"Ainda não atingi meu objetivo, que é o de não fazer nada", diz Bagre Fagundes, ao completar 80 anos
Tradicionalista, autor do Canto Alegretense, ao lado de Nico Fagundes, relembra causos da carreira de sucesso
No dia 3 de outubro, Bagre Fagundes, autor de Canto Alegretense, ao lado do irmão, Nico Fagundes (1934 — 2015), completou oito décadas de vida. Mas, ao contrário do que seria possível imaginar para um senhor de 80 anos, Euclides Fagundes Filho, que ganhou o apelido de Bagre na adolescência, não está em casa, curtindo os louros de uma vida brilhante, ao lado da esposa, Marlene Fagundes, 78.
Um dos maiores tradicionalistas da história gaúcha, Bagre está pleno, na estrada, cantando, junto de sua inseparável gaitinha, e recebendo homenagens por onde passa, ao lado dos filhos Ernesto, Neto e Paulinho, que formam com ele o grupo Os Fagundes. O advogado Bagre, que já foi vereador em Alegrete, candidato a prefeito na mesma cidade, jogador de futebol de campo e de salão, juiz de futebol no Interior, presidente do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF), fala neste papo, interrompido pelos filhos e pela esposa, como não poderia deixar de ser, sobre as homenagens que vem recebendo. Ele revela como é estar na estrada aos 80 anos e ainda conta um "causo" sobre o Canto Alegretense.
Como tens recebido tantas homenagens?
Eu tô impressionado com essa história de tanta homenagem. Quando começam a fazer homenagem, é sinal de que o cara não tá bem (risos). Mas eu tô bem, não é meu caso. É agradável, não vou dizer que não gostei. Todo mundo gosta de ser homenageado. Ainda mais eu, que fui homenageado pela minha mulher, pelos meus filhos, pelas irmãs, pelos irmãos e por um mar de grandes amigos.
Aos 80 anos, falta algum objetivo para ser atingido?
Ainda não atingi meu objetivo, que é o de não fazer nada (risos). Mas tô quase lá. De momento, estou trabalhando com meus filhos. Estou aposentado pelo INSS, e, com essa grana que nos pagam por mês, não dá pra sustentar a família. Então, sigo na estrada e tenho que me virar em outras áreas (risos).
E a tua saúde como está? Tu costumas fazer exercícios, algo assim?
Neto — Fez exercício durante a vida toda. Hoje, ele sobe em van, desce de van, sobe ao palco. Mas o pai não cuida da saúde como deveria.
Bagre — Mas cuido da tua mãe (risos).
Neto — Mas a coisa da estrada obriga o cara a se mexer. E tem uma sobrinha do pai e da mãe, a Lucinha Villaverde, que começou a fazer massagem no pai, ele está gostando bastante, o que pode ajudá-lo a caminhar mais.
Pensas em parar?
Penso em morrer, mas não agora (risos). Também não vou pedir que o Patrão Velho me dê mais cinco ou oito anos de vida. Se o projeto dele for me dar 15, e se eu pedir oito, perco sete (risos). Ele escolhe, Ele quem manda, é o senhor do universo. E tem algumas lições que levo sempre do meu pai (Euclides Fagundes, 1899 – 1981), que dizia: "Meu filho, a vida se resume em uma coisa: nunca fazer mal para ninguém. Depois, se tu tiver poder, não se achar maior do que ninguém. Por último, sendo pequeno, não ser humilhado por ninguém. Ninguém é maior do que tu".
Não deve ser fácil estar toda hora na estrada. Como funciona a logística de vocês?
O Ernesto é o chefe do grupo, o Neto é a estrela. Ernesto contrata, distrata, paga, recebe. Mas, às vezes, ele me avisa de um show um dia antes, pois não uso celular (nesse momento, Ernesto interrompe e revela que a “produtora” de Bagre é Marlene, ela que o avisa de todos os shows, já que o tradicionalista não usa celular). Daí, eu digo para a Marlene passar bem meu lenço, passar um pano na bota. Ela cuida de mim, sempre cuidou de mim. Saí da barra da saia da minha mãe (Florentina Fagundes, 1902 – 1990), que era extremamente cuidadosa, e caí nas mãos da minha namorada, Marlene, noiva e única mulher que tive a vida inteira. E já estou com ela há 60 e poucos anos.
Neto — Em setembro, tivemos uma agenda cheia. Quando estávamos voltando de Santa Catarina, para fazer show por aqui (no RS), o médico do pai nos ligou, estava com uns exames dele em mãos. E nos disse: “Segura o homem aí”. O pai chegou com tosse, meio resfriado, e tinha um problema anterior, um ataque de asma. Ali, ele nos mandou segurar o cara (risos).
Ernesto — É como o D’Alessandro (meio-campista do Inter): não joga todas (risos).
E como a dona Marlene faz para cuidar dele? É barbada cuidar do Bagre, como ele diz?
Marlene – É bem difícil, mas faço com muito carinho, cuido dele mesmo. Na verdade, ele me conquistou a ponto de eu achar que tenho que cuidar dele. Bagre tem esse jogo, que mesmo que eu queira fazer com que ele faça alguma coisa, eu acabo fazendo, porque fico com pena. É um baita esperto (risos).
Ernesto – E quando não tem a Marlene nas viagens, tem o "Ernestoooo", que ajuda a colocar as botas, que dorme no mesmo quarto que ele. Mas eu já tenho experiência: pilchava o tio Nico, que estava mais debilitado. O pai tá mais inteiro, é mais fácil (risos).
"Ficou um show de filho para pai"
O nome de Bagre Fagundes, obviamente, está ligado de maneira umbilical ao grupo que leva o sobrenome da família: Os Fagundes.Hoje, com Bagre, Ernesto, Neto e Paulinho, a turma segue forte na estrada e tem dedicado boa parte das apresentações de 2019 para homenagear o patriarca.
— Os shows desse ano acabaram, naturalmente, indo para o lado do pai, Ficou um show de filho para pai. O pai sempre foi muito generoso conosco, ele poderia ser aquele artista que é sozinho, mas ele já estava enxergando tudo o que está acontecendo antes. Lá, quando começou a carreira dele e, depois, quando entramos em Os Fagundes. E sempre nos passou a mensagem de que "ninguém é mais". Acreditamos na coisa de mãos dadas, com todo mundo junto —pontua Neto.
Comemorações
Além de um espetáculo especial, em 3 de outubro, no Cisne Branco, em Porto Alegre, e de um programa, na RBS TV, que foi ao ar no sábado passado, Bagre segue sendo homenageado. Inclusive, um dos espaços da Mostra Elitedesign 2019, no Clube de Regatas Guaíba-Porto Alegre, homenageia Bagre e a história do grupo (quintas e sextas-feiras, das 15h às 21h, e sábados, domingos e feriados das 12h às 21h, com ingressos a R$ 44,80, à venda em www.blueticket.com.br).
Além disso, o show Natal Gaúcho, no dia 12 de dezembro, também no barco Cisne Branco, será comemorativo aos 80 anos do nativista.
O Canto, um hino informal
A história do Canto Alegretense, uma das maiores músicas da história da cultura gaúcha, é um poema de Antônio Augusto Fagundes, o Nico, musicado por Bagre, em 1980. A canção, por si só, rende uma reportagem à parte.
— Quando musiquei, cantei pro Nico, por telefone, e disse para ele: "Nico, acabei de fazer uma composição sobre o teu poema, aquele que vai nos imortalizar". E ele: "Tu sabe o peso que tem essa palavra?". E eu falei: "Claro que sei" — relembra.
Ao final, o irmão, conhecido pelo extremo rigor musical, deu sua opinião sobre aquela canção que viria a ser o hino informal do Rio Grande do Sul.
– Ele disse: “Olha, tchê, desde o início, eu achei que a palavra imortalizar estava pesada. Mas achei uma cançãozinha bonitinha”. E eu disse: “Bonitinha o quê? Tu é burro! Tu é um poeta, mas não entende nada de música. Isso o que nós fizemos é um espetáculo” – conta, aos risos, Bagre.
Reconhecimento
Anos depois, em 2013, quando Os Fagundes fizeram um show especial, no Auditório Araújo Vianna, na Capital, para comemorar os 30 anos da primeira vez que o Canto Alegretense foi apresentado – no Galpão Crioulo, da RBS TV –, Nico já mostrava uma opinião diferente, como bem lembra Ernesto:
— O tio Nico adorava elogiar o pai, mas só para nós. Dizia que ele era o melhor cantor e tal. Adorava cutucar o pai, aquela coisa de irmão, de pegar no pé. E ele disse naquele ano: "É boa essa música mesmo". Ele já estava debilitado, se emocionava a cada que vez que ouvia os primeiros acordes da música.
Neto completa:
— E tinha uma frase que o tio Nico não dava bola, lá quando a canção foi composta: "E na hora derradeira que eu mereça". Quando estava mais doente e ouvia esse trecho, isso acabava com ele.
Bagre, orgulhoso de seu feeling de quase 40 anos, lembra orgulhoso do reconhecimento do irmão e parceiro:
— Ele reconheceu que eu tinha razão, que essa música ia nos imortalizar.
O Canto, além de ter sido interpretado por dezenas de artistas nacionais, como Alcione, em shows no Rio Grande do Sul, e até pela banda britânica Deep Purple, em um espetáculo na Capital, em 2006, marcou a trajetória de artistas locais, como Jair Kobe, com o seu Guri de Uruguaiana.
Em 2001, quando fez a primeira e hilária versão da música, em uma paródia de Garota de Ipanema, de Tom Jobim (1927 – 1994), Jair viu o seu personagem ficar famoso.
— A história do gaúcho de bigode, de chapéu, é o próprio Bagre, que nasceu em Uruguaiana, e fez o Canto Alegretense — pontua Ernesto.