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"Uma sociedade doente precisa de humor", afirma Grace Gianoukas, prestes a celebrar 40 anos de carreira

Artista gaúcha é criadora do projeto Terça Insana e expandiu sua atuação em novelas da Globo

10/09/2021 - 11h21min

Atualizada em: 10/09/2021 - 11h22min


Júlio Boll
Júlio Boll
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Priscila Prade / Divulgação
Grace Gianoukas tem 57 anos, sendo 40 de carreira como atriz

O humor calcado em preconceitos ou na piada fácil nunca esteve no roteiro de Grace Gianoukas, que está dando início às comemorações dos seus 40 anos de carreira — a serem completados em agosto de 2022.

Em 2001, ela criou o Terça Insana, projeto cênico de comédia com 352 espetáculos que já recebeu mais de 700 personagens encarnados por mais de 300 atores, tornando-se um dos expoentes do gênero no país. Em 2016, enveredou pela televisão, ingressando no elenco da novela Haja Coração, como Teodora Abdalla, em remake de Sassaricando (1988). Mais recentemente, brilhou em Salve-se Quem Puder, última novela inédita exibida pela RBS TV na faixa das sete, como Ermelinda, que sustentou um discurso de empoderamento feminino. 

No dia 25 de setembro, em São Paulo (SP), a atriz estreia Grace em Revista, espetáculo teatral que reúne alguns de seus personagens mais marcantes das últimas quatro décadas. Em conversa com GZH, Grace analisa o humor e sua trajetória artística.

O que mudou do seu plano inicial de carreira para hoje? E o que ficou de lição no meio desse caminho?
Quando entrei na carreira artística, muito por acaso, eu não tinha planos. Sem querer ser isso ou aquilo, as coisas foram acontecendo. Mas o que eu não imaginava jamais foi entrar para as novelas na televisão, porque era muito feliz fazendo teatro. Com tanta coisa boa que aconteceu nos palcos, eu não me via como atriz de TV. É claro que a gente vai atingindo alguns caminhos, andando mais longe, sendo que muita gente só pensa em novela, mas eu não via como carreira. Já tinha feito Rá-Tim-Bum e outros projetos na TV, mas era diferente. Com a carreira já estabelecida, a TV apareceu como um dos grandes e novos desafios quando menos esperei. 

De todos esses 40 anos, qual momento foi o mais marcante?
Foi quando, de repente, inventei o Terça Insana, que não tinha a menor intenção de virar uma coisa do tamanho que se tornou. Um dia, eu cheguei ao teatro e havia uma fila virando a esquina, que tinha uma boate gay. E toda aquela gente era para entrar no nosso espetáculo e não na balada. Como empreendedora, atriz, inventora de produtos culturais, ali foi um momento bem marcante, porque a coisa tinha estourado de um jeito que eu nunca tinha vivido. Foi uma surpresa muito grata, porque esse projeto totalmente dirigido e concebido por mim, com as diretrizes que instalei, foi consequência dos anos de profissão e de tudo o que falei, fracassei e dos sucessos que vivi. Foi importante, principalmente, por estar fazendo isso no palco. Teve um período, em 2002, em que soube que não tinha mais ingresso para os próximos dois meses e tive que mudar a apresentação para um espaço de 700 lugares. Quando começou a esgotar de novo, eu parei e disse: “Meu Deus! Mas a gente já trocou de espaço, porque o outro estava pequeno” (risos). Fui sendo surpreendida mesmo. E a TV foi marcante pelo reconhecimento popular mesmo. O Terça Insana teve dois DVDs, que chegaram a países como Alemanha, Polônia e Rússia, mas a massa mesmo me identificou com a televisão, das pessoas me pararem no mercado, na farmácia, na feira, foi ela que trouxe isso.

E houve algum momento mais difícil, em que pensou em parar? Como foi a volta por cima?
Foram milhares de momentos assim, nos quais pensava que não queria mais fazer teatro e queria abrir um bar, mas não tinha um tostão para investir. Quando iniciamos o Terça Insana com o Teatro Next, o dono me chamou para mostrar uma reforma, era um café teatro, fiquei louca para pegar para mim, porque eu não queria mais ser atriz. No fim, ele abriu as portas e explodiu o espetáculo. E tem algo importante: todas as vezes em que eu estava a ponto de desistir aconteceu alguma coisa que me arrancou do caminho do desespero. Uma vez, eu tinha me separado, estava sem grana, com meu filho pequeno, sem telefone. Só tinha um BIP. Estava certa de iria fazer qualquer coisa da minha vida e, de repente, tocou o BIP e era a Florinda Bolkan (atriz) me procurando, dizendo estar dois meses atrás de mim, porque conseguiu um papel para eu fazer. Fui para o Ceará gravar o filme com ela (Eu Não Conhecia Tururu, de 2000), foi tudo maravilhoso. E teve o oposto também, porque fazer sucesso também não é fácil. Ali por volta de 2013, por conta do Terça Insana, a minha vida era a rotina quarto de hotel, show, avião, um dia ou dois na minha casa em São Paulo e já viajava de novo. Chega uma hora em que você perde a referência. Não sabia onde estava, qual quarto de hotel estava, horas e horas em aeroportos, densidades diferentes de colchões. Era como a música Esquadros, da Adriana Calcanhotto: "Eu ando pelo mundo prestando atenção em cores que não sei o nome / Eu ando pelo mundo e meus amigos, cadê?". Era bem isso: um dia estava em um lugar maravilhoso, com um mar lindo na frente, mas precisava voltar. Não aproveitava. Foi me dando um deslocamento dentro de mim mesma. Hoje, vejo que estava em uma vida que estava me engolindo. Mas a gente só percebe depois. Eu empregava 27 pessoas na época, tinha que garantir aqueles salários todos, era uma pressão enorme. Agora não quero ter nada que minhas mãos não possam alcançar, não quero um troço desse tamanho. Meu tempo de surfar aquelas ondas gigantes de Portugal já foi. Surfei, saí toda desencaixada, descabelada, agora estou à beira da praia mais tranquila, com ventinho e com água de coco na mão (risos). A carreira, cheia de fracassos quanto sucessos, é bipolar (mais risadas).

Em entrevistas de 2016 e 2019, você pontuava que era muito exigente com sua própria obra. Por estar mais tranquila, então, você conseguiu deixar de ser um pouco autocrítica?
Não, vai até meu final, sim. Quem garante que estou certa? Eu sempre posso melhorar. Claro, não sou carrasca comigo, quando não foi legal eu reconheço, e muitas vezes penso que poderia ter melhorado aqui e ali. Estou fazendo 40 anos de carreira virando 2022, e acho que já me ralei, fiz muita merda, mas tenho discernimento. A pessoa mais crítica comigo sou eu mesma. Não gosto da crítica que arrasa nem que elogia demais, exagera, prefiro aquele que seja equilibrada. Eu sei quando foi bom e ruim. 

E qual a diferença de fazer humor 40 anos atrás e agora?
Foi o amadurecimento. Fui sofisticando meus conceitos, minhas impressões, me aprofundando e ganhando mais estofo nas coisas que pensava, que antes eram impressões. Sempre odiei esse humor de rir do outro, é algo que me incomoda demais. Não gosto de injustiça, tenho horror a gozação, não sou desse tipo de pessoa. É ridículo. Fui compreendendo, amadurecendo esses entendimentos, e a minha comédia foi se sofisticando. Hoje, uso como piada as coisas sarcásticas, mas não faço bullying, sou irônica, o que sempre foi minha marca. A diferença daquela época para hoje é meu entendimento do que quero dizer, com o uso desses recursos da comédia, para chegar aonde quero como autora e o entendimento do próprio público. Hoje em dia, percebo que o público está limitado, em todos os lugares. As cidades que mais leem e saem dessa prisão das redes sociais, que têm mais críticos, essas apresentam um outro entendimento. As coisas mais sofisticadas, mais cultas, começam a não ser entendidas por toda a plateia: ela ri em pontos, em nichos. Vejo um dificuldade de fazer associações mais livres, fora da curva, é tudo tão óbvio, mastigado. Se tem alguém que me incomoda demais é aquele que diz saber o que o público gosta, falando que é só soltar um palavrão. Eu acho isso um horror, porque é quase uma bateção de carteira. Eu continuo perseguindo meu estilo, e sigo escrevendo muito sobre mulher, a condição dela dentro da sociedade machista. Vinha há anos falando sobre isso e virou um boom. Quando a mídia incorpora movimentos sociais, tudo é propaganda, mas quando programas falam sobre isso, aí vira tendência. Eu vejo um museu de grandes novidades, já parafraseando Cazuza (risos).

TV Globo / Divulgação
Grace Gianoukas (com Cosme dos Santos) como a Ermelinda da novela “Salve-se Quem Puder” (2020-2021)

A Ermelinda, em Salve-se Quem Puder, acabou representando exatamente isso em seu desfecho, batendo nessa tecla do empoderamento. Foi algo que você levou em conta para fazer o papel?
Esse término e essa condição dela foram sendo colocados aos poucos, porque a Ermelinda foi ganhando essa postura ao longo da trama. O Daniel Ortiz (autor da novela) foi trazendo isso para a personagem, porque ela cuidava das meninas, era sensível e amorosa, mas começou a refletir sobre o próprio pensar, sobre a felicidade dela. Ela é mais velha, está fora dos padrões e termina apaixonada por ela mesma. É muito legal. Na reta final, o Daniel dizia que ela ia virar uma devassa (risos). E deu certo. 

Carlos Alberto de Nóbrega, o veterano apresentador de A Praça É Nossa, disse em uma entrevista recente que o “humor está indo para o buraco na TV aberta” e que há “uma luta com o politicamente correto”. Você concorda?
Não sei se as coisas estão caras de produzir, temos menos quantidade, mas eu sigo vendo coisas excelentes na TV aberta. Tivemos A Grande Família, Tapas e Beijos, Os Normais, e agora na pandemia vimos o Amor e Sorte, do Jorge Furtado. Tenho visto histórias legais, saindo desse formato das esquetes, agora as coisas são mais complexas. Essa outra linha de humor, que exalta preconceito e esses temas como da “loira burra”, da “bunda”, da “bicha espalhafatosa”, nunca foi engraçada para mim. O que vejo ali é talento, bom ator, mas engraçado não é. Algo inesquecível é a Salomé, do Chico Anysio, e o lance do primo rico e do primo pobre. É horrível de se ver a diferença social, claro, mas revelava a sociedade que existe até hoje. Tem coisas que são clássicas, porque retratam nossa civilização, e outras que são sazonais e acontecem dentro daquele tempo quando aquele comportamento ainda existe. Estamos em evolução, mas estamos na grande divisão, por essa polarização que houve. O emburrecimento está se empoderando, mas pautas com mais sofisticação também estão ganhando poder, porque a gente lutou muito para que houvesse um humor que valorize a inteligência do público e que faça a sociedade refletir. Acho que as redes sociais, muitas vezes, não ajudam nisso, porque espalham conteúdos muito arcaicos, de pensamento muito retrógrado.

Juliana Coutinho / Globo
Grace Gianoukas na série cômica “Vai que Cola”, ao lado de Catarina Abdalla

Além de redes, o que atrapalha essa evolução do humor?
O ser humano (risos). Se a gente observar um formigueiro de uma espécie, eles têm a rainha, as guerreiras, as cortadeiras, e passam cem anos funcionando da mesma maneira, não têm evolução do comportamento. A mesma coisa acontece conosco, por mais que a gente queira quebrar padrões de comportamento. No final, se pegar cem anos de existência da nossa espécie, a gente se repete na forma como age. Claro que ganhamos conhecimento científico, tecnologia, mas o comportamento humano não evolui para as próximas gerações, mesmo que a gente aprenda algo na imaginação, nas guerras e nas grandes tragédias. Isso não interfere no nosso gene. Depois de um nazismo, jamais subiria o fascismo como está subindo. Nós não conseguimos passar de um certo ponto. É isso.

Não há nada que a gente possa fazer, então?
A gente pode fazer, da nossa existência, o melhor para esse tempo que estamos vivendo. Não vamos mudar o comportamento da nossa espécie. A gente até pode possibilitar um ambiente melhor, em nosso entorno. Mas o que estamos fazendo aqui não vai impactar no Afeganistão e nem no garimpeiro lá do Interior que continua matando índio, infelizmente. 

No meio desse mundo caótico, o que tem sido reconfortante, então? Nos últimos seis meses, perdemos o Paulo Gustavo e outros nomes importantes do humor. Como tem sido para ir adiante?
Eu sou meio ateia, mas acredito que há uma coisa maior, Deus está em tudo o que é vivo, na natureza, em tudo que vive. A gente vê cometas passando, como o Paulo Gustavo, que era de uma urgência, uma rapidez, hiperativo mesmo, e que tinha essa necessidade de construir e realizar. Ele foi vítima de uma das coisas mais difíceis pelas quais passamos (morreu em decorrência da covid-19), e a missão dele como estrela era chamar atenção para a vida. Gente de esquerda e de direita, não interessa, todos gostavam do Paulo Gustavo. A morte dele foi uma comoção, que acabou como uma via-crúcis, e o destino trouxe esse carma para que todos repensassem muito bem o que estão fazendo com a saúde. Na hora em que ele parte, ficou o momento de lição que ele deixou para a gente viver. Acho que o nosso futuro como artistas é sempre manter essa chama acesa. Em qualquer tempo, sempre vai haver alguém que está precisando rir. Independentemente de guerras e tragédias, sempre tem um lugar onde vai ter licença poética, que funciona como respiro da dor e esse lugar, muitas vezes, é a comédia. Uma sociedade doente, do jeito que está destruída, precisa do humor. Nossa civilização está uma ruína, e o nosso papel de fazer rir é cada vez mais fundamental. 

Um dos desafios para fazer rir hoje é a chamada cultura do cancelamento, não?
Já houve grandes injustiças. Alcançar um sucesso é bom, mas isso chama atenção de gente que está esperando para te enfiar a faca, na primeira vacilada. Isso vai acontecer enquanto tivermos vida na Terra, não dá para temer cancelamento. Cada um tem que fazer o que acha certo, não se pode ter medo do público. Quem faz arte, cria conteúdo original e está envolvido com ideias novas nunca vai ter problema de cancelamento. A arte tem que se manifestar, seja para denunciar isso ou aquilo. Mas tem artistas mais humanos, e outros são desumanos.

Como você define o seu tipo de humor?
Eu luto pelo olho no olho. Por espaço para evolução, argumentação e crescimento. Vi recentemente uma série, Hacks (disponível no HBO Max), em que uma comediante antiga ganha uma ghostwriter “cancelada” para se reinventar e ganhar público. O ponto é que verdades absolutas deviam cair, temos que ter a possibilidade de tocar em algo e evoluir. Meu espetáculo, Grace em Revista, fala exatamente sobre isso: já que a vida é passageira, a gente não pode ter preguiça de ir atrás do nosso sonho. Não podemos ter preguiça de perseguir o que o nosso instinto acredita. Uma das personagens da peça, a Advogada do Diabo, fala sobre o quanto a gente usa artifícios para colocar responsabilidade em cima dos outros, e não em nós mesmos diante das coisas. Eu, com 57 anos, analiso meus comportamentos e acho que amadureci, tendo mais entendimento das coisas. Temos que parar de olhar para o outro e olhar para o nosso.


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