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Cultura viva nas periferias

A luta para manter espaços culturais alternativos na ativa

Espaços na Região Metropolitana e em Porto Alegre ganham força, muito baseados na luta de ativistas e da comunidade. 

06/11/2021 - 12h00min


José Augusto Barros
José Augusto Barros
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Anselmo Cunha / Agencia RBS
Ignácio e Negra Jaque: começo de um sonho realizado

Em 2017, em uma atitude inovadora, uma turma, liderada pelo rapper e ativista cultural Rafael Diogo dos Santos, o Rafa, do grupo Rafuagi, inaugurou a primeira casa de cultura destinada ao hip hop do Rio Grande do Sul, em Esteio. Quatro anos depois, muito pelo trabalho incansável de vários nomes do gênero, como o próprio Rafa, a rapper Negra Jaque e Tiry, do grupo BFN, outras iniciativas semelhantes começam a sair do papel, mostrando a força que movimentos coletivos têm quando decidem se unir em prol de suas comunidades. 

Neste especial, o DG conta quatro histórias de centros culturais alternativos, cada um no seu momento (de obras ou  consolidação), mas todos com o mesmo objetivo: criar espaços e oferecer opções para que o povo da periferia tenha acesso a cursos, palestras, aulas, bibliotecas e até serviços comunitários básicos.

Em comum, esses lugares mostram que são muito mais do que casas destinadas aos fãs da cultura hip hop: são pontos de referência em suas comunidades, que ambicionam influenciar  positivamente os jovens, para que se mantenham longe do crime e do tráfico de drogas e perto de atividades que prometem um futuro promissor. Assim como já aconteceu com alguns dos personagens desta reportagem.

A realização de um sonho

Anselmo Cunha / Agencia RBS

Em dezembro, o sonho de uma série de artistas fundamentais para a cultura de periferia do Rio Grande do Sul deve se materializar. Está prevista para o último mês de 2021 a inauguração do Galpão Cultural Casa de Hip Hop, no Morro da Cruz, zona leste da Capital. A obra, que estava parada desde o fim de 2018 por falta de recursos, foi retomada em 2020 após o lançamento de uma campanha de financiamento coletivo e alguns eventos que ajudaram a levantar fundos para o tão sonhado projeto.

Entre os coordenadores da ação estão Jaqueline Trindade Pereira, a rapper Negra Jaque, que é formada em Pedagogia, seu irmão, o grafiteiro Geovane Trindade Pereira, conhecido como Getri, e o companheiro de Jaque, Ignácio Sobrinho. A construção do Galpão começou em 2015, depois que os pais da rapper, Maria Aparecida Trindade Pereira e Luis Carlos Gonçalves Pereira (já falecido), doaram o terreno. O próprio pai de Jaque ajudou a organizar o material que chegava e construir o local. 

Ela explica que a casa vai oferecer atividades diárias com oficinas diversas, projetos musicais e audiovisuais, biblioteca, espaço para ensaios artísticos e sala de cinema comunitária, entre outras ações que já são desenvolvidas na comunidade, como o Sábado Cultural, com sarau e outras atividades. 

- O pátio, por exemplo, será destinado para o ensino da dança, não só de hip hop, mas de outros estilos, também. Para nós, esse é um templo da cultura hip hop, um espaço de criação,de aprendizagem e construção - explica a rapper. 

Política de acesso

Jaque, que se emociona ao falar do projeto, destaca que centros de cultura em bairros de periferia são espaços diferenciados, que propiciam uma política de acesso de cultura em locais onde o Estado não chega.

- A gente oportuniza, por meio do centro, que a cultura chegue de forma democrática, diversa e acessível. E esse local tem uma camada educacional muito importante: estamos estabelecendo uma ligação entre as escolas e o Galpão, levando atividades do Galpão para dentro das escolas e atividades das escolas para dentro do Galpão - argumenta ela.

Como exemplo, Jaque cita a parceria feita com a escola municipal Judith Macedo de Araújo, no Morro da Cruz, que está auxiliando na construção da biblioteca que ficará situada no Galpão. Para ela, o que os coordenadores da empreitada estão fazendo é uma contrapartida ao que receberam de apoio quando ainda eram adolescentes e estavam em busca de oportunidades.

- Nossa ideia é dar uma contrapartida do que nos foi oferecido em algum momento. Para as crianças e adolescentes que estão construindo sua identidade, sua autoestima, é fundamental ter esse espaço. Quando nós éramos muito jovens, tivemos artistas que fizeram isso por nós. Costumo dizer que centros de cultura em periferias são centros de estudos avançados para desenvolver potencialidades. E para desenvolver uma outra oferta de vida, de resistência - finaliza. 

Garra e solidariedade

Robinson Estrásulas / Agencia RBS

A Casa da Cultura Hip Hop de Esteio, um dos projetos de maior êxito quando o assunto são centros culturais no Estado, não foi poupada pela pandemia de coronavírus. Antes de março de 2020, oficinas de dança, teatro, cinema, grafite e cursos de DJ movimentavam a rotina do espaço que fica no bairro São Sebastião. 

Porém, desde então, mesmo com toda a organização de Rafael Diogo dos Santos, conhecido como Rafa, do Rafuagi, e toda sua equipe, a casa, que tem cerca de 1,7 mil metros quadrados sofreu com a paralisação das atividades. Mesmo diante das dificuldades, a casa teve ações relevantes, em 2020, como a Oficina 5 Elementos, que ofereceu uma série de iniciativas online para a comunidade. 

- Vínhamos de um fim de 2019 sensacional, quando comemoramos o aniversário da casa (fundada em 2017) com um show do MV Bill para 3 mil pessoas. Em 2020, conseguimos manter projetos online. Porém, chegou 2021,  e tivemos uma baixa nas atividades - lembra Rafa. 

No entanto, com toda a garra e o trabalho que são costumeiros aos integrantes da Casa da Cultura do Hip Hop de Esteio, 2021 trouxe um número significativo de doações de alimentos não perecíveis, distribuídos para as comunidades da região: 74 toneladas. Na avaliação de Rafa, esse trabalho se mostrou fundamental para que a entidade mantivesse um vínculo mais direto e mais próximo com as famílias locais, deixando vivo um dos seus pilares: a assistência social. 

Suporte

Para projetar 2022, Rafa e sua equipe arregaçaram as mangas, mostrando que, mais uma vez, são referência e inspiração para outros entes do movimento cultural que querem trabalhar pelo seu povo. 

- Captamos recursos em editais, conseguimos recursos via emendas parlamentares e verbas de parceiros. Com isso, quitamos os custos de 2022 com lanches, eventos, atividades de formação de artistas e atividades comunitárias - afirma.

Em janeiro, a casa estará de volta à ativa para um ano de retomada dos principais projetos do espaço, que foi o primeiro do gênero no Rio Grande do Sul e que levou cerca de cinco anos para ficar pronto. Mas, agora, mantendo a tradição solidária do gênero, o foco será mais amplo: chegou a hora de dar suporte para iniciativas menores.

- Daremos suporte para outras casas, que ainda não terão a mesma capacidade de volta que a gente vai ter. Daremos suporte para os espaços, como o Espaço Sétimo Setor, no bairro Guajuviras, em Canoas, e o Culturamas, em Sapucaia do Sul. É o momento de poder estruturar o movimento, para que outros núcleos tenham força. E somos mais do que uma casa de cultura do hip hop, somos agregadores para todos os movimentos - enfatiza Rafa.

"O rap tem uma responsabilidade social"

Marco Favero / Agencia RBS
Comunidade mobilizada para ter o centro

No coração do Rubem Berta, na rua Wolfran Metlzer, um local conhecido da comunidade começa a ter a cara de um importante centro cultural que atenderá a populosa região do bairro, que tem pouco mais de 87 mil habitantes. A sede do Instituto Cultural Cohab É Só Rap, que há cerca de duas semanas sediou o aniversário do Coletivo Embolamento Cultural, foi revitalizada há sete anos e, há quatro, sedia os eventos do projeto, um dos mais importantes da zona norte da Capital. 

Aos poucos, os grafites de artistas vão tomando conta das paredes, e as atividades vão sendo realizadas, como explica Leandro Francisco Seré, o Tiry, cantor de rap, produtor e ativista cultural que faz parte da organização.


– O espaço, antes de começarmos a revitalização, foi depredado. Não tinha muro, uns caras entravam aqui para usar drogas, arrancaram fios e tudo mais – lembra Tiry.

TIRY

Um dos coordenadores do local

Parcerias

Buscando parcerias de todos os lados, os ativistas começaram a reerguer o centro. Mesmo sem muitas verbas, buscaram parcerias, por exemplo, com a Central Única das Favelas (Cufa) em um momento crucial para o local: a pandemia de coronavírus.

Marco Favero / Agencia RBS
Local deve oferecer diversos serviços para a comunidade

- Diferentemente de outros movimentos, o rap tem uma responsabilidade social. O rap dos anos 1990, por exemplo, tinha uma proposta muito clara, de salvar vidas. Então, no auge da pandemia, a gente vinha para cá igual a um astronauta: com duas máscaras, álcool em gel e tudo mais, para trabalhar para proporcionar algo para essas pessoas. Conseguimos 150 vale-gás, 300 cestas básicas e uma ajuda, em forma de vale-alimentação, de R$ 240. Temos essa responsabilidade com o social - sustenta Tiry. 

Dentro das possibilidades e das limitações do momento, Tiry e sua galera começaram a mudar a realidade do local. Antes de pensar em esportes, cultura e música, a primeira atitude do coletivo foi fazer uma campanha de conscientização para o uso de máscaras, ainda em 2020:

- Sabe como é, temos um problema de informação na periferia sobre o uso de máscaras.

Não é só música

Depois, partiram para os planos de transformação do espaço. Para os próximos tempos, eles já têm parceiros importantes para algumas iniciativas. Em uma delas, um professor de inglês dará aulas gratuitas para alunos da região. Em outra, um advogado fará consultoria jurídica gratuita para a população. Nas sextas-feiras, atualmente, já ocorre o brechó da Tia Maria, com a venda de roupas. Do Banco de Livros, mantido pela Fiergs, vieram livros que estarão na futura biblioteca do local. 

- Na parte cultural e musical, a ideia é ter um espaço de música, com aparelhagens de som, para fazer ensaios abertos e clipes. E também para que a gurizada saia da escola e venha para cá fazer aula de hip hop - explica Tiry.

Um lugar histórico para a cultura 

Anselmo Cunha / Agencia RBS
Na Vila Ipiranga, um lugar histórico para as comunidades

Em maio de 2022, na Vila Ipiranga, zona norte da Capital, outra iniciativa de destaque da Associação da Cultura Hip Hop, responsável pela administração da Casa da Cultura Hip Hop, em Esteio, deve ser inaugurada. Com espaço para shows, oficinas e exposições, o Museu da Cultura Hip Hop será o primeiro do gênero no país e ficará situado em um imóvel cedido pela prefeitura. 

Apesar de ter a palavra museu no nome, o espaço será muito mais do que isso. A iniciativa conta com o apoio de empresas, da prefeitura, do governo do Estado e da Unesco. As obras devem começar em dezembro. 

A inspiração para o museu gaúcho vem do distrito do Bronx, nos Estados Unidos, onde está sendo construído o Museu Universal do Hip Hop de Nova York. 

Ações variadas

Segundo Rafa Ferreira, um dos coordenadores do local, além de exposições, a ideia dos organizadores é realizar shows, oficinas e atividades culturais no espaço. E que o local se torne mais uma referência de cultura da periferia em Porto Alegre.

- Essa conquista é importante demais, tanto para a cultura do Estado quanto do país. O desenvolvimento do hip hop é muito forte em suas diferentes vertentes. Então, esse local terá a responsabilidade de contar uma história viva e levar para as novas gerações as pessoas que foram fundamentais para essa cultura e tudo que tem por trás dessa cultura, que é maravilhosa - pontua.

Além de toda a importância do trabalho cultural do local, nesta semana, o Museu da Cultura anunciou uma parceria importante com a Secretaria de Justiça e Sistemas Penal e Socioeducativo. 

Ao lado de trabalhadores da construção civil, quem trabalhará na obra serão apenados (o regime dos apenados ainda não foi definido), previamente selecionados pela Secretaria, e com autorização judicial, comoforma de diminuição de pena.

- Será um modelo de reinserção na sociedade. Além de nossa cultura oportunizar aos apenados a geração de trabalho e renda, eles poderão se aproximar de nossos artistas - afirma Rafa. 

No Estado, o número de Centros só aumenta:

- Segundo o coordenador de Autogestão e Sustentabilidade da Associação da Cultura Hip Hop, e uma das principais lideranças do gênero no RS, Rafa, do grupo Rafuagi, atualmente, o Estado conta com 24 espaços culturais voltados ao hip hop ou para as culturas nas periferias. Estão situados nas seguintes regiões: 

Porto Alegre (8)
Caxias do Sul (1)
Santa Maria (1)
Canoas (1)
Pelotas (1)
Viamão (1)
Sapucaia do Sul (2)
Taquara (1)
Esteio (1)
Salto do Jacuí (1)
Passo Fundo (2)
Novo Hamburgo (1)
Alvorada (1)
Cidreira (1)
São Leopoldo (1)

De acordo com Rafa, nos últimos anos, esse número aumentou, o que demonstra a mobilização das comunidades para que as periferias tenham centros de referência. Já Negra Jaque destaca que os locais devem ser abertos para todos os tipos de cultura:

- Os espaços não precisam estar ligados ao hip hop. Podem ser abertos para todas as formas de cultura solidária, democrática e acessível. 


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