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 Amplificando vozes

Rapper realiza o sonho de abrir um centro cultural na comunidade onde nasceu, em Porto Alegre

Negra Jaque é cantora, compositora, educadora e agora também coordena o Galpão Cultural Casa de Hip Hop no Morro da Cruz

30/05/2022 - 11h09min


Jéssica Rebeca Weber
Jéssica Rebeca Weber
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Mateus Bruxel / Agencia RBS

Negra Jaque tem um microfone tatuado no colo, mas não precisa de equipamento algum para se fazer ouvir. A rapper que despontou em batalhas de rima é hoje uma das vozes do ativismo negro e feminista na Capital. É também pedagoga, mestranda em Educação e, desde março do ano passado, toca um centro cultural na comunidade onde nasceu.

Jaqueline Pereira, 34 anos, já sonhava há sete anos com o Galpão Cultural Casa de Hip Hop no Morro da Cruz, e contou com a parceria do namorado Ignácio Sobrinho e do irmão Geovane Pereira para tirá-lo do papel. É uma peça pequena de madeira quase no topo da Rua 9 de Junho, toda grafitada, decorada por dentro com corações coloridos de papelão e fotos de personalidades negras inspiradoras, do músico Criolo ao ativista afro-americano Malcolm X. O galpão ainda não está totalmente pronto: com o dinheiro doado por uma escola, está sendo construído agora um telhado sobre o pátio. 

Além de instrumentos pendurados no centro cultural, que ainda deve receber oficinas de música, uma biblioteca ocupa estantes em três paredes. Foi batizada em homenagem a Martin Luther King Jr, e as seções (infantil, poesia, literatura brasileira e “gringos”) estão assinaladas à mão em pedaços de folha timbrada. São cerca de 500 livros, emprestados gratuitamente a qualquer pessoa da comunidade. 

O espaço abriga um grupo de danças, organizado por meninas do morro, e já teve oficinas de grafite, de reciclagem e dobradura. A intenção de Jaque é multiplicar os projetos sob aquele teto.

— É um espaço de acolher pessoas e ideias. Um galpão de arte, como forma de educação e desenvolvimento humano — afirma a rapper. 

Negra Jaque começou a escutar Racionais MC's escondida dos pais, que não achavam coisa de menina. Ouvia o som que escapava da casa dos vizinhos e anotava as letras em cadernos. Aos 17 anos, escreveu sua primeira letra, sobre machismo: “Nossa sociedade criada em seus seios não as reconhece, não respeita seus anseios”. 

— O rap foi a ferramenta que eu encontrei para falar tudo com o que não concordava no mundo — conta. 

Até hoje é assim. A música Fala Demais, por exemplo, traz sua trajetória no rap e lança luz sobre o desmerecimento das mulheres no meio do rap (“Na cena, eles falam demais"), enquanto um dos seus maiores sucessos é Cabelo Crespo (“Mostre seu cabelo crespo, dane-se quem não gostou”). Uma seguidora no YouTube comentou o clipe: “Me inspirei nessa música. Eu alisava meu cabelo porque tinha vergonha do meu cabelo. Hoje em dia, dane-se”.

Quando participava de competições de MCs, ouvia ofensas dos seus adversários ao microfone, por ser negra e mulher. Mandavam-na procurar louça para lavar, dali para baixo. Mas ela usava os seus 40 segundos de rimas para mostrar que era maior que isso — e melhor também. Foi assim que ganhou a Batalha do Mercado em 2013. 

O prêmio era produzir uma música em gravadora. Juntou dinheiro para gravar o EP inteiro, e  nasceu o Sou. Em uma das faixas, Guerreira, canta: “Ela sabe o que quer, tem força, é mulher, não aceita o que vier”:

— Eu ponho essas expressões (contra o machismo) para criar um alerta, para que algumas coisas não se repitam com outras meninas. 

Para Jaque, os discos são os livros de História da periferia. Se não está retratado nas narrativas oficiais, o seu cotidiano está na letra do rap. Ela cita uma música dos Racionais, que aborda o saneamento: “Por cima ou por baixo, se chover será fatal. Um pedaço do inferno, aqui é onde eu estou”. Ela mesma já viveu em uma casa com esgoto a céu aberto, assim que se separou do primeiro marido. Na época, seu filho, Erik, tinha quatro anos — hoje tem 15.

O atual namorado dela, o produtor cultural Ignácio Sobrinho, conta que Negra Jaque e Jaqueline são pessoas diferentes. Enquanto a primeira “bota o dedo na cara” e não tem medo de falar nada, a segunda é mais sensível e só coração. 

O que elas têm em comum é a disposição. Jaque passa o dia na rua, dando aula (ensina Educação para Relações Étnico Raciais em uma escola comunitária), compondo, indo a reuniões, a ensaios do carnavalesco Bloco das Pretas, cuidando do Galpão Cultural. E quando chega em casa, nem cansada está. 

— A energia dela é demais — resume Ignácio.

Mateus Bruxel / Agencia RBS
Jaqueline Pereira, a Negra Jaque, 34 anos



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