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Chega, respeita e representa

Com museu e festival nacional, RS se consolida como polo da cultura hip-hop

Ponto de transformação social, o movimento colocará holofotes sobre o Estado com o Rap in Cena World, que ocorre em outubro

24/07/2022 - 13h17min

Atualizada em: 24/07/2022 - 13h19min


Carlos Redel
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Da esquerda para a direita: Keni Martins, Rafa Rafuagi (em cima), Jô e Nitro Di (embaixo) nas obras do futuro Museu da Cultura Hip Hop

Diversos gaúchos se reúnem para cantar, dançar e praticar atividades artísticas em um centro dedicado à celebração de uma cultura. Se der apenas estas informações para alguém de fora da cena, provavelmente a pessoa concluirá que se trata do tradicionalismo em um CTG. Porém, trata-se de um outro movimento, que também tem no Estado um destaque nacional há décadas, mas que segue em construção — agora, de maneira mais acelerada — e que vem conquistando cada vez mais espaço: é o hip-hop

A cena descrita no começo pode ser presenciada, atualmente, em diversos pontos do solo gaúcho, mas o primeiro centro do Estado inteiramente dedicado a esta cultura foi instalado em Esteio, em 2017. A Casa da Cultura Hip Hop abriu portas não apenas para que o movimento pudesse encontrar fundações sólidas, mas também para que fosse cada vez mais estudado e disseminado, ao mesmo tempo em que a comunidade garantisse um espaço de acolhimento e segurança. Tudo isso embalado por rima, poesia, dança, grafitti e, acima de tudo, respeito. 

Assim, nos últimos cinco anos, milhares de vidas foram tocadas pelo projeto, e a cultura do hip-hop, outrora marginalizada, cada vez mais se prova uma fonte de transformação social. Um dos construtores desta cena e uma das lideranças do movimento no Estado é o rapper Rafa Rafuagi, 33 anos, que colocou a mão na massa e fundou a Associação da Cultura Hip Hop de Esteio, em 2016. A partir da entidade, ele foi responsável pela Casa da Cultura e, também, pelo primeiro Museu do Hip Hop do país, que está sendo construído na escola desativada Dr. Oswaldo Aranha, na Vila Ipiranga, zona norte da Capital. A previsão de inauguração é 2023. 

Mateus Bruxel / Agencia RBS
Cantora e educadora, Negra Jaque coordena o Galpão Cultural Casa de Hip Hop no Morro da Cruz, em Porto Alegre

— Eu enxergo esses espaços do hip-hop como pontos de aquilombamento dentro do Estado. Hoje, a gente tem a Negra Jaque no Morro da Cruz com uma casa do hip-hop, temos a de Esteio, em Caxias do Sul tem a Fluência Casa Hip Hop, temos no Rubem Berta a Escola do Hip Hop. Esses locais são bases de multiplicação de novos hip-hoppers e de formação de cidadãos — explica Rafa. 

De acordo com o artista, estes espaços são fundamentais para gerar dignidade às pessoas da periferia, com programas que, por exemplo, contemplam a doação de cestas básicas para famílias carentes e servem como centros culturais para afastar os jovens do mundo do tráfico, ao suprir a lacuna na vida de adolescentes no contraturno escolar. 

— O Estado, hoje, não investe o que deveria em políticas públicas para a juventude, para que a gente possa competir em pé de igualdade com o tráfico. Precisamos que o jovem tenha mais oportunidades, o que pode condicionar que ele se torne um cidadão pleno, ativo e também um multiplicador, uma liderança no seu território — destaca o músico, enfatizando que os projetos dos quais é líder contam com cerca de cem funcionários. — São muitas pessoas que a gente consegue empregar e muitas vidas que a gente consegue salvar — acrescenta.

Em cena 

Em 2023, a cultura hip-hop completa 50 anos. Foi no dia 11 de agosto de 1973, na região do Bronx, em Nova York, que o DJ jamaicano Kool Herc, criou o break, rompendo a seleção rítmica ao girar dois discos idênticos em uma mesa de mixagem. Com isso, ele prolongou a parte instrumental das canções, enquanto introduzia sonoridades arranhadas, dando ritmos novos e desconhecidos à música disco da época. Para completar, um amigo de Herc, Coke La Rock, pegou um microfone e começou a improvisar rimas. Nascia aí, em uma mistura de rock, pop, disco, jazz e blues, o que anos mais tarde receberia o nome de hip-hop — agregando, além da música, dança, arte e moda. 

De acordo com Rafa, o Rio Grande do Sul já pratica a cultura hip-hop desde 1981 — ou seja, apenas oito anos depois de seu surgimento, na outra ponta da América. Assim, a arte realizada por aqui é considerada por ele de vanguarda, com uma importância enorme dentro do movimento nacional. 

Para o músico, a cena no Estado, hoje, é uma das mais fortes do país. Isto porque já conta com a maior casa de cultura do hip-hop sustentável, abrigará o primeiro museu do movimento, e, em outubro, será palco do Rap in Cena World, que se posiciona como o maior festival da cultura hip-hop do Brasil. 

— Mesmo com o processo econômico e midiático do Brasil se concentrando no eixo Rio-São Paulo, o que nos deixa deslocados, a cena aqui é evidente, existente e pulsante, tão potente quanto no centro do país — expõe o artista. 

O Rap in Cena World já é a maior edição do festival que nasceu em 2014 — mesmo previsto para daqui a quase três meses, já foram vendidos mais ingressos do que para qualquer outra das sete vezes que o evento foi realizado. No total, 60 artistas subirão ao palco instalado no Parque Maurício Sirotsky Sobrinho, o Harmonia, em um total de 24 horas de shows, que serão divididas em dois dias: 15 e 16 de outubro. 

O idealizador deste projeto, Keni Martins, 28 anos, apostou no gênero musical em 2014, em um dia de shows no Império da Zona Norte. De lá para cá, o Rap in Cena foi evoluindo, mas demorou para que o produtor conseguisse sair do prejuízo — até então, ouvia frases como "larga o rap, ele só rapa o teu bolso". Conforme o evento foi crescendo, Martins conseguiu investir mais nos anos seguintes, trazendo grandes artistas nacionais e, ao mesmo tempo, dando espaço para os talentos gaúchos. Inclusive, em 2020, um palco dedicado ao evento marcou presença no Planeta Atlântida

— Agora, a nossa visão no Rap in Cena World é englobar toda a cultura hip-hop, sendo representada em espaços e experiências dentro do evento, compondo com esse todo, além da entrega dos artistas, dos shows, do entretenimento. Queremos praticar uma união real, que é o que a nossa cultura prega, puxando diversos outros movimentos já existentes aqui no Estado — pontua Martins. 

O festival contará, então, com ativações do Museu do Hip Hop, da Casa de Cultura do Hip Hop, batalha de breaking, pista de skate, quadra de basquete, entre outras atividades. E um dos principais pedidos da organização do evento é que o público opte pela compra de ingressos solidários, que traz desconto para quem doar um quilo de alimento — com isso, estima-se que mais de cem toneladas de comida serão arrecadadas e entregues ao programa Hip Hop Alimentação, que é promovido justamente pela Associação da Cultura Hip Hop de Esteio. 

A união e a sustentabilidade, contudo, constituem um desafio. Os produtores e artistas envolvidos na cena destacam que o movimento é muito mais aquecido no eixo Rio-São Paulo, com os projetos despontando com mais facilidade. Para Martins, porém, era objetivo de vida construir este modelo de negócios que o Rap in Cena se tornou em Porto Alegre. A partir de agora, ele pretende começar a sua expansão. 

— Acredito que a gente tem muito profissional qualificado e artistas talentosos. Porém, temos tudo isso muito disperso e é por isso que venho trabalhando: encontrar essas conexões e entender quais são os problemas que a gente tem, como a pouca visibilidade. É muito mais difícil, mas se conseguirmos fazer aqui, faremos em qualquer lugar — enfatiza o produtor. 

Apostando na união e no fomento da cena local, Martins espera colocar entre 40 e 50 mil pessoas nos dois dias do Rap in Cena World: 

— É um grande desafio, porque uma parada que era tão marginalizada, que segue sendo, mas agora foi para o mainstream, então, a galera tem que engolir, porque está em todos os espaços. A nossa cultura é rica e, explorando ela da maneira correta e com as pessoas certas, eu não tenho dúvida que dá para tirar o melhor. E a nossa visão é isso se tornar um grande modelo de negócio e chegar um dia como um Rock in Rio da vida.

Gerações  

No Rap in Cena World, além de diversos artistas nacionais, como Racionais MCs, Felipe Ret, Matuê e Djonga, diferentes gerações da cultura hip-hop do Rio Grande do Sul se encontrarão no palco do evento. De Da Guedes, que despontou nos anos 1990, passando por Rafuagi, que surgiu nos anos 2000, a Jô, cantora revelação do trap — subgênero do rap — que vive em Canguçu e está chamando atenção da cena no país. 

Nitro Di, que completa 30 anos de estrada com o Da Guedes em 2023 - ou seja, está inserido na cena do hip-hop gaúcho por boa parte de sua existência -, afirma que o movimento foi essencial para que os jovens da periferia pudessem encontrar a sua autoestima e, juntamente com isso, contribuiu para que eles pudessem evoluir como pessoas, tendo identificação e forças para as lutas diárias dentro da periferia. 

— O hip-hop ajudou a contestar dentro da música e da arte esse problema que a gente tem, principalmente o racial, que se exacerbou nos últimos anos, com o pessoal saindo do armário. Então, acho que o rap sempre colocou isso em pauta, de uma forma nua e crua, bem realista, batendo de frente. Neste sentido, o rap fez com que esse pessoal procurasse mais conhecimento, leitura e uma evolução na vida. O hip hop deu esse caminho. Foi assim para mim, pelo menos — diz Nitro Di, 46 anos. 

Para Jô, 21, o hip-hop chegou por meio de sua mãe, Alessandra Medeiros Gomes, que sempre foi uma entusiasta do movimento. Hoje, mesmo vivendo distante dos grandes centros, ela vê o mercado receptivo ao seu talento e agradece às gerações anteriores pelo trabalho que tiveram ao abrir os caminhos para o gênero dentro do Rio Grande do Sul — quando ela tinha um ano de idade, por exemplo, o rap Dr. Destino, do Da Guedes, explodia no Brasil inteiro e colocava os holofotes na cena gaúcha. 

— Hoje, para mim, é muito importante como artista poder inspirar outras meninas negras a serem o que elas quiserem. Mas tudo é muito louco, ainda não caiu a ficha de toda a notoriedade que eu estou tendo. Espero que, com ela, eu possa ajudar o movimento e que as pessoas possam reconhecer a nossa cultura, a nossa história — destaca a artista, que já planeja voos maiores, como se mudar para Porto Alegre ou para São Paulo e, assim, estar mais próxima da efervescência do hip-hop. 

Sendo uma das bases para que Jô possa sonhar grande, com um cenário consolidado no Estado, Nitro Di comenta que a cena segue em construção, mas que hoje as estruturas já estão bem mais sólidas. Ele reconhece que o Da Guedes foi parte fundamental desta obra, embora destaque que grupo teve que "mostrar muito serviço" para ganhar relevância nacional. No entanto, garante que virar toda essa massa valeu a pena e que o trabalho ainda está longe de acabar. 

— Um Estado que tem um movimento hip-hop tão forte e, ao mesmo tempo, conta com células nazistas, chega a ser inacreditável. Como que essas duas coisas estão no mesmo lugar? A nossa missão, dentro da nossa arte, é mostrar que existem pessoas como nós, que enxergam a vida sem esse preconceito, que buscam igualdade social e racial. Buscam respeito, independentemente de religião e orientação sexual. Respeito como pessoa, como ser humano — completa Nitro Di. 

Serviço 

  • Rap in Cena World 
  • Data: 15 e 16 de outubro 
  • Horário: das 10h às 23h50min 
  • Local: Parque Maurício Sirotsky Sobrinho (Harmonia)  
  • Ingressos: Sympla 

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