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Diogo Olivier: a oração da pauta

03/05/2014 - 15h02min

Atualizada em: 03/05/2014 - 15h02min


Diogo Olivier
Diogo Olivier
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A reportagem é uma bênção. O repórter pode, em um mesmo dia, conversar com o juiz e o condenado. O policial e o bandido. O rico e o pobre. O governante e o eleitor. O psiquiatra e o dependente químico. O torturado e o torturador. O craque e o perna de pau. Eu mesmo entrevistei todos estes personagens em algum momento das milhares de pautas que, graças a Deus, meus editores lançaram sobre mim em 24 anos como apóstolo do bloquinho. Obrigado a todos eles.

Não há escola de vida capaz de oferecer tantas oportunidades de perceber o universo ao redor de outra maneira em período tão curto. E eu, que quando era guri sonhava ser jornalista para viajar por onde minhas economias jamais alcançariam, descobri algo ainda mais fascinante do que conhecer o mundo: descobrir o mundo em cada pauta.

Só sendo repórter eu mergulharia no dia a dia de Jorge Bergoglio, o Papa argentino e hincha.

Elemento mais sedutor a desvendar pelas calles portenhas não poderia haver. Eu vinha de uma Caracas com cara de Macondo. Era o enterro gigante de Hugo Chávez, em meio a um país dividido ao meio entre o messianismo do presidente morto e seus milhões de seguidores e uma oposição levada ao radicalismo para não ser amassada, sem mediação política possível. Ruim para a Venezuela, tempero farto para contar histórias. Imaginei que tivesse mesmo me fartado - cobri também o jogo do Grêmio com o Caracas - , mas aí topei com algo ainda mais interessante: um Papa que estilhaçava vidraça jogando bola em peladas de rua e curtia xingar todo árbitro que marcasse pênalti contra o San Lorenzo.

Encontrei, batendo de porta em porta na rua Membrillar, onde morava Bergoglio, um companheiro de peladas do futuro Papa nos anos 50. Pablo Romano, 72 anos, tem uma barbearia cheia de pôsteres de Evita e Domingos Perón. Para cortar cabelo, uma única tesoura, que ele afia em um pedaço de couro amarrado na própria cadeira onde acomoda o freguês. Barba, só de navalha. Na mesa, um rádio velho do tamanho de uma caixa de sapato com uma antena enorme, sintonizado numa emissora de tango. Nenhum apetrecho a mais. Romano me contou tudo. O Papa não jogava nada, mas adorava jogar. Acertava poucos chutes na pracinha do bairro Flores, por isso certa vez quebrou uma vidraça.

Fale a verdade: Bergoglio subiu no seu conceito agora (mesmo se você for gremista), não é?

Acordava cedo, por volta de 6h. Atravessava a Plaza de Mayo para ler jornal em pé. Morava na Cúria, que ficava do outro lado da praça. Conferia o noticiário e batia papo quase sempre na banca de Daniel Regno. Sorria. Gargalhava. O futebol estava sempre no cardápio. Bruno Pastore, 33 anos, dono do boteco em que ele tomava café com medialunas, ali por perto, entregou a implicância nada divina com os juízes. O árbitro, esta pobre criatura de Deus, nunca acertava quando marcava pênalti contra o San Lorenzo. Só depois deste ritual diário é que ele partia para suas tarefas pastorais, que incluíam caminhar dando incertas nas igrejas.

Como se vê, o Grêmio não perdeu para o San Lorenzo. Perdeu para um time que deve ter a torcida do mundo todo a seu favor a esta altura do campeonato, pela figura santificadamente mundana, pop e divertida que o Papa Francisco representa. Assim, não há imortalidade que dê jeito. Bem aventurados os repórteres, os filhos da pauta, cuja missão terrena é ressuscitar histórias. É deles o reino dos céus. Ou deveria, ao menos.

Amém.


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