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A angústia da espera

A saga da mãe e da avó de uma jovem ferida no incêndio

Por dois dias, o Diário Gaúcho acompanhou a rotina de esperança da mãe e da avó de Ana Paula Gottlieb Almeida

02/02/2013 - 11h41min

Atualizada em: 02/02/2013 - 11h41min


Os passos que cruzam o saguão do Hospital de Clínicas até parecem cansados, mas são firmes. Carregam sentimentos imensos: amor, preocupação, esperança, fé e dor. Em meio à tragédia que matou 236 pessoas, pelo menos, em Santa Maria, há uma semana, está o  universo particular de cada família que ainda luta pela sobrevivência dos que se feriram.

No Estado, há cerca de 120 hospitalizados - dois terços em situação crítica. Entre os 17 internados no Clínicas está Ana Paula Gottlieb Almeida, 24 anos. Ela já está no quarto, recebendo os cuidados da mãe, a dona de casa Sandra Mara de Oliveira Gottlieb, 48 anos, e da avó, Maria Marlene de Oliveira Gottlieb, 73 anos, com quem mora em Santa Maria.

Emocionada, Sandra garante sua fé:

- Ela veio deitada e eu vou levar ela daqui em pé.

A moradia provisória

No quarto de número 205 do Hotel de Trânsito da Ugeirm (Sindicato dos Escrivães, Inspetores e Investigadores de Polícia do RS), no Bairro Santana, moram o amor, a fé e a esperança. É ali que Sandra e Marlene foram acolhidas para acompanhar o processo de recuperação de Ana Paula.

A peça arejada, com paredes de um azul sereno recebe as duas desde segunda-feira à noite, quando a jovem foi transferida para o Clínicas. Antes, ela havia sido internada nos hospitais de Guarnição e de Caridade de Santa Maria.

Celular não para de tocar

Em duas pequenas malas, coube o necessário para uma estadia ainda indefinida. Ao lado da cama de Sandra, a cuia e a bomba de chimarrão trazem um aroma de aconchego. O celular toca a todo instante, são familiares e amigos em busca de notícias. E, aos poucos, corredores e peças se tornam conhecidos.

Assim como a mãe e a avó da jovem, outros 16 familiares de feridos estão hospedados no local, um dos que têm parceria com o Centro de Hospitalidade, uma iniciativa da prefeitura de Porto Alegre.

Ana Paula, estudante dedicada

Mestranda em Biologia, Ana Paula é solteira e tem uma rotina intensa de estudos. Dona Marlene conta que ela sai de casa cedo, por volta das 7h, e retorna perto das 21h. E, nos finais de semana, muitas vezes vai ao laboratório da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), onde faz estágio, para cuidar dos peixes (trocar água do aquário, dar comida etc.)

- Ela é sempre, sempre nos estudos. Pouco sai de casa - conta a avó.

As duas, aliás, são o xodó uma da outra. Ana Paula foi criada por Marlene desde  pequena, e elas são muito próximas: moram juntas em Santa Maria.

- Eu tava na sala de parto, a mãe a abraçou e não me devolveu mais - brinca Sandra, que mora em outra casa.

Plano não era sair de casa

Desde então, essa relação de cumplicidade só aumentou. No domingo da tragédia, Ana Paula completou um ano de formada. E não tinha planos de sair, até que mudou de ideia para acompanhar uma amiga do primário. Já no hospital, ao poder se comunicar, o pensamento da estudante se voltou imediatamente para a família:

- Quando ela acordou, a primeira coisa que ela perguntou foi: "e a vó e a mãe?" - relembra Sandra.

A rotina na Capital

Em Porto Alegre, a rotina de Sandra e Marlene não vai muito além do raio de 1km entre o Hospital de Clínicas e o hotel. Nos primeiros dias, se deslocavam um pouco antes dos horários de visita (11h e 20h) e depois voltavam para descansar. Longe ou perto, o pensamento delas continua com a jovem o tempo todo.

- A minha cabeça tá só ali nela. Se eu comer, tudo bem. Se eu não comer, também não sinto fome - diz Marlene.

Mãe voltou para ver os caçulas

Desde sexta à tarde, quando Ana Paula foi para o quarto, o ritmo mudou. Agora, a família pode ficar com ela a maior parte do tempo. Sandra ainda não conseguiu ter essa alegria - voltou a Santa Maria para ver os outros dois filhos, Victor, 16 anos, e Yago,  oito anos, que ficaram lá. Ela retorna na segunda.

A avó já encheu a neta de mimos. - Vou lá cuidar do meu nenê - contou sorridente na  sexta à tarde, antes de subir para dar-lhe café.

O encontro com a solidariedade

Tão logo soube que a filha viria para  Porto Alegre, Sandra foi questionada por amigos sobre como faria para se manter aqui em termos  financeiros. Disse que não sabia. Então, a solidariedade foi imediata.

- Em poucos minutos, veio um amigo com uma quantia em dinheiro, e o carro da universidade já estava lá para nos trazer - lembra.

Alimentação já está incluída

Foram os amigos  também que fizeram a mala de Marlene. E, na Capital, a acolhida foi igualmente calorosa. Assim que chegaram, as duas já tinham hospedagem graças ao hotel da Ugeirm.

- Nessas horas, a gente vê que não está sozinho. Eles estão nos deixando bem à vontade, a gente se sente em casa - relata Sandra, agradecida.

A alimentação também está incluída na conta da solidariedade, e há oferta de carros a todo instante para fazer o transporte de algum familiar, se necessário.

"Caí e me pisaram"

Com a melhora, Ana Paula não precisa mais de auxílio de aparelhos para respirar, e já pode conversar. Apesar de ainda confusa, consegue lembrar de momentos da tragédia. Segundo Marlene, o relato foi o seguinte:

- Ia saindo de mão com a Débora (amiga) e bateram em mim. Caí e me pisaram. Quando me acordei, eu tava deitada lá na rua.

A mãe acredita que a filha estivesse mais perto da porta e, por isso, tenha saído logo. Esse detalhe pode ter feito a diferença para a jovem se salvar.

- Ela diz que não quer morrer, quer ir para casa. Está começando a cair a ficha, a ver o que está acontecendo - revela a mãe.

Uma vitória por dia

No dia a dia da recuperação, cada notícia de melhora é um sopro de esperança. Sandra recorda a frase de uma assistente social do hospital:

- Ela disse que cada dia é uma vitória, uma oportunidade de eles viverem.

Em um cenário delicado como o dos feridos de Santa Maria, a mãe sabe que é preciso ter cautela. Ana Paula teve queimaduras no ombro esquerdo e na face, além de queimaduras nas vias respiratórias. Os avanços positivos deixam a família confiante. Na sexta-feira, a jovem já almoçou arroz, galinha desfiada e gelatina. A mãe diz:

- Minha filha chegou aqui com 2% de chance de vida. Hoje, já tá conversando. Temos de ter fé.

DRAMA QUE SE ESPALHA POR TODO O HOSPITAL

Quem trabalha diretamente no contato com as famílias dos pacientes de Santa Maria não consegue ficar indiferente ao sentimento de quem espera por uma boa notícia. Vigilante  da área de acesso restrito aos familiares, Rafael Michalczuk, 36 anos, sabe que é preciso ter sensibilidade para acolher quem chega para fazer uma visita.

Uma triste coincidência

Ao longo do seu turno de trabalho, das 13h às 19h, ele perde as contas de quantas vezes orienta pessoas, incluindo jornalistas e voluntários.

- Vem muita gente querendo ajudar de todas as formas.

Para ele, há ainda uma coincidência nada agradável: a filha mais velha tem o mesmo nome de uma paciente - inclusive o apelido é igual. A cada visita que ela recebe, ele recorda da sua pequena, de quatro anos.

- Chego em casa e dou um abraço nela - emociona-se Rafael, que tem também uma menina de quatro meses.

Carrinho da Jaqueline e da Ana: cheio de ternura

O carrinho cheio de frutas, café e água conduzido pela técnica em Nutrição Ana Lúcia Mateo, 55 anos, e pela atendente de alimentação Jaqueline Menezes, 46 anos, carrega também a solidariedade. É assim que elas e as outras colegas de equipe demonstram o seu carinho com as famílias das vítimas da tragédia da madrugada do dia 27, em Santa Maria.

- A gente procura deixá-los confortáveis. Para nós, se tornou algo muito importante - avalia Ana.

Não contém as lágrimas

Elas entenderam que essa seria a forma de colaborar por meio do seu trabalho. Não  chegam a falar com familiares quando transportam a refeição, mas levam um olhar carinhoso e gestos acolhedores.

- É uma maneira de ajudar, dar um carinho, saber que se está fazendo alguma coisa - relata Jaqueline.

Com lágrimas, ela se emociona como muitos ao falar da tragédia. E não consegue esconder o sentimento que toca mais forte o seu coração:

- Eu tenho dois filhos da mesma idade, a gente se põe no lugar de mãe.

Olhares que falam

Nas mais de dez horas que fiquei no saguão do Hospital de Clínicas, não foram poucos os  olhares que se cruzaram com o meu. Poucas, sim, foram as palavras que consegui trocar com os familiares, respeitando o direito deles de não falar.

Mas todos esses olhares disseram muito, assim como os abraços que presenciei. Eles deram forma a um cenário de apoio e solidariedade, em meio ao vaivém de informações que fez alguns se aliviarem e outros, infelizmente, chorarem mais.

Nesse "plantão", encontrei as palavras de Sandra e Marlene, assim como de algumas outras famílias. Com elas, aprendi sobre dor, mas principalmente sobre força, amor e fé. A todos familiares com os quais não falei, espero que os olhares trocados possam
ter transmitido carinho e torcida por boas notícias.

Denise Waskow, repórter do Diário

Olhos marejados

Os passos lentos e os olhares marejados dos familiares me marcaram, enquanto percorri os corredores e as portarias dos hospitais da Capital e de Canoas, onde há vítimas da tragédia da boate Kiss. Quase nenhum quis ser entrevistado. Mas o silêncio deles falava.

Na quarta-feira, conversei por exatos três  minutos com o tio de uma jovem de 24 anosque estava na boate. Mais do que isso, ele não conseguia. Era preciso se manter  firme para confortar a irmã, mãe da paciente, e o cunhado, o pai da jovem.

Desde domingo, o tio havia dormido menos de oito horas. E desabafou:

- A gente só quer ouvir uma boa notícia...

Abalados com o drama, pediram para não serem fotografados. Não há como não se colocar no lugar deles e sentir, mesmo que à distância, esta angústia da espera.

Aline Custódio, repórter do Diário


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