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Amor à educação

Casarão na Ilha dos Marinheiros é uma visita ao passado

Ele é a história viva de que ali milhares de alunos estudaram por mais de três décadas

16/03/2013 - 08h05min

Atualizada em: 16/03/2013 - 08h05min


Construído sobre estacas de concreto de 3m de altura, um velho casarão de alvenaria está embrenhado há anos nas matas do extremo norte da Ilha Grande dos Marinheiros, no Bairro Arquipélago, em Porto Alegre.


Porém, não há registros oficiais da existência dele na Secretaria Estadual de Educação. A certeza de que o Grupo Escolar Norte-Leste atendeu aos moradores das ilhas está na lembrança e nas fotos de um casal de professores, moradores do prédio entre 1959 e 1972, e de ex-alunos que ainda o chamam de "Colejão".


De mãos dadas, Leocaldina, 68 anos, e Hélio Francisco de Vargas, 79 anos, voltaram ao final da década de 1950 ao cruzarem as cercas de arame farpado que separam o casarão da única avenida da Ilha Grande dos Marinheiros, extremo norte da Capital. Hoje morando no Bairro Humaitá, o casal não entrava na escola há mais de quatro décadas. Boquiabertos com o abandono do local, passaram a recordar os tempos em que viveram no "Colejão".


- Cheguei para ser o diretor, em 1959. Mas virei também o único professor e zelador. Três anos depois, casei com a Leocaldina. Moramos aqui até 1972 - conta Hélio, formado em Pedagogia e pós-graduado em Séries Iniciais.


>>> Confira o vídeo dos bastidores da reportagem:

 


Vida solitária na Ilha


Vindo da cidade de São Jerônimo, Hélio conta que aceitou o desafio de viver sozinho e ilhado na parte norte. E só se chegava à região de barco. Pela ponte sobre o Canal Furado Grande, inaugurada em 1958, era apenas caminhando - mais de seis horas entre ida e volta.


- Uma vez por mês, ia a Porto Alegre prestar contas e receber o salário. Para chegar, um aluno, o melhor remador, me levava de caíque até o meio do canal Furado Grande. Lá, uma embarcação que carregava areia diminuía a velocidade para eu pular e pegar carona. Meu ponto de embarque era o Cais do Porto - recorda Hélio.


Tinha até primeira comunhão


Desbravador, o professor não se importava de morar em quatro pequenas peças e de conviver sem energia elétrica e água tratada. O único interesse era atrair a atenção de estudantes, que enfrentavam as águas do Delta do Jacuí para estudarem. Uma das primeiras ações foi criar o Círculo de Pais e Mestres (CPM). Era a forma de se aproximar dos pais. Depois, tratou de dar um ar de residência ao terreno da escola, feita no governo de Ildo Meneghetti (na época, a União incentivou escolas em locais de difícil acesso).


- Plantei árvores frutíferas, pinheiros, criei hortas, um campinho de futebol, um grupo de oração e, com a ajuda da igreja, começamos a fazer as comunhões dos alunos - relembra o mestre, enquanto contempla um limoeiro.


"O que estou fazendo aqui?"


Depois de três anos solitários, Hélio casou-se com Leocaldina. E a convenceu a dividir com ele a árdua tarefa de viver ilhado. Dina, como ficou conhecida pela comunidade escolar, chegou à Ilha Grande aos 18 anos. Com boa parte do seu tempo livre, dedicava-se a deixar brilhando o parquê do prédio. Tornou-se a auxiliar de serviços gerais da escola.


- Numa noite, parei na janela e fiquei olhando as luzes distantes da cidade. E eu no escuro. Então, pensei: "o que estou fazendo aqui?" Mas não me arrependo de nada, pois ajudei a criar os filhos dos outros - confidencia Dina.


Comunicativa e vibrante, ela logo foi aceita pela comunidade. Em seguida, mesmo sem curso de Magistério, deu aulas de reforço. Mais tarde, cursou Estudos Sociais e se tornou professora e diretora nas escolas das ilhas. Foi mais do que a mulher de Hélio. Tornou-se a professora Dina.


Supletivo à luz de velas


Percebendo a grande quantidade de analfabetos entre os adultos da região, o casal Hélio e Leocaldina propôs algo que parecia impossível de ser concretizado: criaram o primeiro curso supletivo noturno das ilhas. Detalhe: à luz de velas, pois não havia energia elétrica.


- Enfrentávamos os mosquitos e a escuridão. Mesmo assim, os alunos não desistiram de estudar. Isso foi um prêmio ao nosso esforço - emociona-se Dina.


Visitas durante enchentes


Mas o prédio com refeitório, cozinha, lavanderia, três salas de aula, seis banheiros também tinha outro propósito quando foi construído. Nas épocas de cheias, era o principal ponto de socorro das famílias quando os rios transbordavam.


Numa das maiores enchentes enfrentadas, faltaram menos de 10cm para as águas invadirem a escola. Nestes períodos, Hélio e Dina ganhavam mais uma função: "apaziguadores das brigas entre pais e filhos".


- Como ficavam várias famílias numa mesma peça, as crianças faziam muita bagunça. Quando os pais não conseguiam resolver, recorriam a nós. Os alunos nos respeitavam muito - orgulha-se Hélio.


Prédio fantasma


Abandonado há mais de uma década, o prédio vem sendo destruído pelas ações do tempo e dos vândalos. Vidros quebrados, pichações e depredações estão acabando com o que ainda existe da escola.


Há alguns anos, Hélio ainda tentou via Sec e Centro Administrativo Regional (Car) das Ilhas pedir que colocassem um zelador para guarnecer o espaço. Porém, nenhum dos órgãos sabia da existência do prédio.


- Não encontrei documentos nem no Registro de Imóveis. A escola foi esquecida - acredita o professor.


Que tal um museu no local?


O mais surpreendente é que há, ainda, os restos do prédio que abrigou o Grupo Escolar Norte, a 5km do Norte-Leste. Lá, segundo os poucos moradores da região, uma família vive no que sobrou da edificação. Porém, nas três vezes em que o Diário Gaúcho esteve no local, nenhum morador foi localizado.


Assim como a instituição onde Hélio e Dina lecionaram, a escola Norte não consta nos registros do Conselho Estadual de Educação do Estado (Ceed/RS).


- É uma pena parte da história da educação do Estado estar perdida. Estes lugares poderiam se tornar pontos turísticos na região, como museus, se houvesse investimento - sugere Dina.


Luta inglória de ex-aluno


Filho do agricultor responsável por doar o terreno ao governo estadual para a construção do Grupo Escolar Norte-Leste, o agricultor e pescador Antônio Xavier da Silveira, 68 anos, assiste de perto ao fim do colégio onde estudou até a antiga quarta série. Ele acompanhou o casal Hélio e Dina na visita ao "Colejão".


Vizinho da antiga escola, Antônio tentou diversas vezes proteger o prédio colocando por conta própria madeiras nas janelas e trancando as portas com cadeado.


"Perdi para os vândalos"


Foi ele quem se ofereceu para zelar pelos restos da escola. Hélio tentou encaixá-lo, pedindo auxílio dos órgãos que deveriam ser responsáveis. Porém, o prédio não foi localizado em nenhum registro oficial do governo estadual.


- Perdi para os vândalos, pois não tenho como combatê-los. E perdi para o esquecimento do governo do Estado. Só queria cuidar da minha escola - lamenta o ex-aluno.


Devoção de uma mãe


No retorno para casa, Hélio e Dina fizeram questão de passar lentamente de carro pela avenida principal da Ilha Grande dos Marinheiros. Foi uma tentativa de rever algum ex-aluno. E quase na saída para a BR-290, os dois foram surpreendidos pelos gritos emocionados de Romilda Alves dos Santos, 67 anos, mãe de cinco filhos que foram alunos do casal. Dina não se conteve. Desceu do carro e, já chorando, abraçou a mulher. Hélio perguntou pelos cinco filhos de Romilda, lembrando o nome de cada um deles.


- Minha Nossa Senhora, minha professora e meu diretor! Meu filho mais velho, hoje com 40 anos, foi aluno deles. Estes dias pensei em procurá-los, pois senti saudade. Que grande presente! - comemorou, chorando, Romilda, antes de abraçar Dina e beijar a mão de Hélio.


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