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Coluna Pesqueiro

Luís Augusto Fischer: "Três revelações"

As experiências místicas que levaram ao hospício os então jovens Eduardo Suplicy, Carlos Sussekind e Paulo Coelho

18/05/2013 - 09h32min

Atualizada em: 18/05/2013 - 09h32min


Tudo começa com uma arrumação de recortes acumulados, que estavam ajuntando pó e atravancando o escritório. Material que quase nunca a gente retoma com o mesmo entusiasmo que havia na hora em que o guardou. Sabe como é?

Sabe sim. Se é leitor, sabe sim. Pois foi assim comigo, esses dias. Enquanto a saúde das costas não me obrigou a parar, remexi num monte de papel, reencontrei várias fatias do meu passado, nem sempre com a mesma serenidade: aqui um recorte falando de horrores da vida (numa época meio deprê, eu dei de colecionar notícias de crimes abomináveis, e os ajuntava numa pasta intitulada "The horror", citando Eliot e Conrad, cá na minha cabeça), ali uma série de reportagens sobre o Inter, mais adiante recortes de textos meus em jornais e revistas inimagináveis.

Logo, dou de cara com um recorte da Folha de S. Paulo, casualmente do domingo das mães de 2006. Num pequeno texto, o agora senador Eduardo Matarazzo Suplicy relembra episódio de sua vida: era 1962 e ele, jovem de 21 anos, viajava pelo Leste Europeu, para conhecer o mundo socialista (da "Cortina de Ferro", como se dizia no momento, com boas razões). Na Bulgária passa sete dias sem dormir e conversa com pessoas pelas ruas, por mímica, já se vê, porque o búlgaro, dizem, só é falado pelos búlgaros e por Deus (essa piada não é do recorte).

Está como que num êxtase; quer retornar ao Brasil para dar testemunho de que é possível construir o socialismo aqui. Doa seus pertences por lá, e chega em Zurique só com os documentos; toma vinho com um barbudo que parece Marx.

E diz, no texto da Folha: "O meu despojamento das minhas coisas, o partilhar o vinho com o homem, tudo me fazia sentir numa cerimônia religiosa. Dirigi-me ao banheiro e dentro de um dos reservados tirei toda a minha roupa e fiz uma longa oração..." Os seguranças o pegam e o prendem; no hospital é sedado. Três dias depois, sua mãe chega lá, para resgatá-lo.

Paulo Coelho

No recorte, eu anotei, na época, os nomes de Paulo Coelho e de Carlos Sussekind: os dois tinham tido "iluminações" parecidas. E agora, sete anos depois, eis-me aqui costurando isso tudo. Paulo Coelho andou mesmo tendo umas visões religiosas. A história é contada com detalhes em sua biografia (autorizada), O Mago, texto de agradável leitura, feito pelo Fernando Morais. Para ser exato, são histórias, no plural. (Não, eu não encontrei nenhum recorte sobre Paulo Coelho, mas escrevi sobre seus dois primeiros romances, muitos anos atrás.)

Adolescente em colégio católico e de família de classe média conservadora do Rio, quase da mesma geração do Suplicy em São Paulo, Paulo Coelho teve dramas de consciência duríssimos, a ponto de escrever em seu diário (a que Fernando Morais teve amplo acesso) uma acusação contra Deus, porque Ele não poupava o futuro mago de terríveis quedas pecaminosas. Já por esse tempo, 1964, ele é levado a um "médico de nervos" para avaliação.

Paulo Coelho ia mal nas notas e, para injúria de seu pai, fajutou a assinatura paterna num documento. Foi o bastante para a família deliberar interná-lo na famosa Casa de Saúde Dr. Eiras, casa de repouso na versão branda, casa de loucos na leitura do jovem Paulo. E isso que os pais nem tinham sabido de sua ideia de suicídio, acalentada por esses tempos. Foram três internações, num total de mais ou menos três meses; as duas últimas foram encerradas por "evasão" do paciente; nas três, tomou remédios e chegou a imaginar que ia levar choques elétricos, num tratamento que era tido como adequado na altura.

Como se sabe, depois ele teve mais revelações. Vizinhou com a magia negra; anos mais tarde, sempre mantendo em mente sua enorme vontade de ser escritor de sucesso (que o livro documenta desde a mais tenra juventude), sofreu uma verdadeira (na opinião dele) conversão: tinha estado no campo de concentração de Dachau, onde sentiu um tremor que se repetiria depois, num hotel, nos dois lugares sendo acompanhado por um vulto. Aterrorizou-se, mas encarou o vulto: indagou dele o que queria. E o vulto respondeu serenamente que Paulo precisava retomar sua trajetória mágica, coisa que ele, vulto, poderia orientar. Segue-se daí o que se segue daí: Paulo Coelho entrou nessa e, bem, virou o Paulo Coelho que a gente conhece.

Carlos - Lamartine

O terceiro elemento desta estranha confraria é Carlos Sussekind. Este é figuraça, grande escritor, que figura no meu panteão dos melhores textos brasileiros de todos os tempos (outro fã dele nos arredores é o Fábio Pinto, que até mestrado sobre a obra dele fez). Encontrei vários recortes sobre ele, alguns de 1991, quando houve a reedição do grande e estranho romance chamado Armadilha para Lamartine, outros de 98, quando houve outra reedição. (Entre parênteses: como havia mais textos nos jornais! Como havia mais jornais impressos!! Como se dava espaço para a literatura naquela época!!!)

Claro que eu tenho as duas reedições, assim como tenho seu outro e ainda mais sensacional romance, Que Pensam Vocês que Ele Fez, e a sublime novela Ombros Altos, e o amalucado O Autor Mente Muito, de 2001, romance em parceria COM Francisco Daudt da Veiga, nada menos que o analista do autor, em certa época. (Para ver como são essas conexões, a primeira frase deste romance diz assim: "Carlos Sussekind e Francisco Daudt acabaram escrevendo este livro por medo do Paulo Coelho". Sério, não estou inventando.)

Mas, antes que a desrazão tome conta de tudo, como faz galhardamente nos romances acima mencionados, volto à Armadilha para Lamartine: é um romance assinado por, sério de novo, Carlos & Carlos Sussekind. Vai-se ler e o conjunto se divide em duas partes: a primeira é Duas Mensagens do Pavilhão dos Tranquilos, em referência a uma clínica para, bem, repouso, parecida com aquela em foi depositado o Paulo Coelho; a segunda se chama Diário da Varandola-Gabinete, composta de trechos de um diário real, verdadeiro, mantido pelo pai do autor, o primeiro Carlos do título, por anos a fio, num total de mais de 80 volumes - se é que dá pra imaginar isso. É sério, mais uma vez.

Mas a primeira parte é que interessa aqui. Nela, Carlos Sussekind, o filho, relata de modo enviesado sua própria experiência de internação, em 1954, quando ele andava pelos 21 anos. Como foi? Ele mesmo conta (Jornal do Brasil, 21 de março de 98): "Ainda que pareça incrível, foi uma sensação muito boa, muito alegre. Eu tinha uma dor de cabeça permanente, que passou e fiquei numa grande alegria. E isso me causou uma confusão. Achei que estava entrando numa dimensão diferente. Eu adorava um álbum, no qual havia umas cores muito vivas. Olhava aquele negócio e parecia que tinha encontrado minha terra de origem, o planeta de onde eu vim. Foi uma felicidade total. Me internaram quando eu estava em plena alegria. Só que era uma felicidade incompatível".

No romance, esta história aparece sempre refratada, ou pela voz de Lamartine, já internado, ou pela voz do pai dele, que no romance se chama Dr. Espártaco M., o do diário. E o pai conta que o filho foi dormir na casa de um amigo, retornou à casa paterna de madrugada e resolveu ir para a praia, ao raiar do dia, onde tomou banho totalmente nu. Aí é que a porca torceu o rabo, e o banhista foi detido, depois enviado à clínica, etc. Em certo trecho do Diário da Varandola-Gabinete, lemos que o pai, tendo ido buscar o filho na delegacia, encontrou Lamartine "abobalhado", triste e com um sorriso estúpido. Repetia que tinha morrido "e passou a se dizer Cristo, 'eu sou o Cristo!'".

E o sentido disso?

Não me arrisco a tentar entender o lado psicanalítico da coisa, a interioridade dos três, que afinal são pessoas de nosso tempo. Fico pensando na curiosa circunstância de se tratar de três jovens, evidentemente talentosos, oriundos de famílias católicas tradicionais, vivendo em ambientes cultos, tendendo ao conservador mas em grandes cidades, conectadas ao que de mais avançado havia no país e no hemisfério sul.

E essas visões? Ainda há disso, agora que as classes médias cultas não têm mais o mesmo afinco na relação com a religião católica, agora que o catolicismo mesmo mudou tanto? E nas outras religiões, como é que é? Mudou? Só nas religiões cristãs para populares é que rola a piração solta?

Matéria para continuar pensando. Enquanto isso, sugiro ler não O Mago, mas o Sussekind: vai por mim.


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