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Paixão de Cristo

A Via Sacra da vida real: conheça quatro histórias de quem reflete as estações de Jesus até a cruz

Cirineus, Verônicas, Cristos e Marias estão espalhados na multidão estendendo a mão ou reerguendo-se

18/04/2014 - 07h01min

Atualizada em: 18/04/2014 - 07h01min


Foto: Arquivo Pessoal Foto: Féliz Zucco Foto: Diego Vara

Durante a Sexta-Feira Santa, quando os cristãos refletirem sobre as últimas horas de Jesus antes da crucificação, estarão orando também por gente comum que reproduz no dia a dia os passos da Via Sacra.

Nas 14 estações, há lições que se encaixam na vida moderna com a mesma paixão evocada na Idade Média.

A Verônica que enxuga o suor de Cristo se multiplica em histórias de solidariedade como a do aposentado que alimenta a própria alma ao distribuir sopão aos moradores de rua. As quedas de Cristo são personificadas na narrativa de um detento do regime semiaberto que vende quentinhas e garante estar recuperado. Misturadas na multidão porto-alegrense, também há histórias de mães que encontram o filho para aliviar-lhe o sofrimento, como fez Maria, e cirineus que empunham cruzes desconhecidas, a exemplo de uma mulher que iniciou uma campanha para arrecadar fundos em prol de um idoso. Os quatro casos retratados por Zero Hora nas próximas páginas representam as estações da vida real.

Segundo dom Jaime Spengler, arcebispo metropolitano de Porto Alegre, a ideia é que hoje os fieis pensem sobre o significado de cada um dos passos de Jesus em direção ao calvário e tentem aplicar os ensinamentos aos acontecimentos ao seu redor.

- A tradição nasce do costume dos cristãos de, ao menos uma vez na vida, fazer uma peregrinação à Terra Santa. Com a questão das guerras e dificuldades, para muitos isso se tornou impossível. Criou-se, então, o costume de, nos espaços religiosos simbolizar os grandes passos da paixão de Jesus e rezar por eles - detalha o arcebispo.

A mãe que consola a dor do filho

Foto: Diego Vara

Outra forma de materialização do amor move mães diante da aflição do filho, bem como Maria foi ao encontro de Jesus na cruz. Tem sido assim com Leide Caminski Aschidamini, 33 anos. Ela saltou da vida que levava para acudir a fragilidade de Murilo, seis anos. Logo que nasceu, o menino foi diagnosticado com má formação do coração. A mulher deixou o emprego e todo o resto. De lá para cá, o pequeno passou por 19 cirurgias. Na última, ficou 70 dias internado na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Entre um curativo e outro, o menino implorava:

- Mãe, tira eles daqui (médicos e enfermeiros). Não deixa eles tocarem em mim.

As sentenças dilaceravam Leide, já abalada de ver o caçula cheio de drenos e amarrado a um leito de hospital, entrando em depressão.

A família que é de Planalto, na divisa com Santa Catarina, precisa viajar quase mil quilômetros entre ida e volta para o tratamento. Já no primeiro ano de vida da criança, precisavam vir a cada 15 dias para consultas na Capital, enquanto Murilo participava de um estudo experimental, que não surtiu efeitos.

- Me acordo no meio da noite e chacoalho o Murilo para ver se está respirando. Canso de levantar a blusinha dele, observar os pontos para ter certeza de que não é um pesadelo - desabafou a mãe, enquanto aguardava a primeira consulta com o médico depois da alta da criança há 20 dias.

A notícia mais esperada chegou para os dois: Murilo está liberado para frequentar o colégio. Deve iniciar a nova fase semana que vem. A próxima avaliação, só em agosto. A vida estacionada por 72 meses, Leide ainda não sabe como retomar.

- Ele está feliz da vida. Está ansioso por fazer amigos. Eu ainda não sei o que fazer. Pretendo pegar um emprego de meio turno, só no período em que ele estiver na escola. Acho que depois de tudo o que passamos, não conseguirei ficar longe dele.

Ajuda ao carregar a cruz de hoje se reverte em gratidão

Há ainda quem decida abraçar a cruz alheia, a exemplo de Cirineu. Por um mês, a técnica de enfermagem Simone Menna Barreto, 41 anos, assumiu o peso que Nelson Luiz Ribeiro, 63 anos, carregava. O idoso vende churros há 30 anos no Parcão, mas um acidente em 2010 deixou-o com dificuldade de locomoção.

Antes de conhecer o que estava sobre os ombros de Nelson, Simone viveu dilemas da sacada de seu apartamento na Avenida Ceará.

Como Nelson deixa o carrinho de churros em uma garagem na Avenida Assis Brasil, passava sempre pelo prédio de Simone, meio do caminho até o seu ponto de vendas, no Parcão. Acompanhou à distância o pneu da carrocinha de churros estourar no meio da rua sob um calor escaldante sem oferecer um copo d'água e carros passarem rentes ao idoso pela Rua 24 de outubro diariamente. Desceu para conhecer a história em um dia chuvoso de setembro passado.

Ela foi fisgada nas primeiras palavras e tomada por uma gana de ajudar. Compadecida de tanto esforço, tirou uma foto do Nelson e criou uma página no Facebook relatando as dificuldades dele. A solidariedade ganhou forma com pneus novos para a carrocinha, remédios, tratamento dentário, dinheiro e alimentos arrecadados.

- Ganhei tanta coisa, tanta comida, que doei um pouco para a igreja e para os pobres. A Simone é um anjo - resume o idoso, que conseguiu reduzir o esforço e comemora o simples fato de já andar sem bengala.

Ainda sem saber que os efeitos da atitude se prolongavam, que Nelson conseguiu esticar a temporada de vendas de picolé na praia para aliviar o trabalho pesado, Simone disse:

- Ajudar foi mais forte do que eu. Quando eu vi já estava lá embaixo, conversando com ele. Não sabia que daria tanta repercussão. Mas, no fundo, me sinto frustrada, pois eu queria mesmo era ter mudado a vida dele.

Nelson também não faz ideia da transformação na vida de Simone, que agora se reúne com outras 10 pessoas maquinando a criação de um grupo que pretende repetir o feito com outras pessoas.

Na queda, a busca pela força para se reerguer

Um homem de 42 anos precisou passar um ano no Presídio Central para entender o valor de uma vida simples, porém honesta. Ele agora cumpre pena no regime semiaberto na Capital e blindou-se de todas as ofertas criminosas para se tornar microempresário. Por motivos distintos aos de Jesus também caiu e, a exemplo de Cristo, se reergueu e decidiu que a partir dali carregaria uma cruz diferente, tão correta quanto pesada.

- Cometi erros e agora estou buscando a vida que eu tinha antes. Ela é muito mais difícil, mas também muito mais agradável - disse o detento.

O temor de ser reconhecido pelos companheiros que participaram de sua fase nebulosa fez com que pedisse para ter o nome e a imagem preservados.

Depois de condenado, em 2011, por dois assaltos e tráfico de drogas, conseguiu a progressão de regime e foi um dos primeiros gaúchos a usar tornozeleira eletrônica. A escolha pela liberdade vigiada partiu dele.

- Sei que estou preso, não posso querer grandes coisas. Vou juntando o que ganho com muita cautela. Não preciso de muito para viver. Para mim é muito difícil ser feliz. A maior alegria nesse mundo infernal, de tanta violência, é estar em casa com a tua família - define o homem, que fatura em média R$ 1,5 mil mensais com os almoços.

Há quase um ano morando com a mãe, encontrou o recomeço na venda de quentinhas. Tem como meta estreitar os laços com os dois filhos adolescentes, que moram com a mãe em outra cidade.

Da antiga vida, deixou tudo. Desistiu de cursar a faculdade na área das Ciências Exatas - abandonado um semestre antes de concluir - e passou a frequentar aulas de Gastronomia.

Firme na proposta de retidão, emprega o lucro das vendas na compra de equipamentos para realizar um sonho: abrir uma padaria.

Solidariedade compartilhada no sopão é vício do bem

No bairro Menino Deus, uma outra forma de doação, mais ao estilo de Verônica que enxugou o rosto ensanguentado de Cristo. Na Sociedade Espírita Ramiro D'Ávila, um economista aposentado de 62 anos trocou o pano da mulher piedosa por uma panela de sopão para aliviar o suor e o sofrimento de moradores de rua. Há três anos, às terças-feiras das 9h ao meio-dia, Juarez Xavier Athayde executa uma tarefa que tem se desvelado como terapia para a alma dele.

- Além de ajudar, de ver que meu trabalho dá um retorno bom, me sinto bem aqui - falou Juarez.

Gestos simples, como ver a gratidão no olho do outro são o combustível do aposentado. A maior alegria foi quando encontrou um de seus "clientes" do sopão bem vestido, de banho tomado e trabalhando em um posto de gasolina.

- Ele abriu um sorrisão quando me viu. E disse: "hoje eu é que vou lhe servir". Esse relacionamento é mais importante que a comida - garantiu Juarez.

Depois de passar 36 anos trancafiado em escritórios, quando pôde escolher ao que se dedicar, Juarez logo pensou em um trabalho com contato pessoal. Passou a enxergar além dos estereótipos depois de tornar-se voluntário na instituição onde se distribui cerca de 400 pratos por manhã.

- Estamos acostumados a desviar deles na rua e aqui ficamos todos confinados no mesmo ambiente. É um local onde eles se sentem gente, sentam na mesa e fazem exigências. É interessante esta relação.

Os mais assíduos, conhece pelo nome e faz questão de saber da vida de quem está disposto a contá-la:

- Sempre que posso, chegou perto, coloco a mão no ombro. O melhor momento do dia é quando eles saem satisfeitos, agradecendo.

Ações como estas, também são vícios. Um dia na semana está ficando insuficiente. Juarez quer mais. Pretende começar assim que possível acrescentar as quintas-feiras ao voluntariado na casa espírita.


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