Porto Alegre



Sem freio

Acumuladores de animais não percebem que ultrapassaram limites

Movidos pelo causa animal, muitos entram em um ciclo, recebendo cada vez mais bichos, sem reconhecer que há um problema

21/08/2014 - 08h49min

Atualizada em: 21/08/2014 - 08h49min


Paulo, morador do bairro Restinga, tem estimados 150 animais em casa
Foto: Guerreiro, PMPA, Divulgação   Apartamento no  Azenha pertencia a idosa que estava internada em hospital
Foto: Guerreiro, PMPA, Divulgação

O resgate de animais dos acumuladores só ocorre em casos extremos, por determinação judicial. Nestes, os bichos são tratados pela Seda na Unidade de Medicina Veterinária, localizada na Lomba do Pinheiro (Estrada Bérico José Bernardes, 3.489), onde também podem ser adotados. Dona Rosinha passa o dia com os gatos na Venâncio Aires
Foto: Laura Schenkel, Agência RBS

Guerreiro / Divulgação Seda
Moradora da Rua Landel de Moura, no bairro Ipanema, em Porto Alegre, acumulava 33 gatos e 15 cães dentro de gaiolas

- Muitas pessoas vêm aqui e me atrapalham. Agora, por exemplo, eu poderia estar limpando a minha casa - afirma uma senhora que tem dezenas de gatos e nega o mau cheiro relatado por vários vizinhos e pedestres que passam em frente a seu imóvel.

A aposentada, que não quis dar entrevista, tem cerca de 70 felinos. Não é o imóvel com mais animais na cidade. De acordo com a Secretaria dos Direitos dos Animais (Seda), seu Ádio, que mora no bairro Santa Teresa, tem cerca de cem animais. Já o seu Paulo, morador do bairro Restinga, tem aproximadamente 150 animais.

A prefeitura de Porto Alegre registra em torno de 60 casos relatados de acumuladores de animais - nem todos foram confirmados pela fiscalização. Alice Machado, assessora jurídica da Seda, no entanto, estima que o número seja muito maior.


A acumulação de animais, também chamada de colecionismo, é um tipo de transtorno não determinado pelo número em si, mas pelas condições gerais sob as quais vivem os bichos e os seus donos. Ou seja: só porque seu vizinho tem muitos animais, isso não quer dizer que ele seja um acumulador. A patologia ainda é pouco conhecida dos profissionais da saúde e da população, segundo Aristides Volpato Cordioli, psiquiatra e professor aposentado da UFRGS:

- É um limite bastante tênue. Muitas vezes, a pessoa começa se imbuindo do amor pelos animais ou do papel de salvar os que estão doentes ou machucados, mas perde o senso da própria capacidade, do tamanho do problema. É um impulso sem freios. Como outros acumuladores, eles têm dificuldade de dar suas coisas, no caso, doar os animais.

Em ação da prefeitura, lixo retirado da casa de Paulo encheu 5 caminhões
Foto: Guerreiro, PMPA, Divulgação

O acumulador é incapaz de prover condições mínimas de nutrição, saneamento, abrigo, espaços para os bichos se movimentarem e cuidados veterinários. Em casos extremos, tem até animais mortos em casa. O transtorno leva à criação em péssimas condições e também provoca impactos no ambiente.

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- Muitas vezes, a casa do acumulador tem grande quantidade de fezes e de urina e níveis de amônia muito altos. São condições anti-higiênicas para os animais e para os seres humanos. É um problema de saúde pública, que, às vezes, extrapola a casa do acumulador compulsivo e afeta a vizinhança - avalia o professor aposentado.

Barulho de cães e cheiro de gatos são as principais reclamações

As reclamações mais comuns de quem mora por perto referem-se a barulho, no caso de cães, e cheiro, quando são gatos. Ainda não há dados nacionais sobre a acumulação de animais, conhecida em inglês como animal hoarding. O perfil padrão dos acumuladores, segundo estudos americanos, aponta para mulheres com mais de 60 anos que moram sozinhas. Gatos são os mais acumulados, seguidos de cães e pássaros. Outro traço comum - que dificulta o combate à situação - é que, geralmente, os acumuladores negam o problema e a ajuda profissional.

Acompanhado pela prefeitura, Paulo é um exemplo: não aceita tratamento psiquiátrico, segundo a Seda. Administradora do projeto Reino Gato, iniciativa independente de proteção a animais em situação de risco ou abandono, Thiane Nunes sabe como é difícil lidar com um acumulador.

 Dos Bichos encontrados em gaiolas em fevereiro haviam contraído doenças
Foto: Guerreiro, PMPA, Divulgação

- Ele não nos deixa assumir um animal para ser tratado e encaminhado para uma adoção responsável. Acumuladores têm dificuldade em confiar e nos deixar levar um dos animais simplesmente para ser esterilizado ou tratado por algum problema de ordem médica, pois temem que não o devolveremos. Assim começa um embate complicado para nós, que vemos o sofrimento do animal, em óbvia situação de maus-tratos, sob a tutela de uma pessoa com um distúrbio emocional e psíquico.

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Heidi Ponge-Ferreira, médica veterinária e consultora em perícias técnicas sobre colecionismo, ressalta que o distúrbio psiquiátrico é apenas uma das modalidades da acumulação de animais:

- Pode ser um grave problema social ocasionado por políticas públicas deficitárias ou retrógradas. Pode ser decorrente de crimes de exploração de criações de animais, não raramente praticados por sociopatas com alto potencial em outros crimes. E, na modalidade que normalmente se coloca mais ênfase, um distúrbio psiquiátrico.

Moradora do bairro Azenha, na Capital, tinha 19 animais em apartamento
Foto: Guerreiro, PMPA, Divulgação

Os acumuladores de animais têm altíssima probabilidade de recaída. Foi o que ocorreu com o seu Paulo: até a Seda devolver os cães recolhidos em uma ação, ele já tinha acumulado novos animais.

Para gerar resultados frente a uma questão de tal complexidade, foi criado em fevereiro o Grupo de Trabalho (GT) Prevenção ao Colecionismo de Animais, coordenado pela Seda e composto pelas secretarias municipais da Saúde e do Idoso, Fasc e Procuradoria-Geral do Município. A equipe trabalha sobre os 10 casos mais problemáticos e ainda não tem um de sucesso.

- É uma situação que toma mais tempo para resolver. A Seda consegue melhorar as condições dos animais, dando todo o tratamento. Quando os donos permitem, os animais são esterilizados, castrados, vermifugados. Uma veterinária vai até eles. São procedimentos diferentes dos de rotina. O acumulador não precisa, por exemplo, encaminhar pedido de castração - explica Alice.

A casa dos gatos na Venâncio Aires

Rosa Maria Lopes, 60 anos, pode ser vista diariamente em sua casa na Avenida Venâncio Aires, 168, dando comida a seus gatos. Rosinha tem glaucoma, enxerga mal, apenas de um olho, e conta com a ajuda de amigas quando é necessário levar os felinos ao veterinário ou para aplicar um tratamento. Aos oito anos, quando foi adotada por um casal, ganhou seu primeiro gatinho, o Mimoso. Hoje, afirma ser a dona de Pierre, Jean-Louisinho, Lorde, Pérola, Juan, Ametista, Mel, Carolina e Daiane:

- Os outros que estão aí não são meus. São da rua e vêm comer aqui. Sempre gostei dos animais. Eu brigava com todo mundo por causa deles - conta.


A Seda realizou diversas ações fiscalizatórias e médico-veterinárias em relação aos felinos e informa que não foram detectados maus-tratos aos animais. O último relatório da fiscalização da secretaria afirma que Rosinha diz que não concorda em doar os gatos e que não está mais residindo no imóvel, já que o mesmo tem o risco de desabar.

Rosinha aluga um pequeno imóvel no bairro Santana, e diariamente caminha para a casa da Venâncio Aires, onde passa o dia na companhia dos gatos.


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