Porto Alegre



Acesso negado

Tesourinha instala grades em áreas usadas por moradores de rua

"Eu não reclamo de eles dormirem aí. Mas virou banheiro", justifica o gerente do ginásio, administrado pela prefeitura de Porto Alegre

30/09/2014 - 12h11min

Atualizada em: 30/09/2014 - 12h11min


Lauro Alves / Agencia RBS
Estão sendo fechadas duas áreas próximas à entrada principal do Ginásio Tesourinha

Há duas semanas, grades estão sendo instaladas no entorno do Ginásio Municipal Tesourinha, em Porto Alegre, com o objetivo de evitar o acesso de moradores de rua.

Administrado pela prefeitura de Porto Alegre, o ginásio tinha seus canteiros, junto às paredes, utilizados como abrigo especialmente em dias de chuva.

Um funcionário do Tesourinha, que não quis se identificar, falou que a medida foi tomada porque os frequentadores têm medo dos moradores de rua. Em entrevista a Zero Hora, o gerente do ginásio Tesourinha, Antônio Augusto Silva da Fontoura, afirmou que a medida tem, sim, relação com as pessoas que vivem e dormem por ali, mas a motivação seria outra:

- Vamos botar grama ali, mas para botar grama, eu tenho de fechar, porque o pessoal usa como banheiro, então nunca para nada ali.

Grades azuis foram instaladas há duas semanas
Foto: Laura Schenkel, Agência RBS


Segundo o gerente, estão sendo fechadas também duas áreas próximas à entrada principal do ginásio, que fica de frente para a Avenida Erico Verissimo. Em direção à Avenida Ipiranga e em direção ao Centro, as grades, que eram recuadas, foram deslocadas nesta semana para mais perto da pista de veículos. O dinheiro vem da Associação dos Amigos do Ginásio Tesourinha.

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- Eu não reclamo de eles dormirem aí. Mas virou banheiro. Tem que ver de manhã como ficam os cantinhos. Com as necessidades mais variadas. Como são salas de aula que tem atrás dessas janelas, fica terrível o cheiro - relata Fontoura.

 
Grades foram colocadas mais próximas à calçada
Foto: Lauro Alves, Agência RBS

Os moradores de rua que dormem no local reclamam da iniciativa e afirmam que não deixam sujeira nem excrementos na área.

- A gente varre nossos cantinhos, não deixa tudo sujo. O ginásio não é comunitário? Nós não fazemos parte da comunidade? Só ficou essa área pequena aqui para nós - reclamou Andreia Nascimento de Paula, 35 anos, sem saber que a área onde estava seu colchão também seria fechada.

 
Andreia Nascimento de Paula, 35 anos, reclama do fechamento de área onde ela dormia
Foto: Laura Schenkel, Agência RBS


O ginásio abriga diversas modalidades esportivas, que são gratuitas para crianças, adolescentes e maiores de 60 anos. Os adultos pagam R$ 30 por semestre. A musculação sai por R$ 40 o semestre.

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Valencia Losada, 41 anos, produtora cultural e estudante de Filosofia é frequentadora do Tesourinha. Ela aproveita o gramado do ginásio para brincar com Miranda, Aurora e Pink, suas três vira-latas.

- É uma atitude arbitrária, cada vez mais recorrente na cidade. Falta uma política efetiva que atenda a essa comunidade, falta uma reflexão sobre direitos humanos. As grades não são a melhor saída. É um mau exemplo dado pelo município - opina.


Professor da UFRGS critica ação e sugere instalação de banheiros públicos

O professor Eber Marzulo, do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional (Propur) da UFRGS, lembra que o caso é similar ao da grade antimorador de rua instalada na Rua da República, na Cidade Baixa, com um agravante. Naquela situação, a prefeitura intercedeu a favor da manutenção do espaço público como de uso de todos, e, neste caso, é o próprio poder público fechando seu espaço, um processo de privatização pelo Estado dessas áreas. Marzulo recorda outros casos, como a proposta de usar o Largo Glênio Peres como estacionamento ou que a sua utilização exigiria uma autorização prévia da prefeitura. 

- É uma apropriação estatal do que é público. O pessoal do Largo Vivo estava nas manifestações de 2013 por essa disputa, porque, em um dado momento, a prefeitura impôs que a utilização do Largo exigia uma autorização, o que é uma aberração do ponto de vista da Constituição. 

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O debate do uso do espaço público, lembra o professor, se aguçou nos últimos anos em Porto Alegre, incluindo a discussão de cercamento de parques. E sugere:

- O ginásio deve ter vestiário, não é? Por que não deixam os moradores de rua usar os banheiros? Os moradores de rua precisam fazer as necessidades básicas em algum canto, eles não fazem no meio da rua.

Paralelepípedos sob viadutos impedem que moradores de rua durmam no local
Foto: Félix Zucco, Agência RBS

Contatada pela reportagem, a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) informou, em nota, que a construção de banheiros públicos, bem como a sugestão de pontos a construí-los, não compete à Fundação: "Com relação à criação de banheiros públicos, reconhecemos que são estruturas que beneficiam a qualidade de vida, não só para a população em situação de rua, mas trata-se de uma melhoria que não compete à Fundação de Assistência Social e Cidadania".

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As práticas antimorador de rua em Porto Alegre vêm em ondas, de acordo com o professor. Nos anos 1980, foram os paralelepípedos com pontas para cima sob viadutos. Depois, colocar grampos em bancos para que os moradores de rua não se deitassem sobre eles.

- É tão atroz. Botar pedra para um sujeito não dormir embaixo de um lugar. São práticas horrorosas, abomináveis. É preciso um olhar mais amplo - comenta Marzulo.

Pessoas em situação de rua em Porto Alegre | Create Infographics


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