Eleições 2014



Brasil e Uruguai

Na Fronteira, doble-chapas escolhem dois presidentes

Eleitores com dupla nacionalidade em cinco cidades gaúchas votam em Aécio ou Dilma e no próximo líder uruguaio no mesmo dia

24/10/2014 - 17h02min

Atualizada em: 24/10/2014 - 17h02min


Montagem sobre fotos de Pablo Porciuncula AFP, José Albino e Divulgação PT / null
Doble-chapas decidem entre Luis Lacalle Pou, Tabaré Vázquez, Dilma Rousseff e Aécio Neves

Em um rincão do Brasil, mais precisamente na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai, eleitores vão escolher dois presidentes ao mesmo tempo no próximo domingo pela primeira vez. Em Jaguarão, Aceguá, Santana do Livramento, Quaraí e Chuí, os doble-chapas - cidadãos com dupla nacionalidade - terão de votar duas vezes: irão às urnas para escolher Dilma Rousseff ou Aécio Neves e definirão também se o legado de José Mujica permanece ou dá espaço à direita após dez anos.

Luis Lacalle Pou deve levar corrida presidencial ao segundo turno

O pleito é inédito para os doble-chapas: até hoje, nunca uma disputa presidencial uruguaia foi no mesmo dia da brasileira. Por isso, a Justiça Eleitoral do Brasil fez uma campanha especial para alertar sobre as diferenças nas regras de cada país. No Uruguai, é permitida a boca de urna, distribuição de panfletos e o transporte de eleitores no dia da votação. Quem descumprir a legislação será detido.

- As eleições municipais são mais complicadas, especialmente em Quaraí. De qualquer forma, o doble-chapa sabe o que não pode fazer - ressalta o delegado da Polícia Federal em Livramento, Alessandro Lopes.

Dilma e Aécio uruguaios

Responsável por quebrar 174 anos de polaridade entre os partidos Colorado e Nacional, o Frente Ampla elegeu Tabaré Vázquez em 2004, seguiu com Mujica e tenta trazer de volta Vázquez, que deve ir para o segundo turno com o candidato Luis Lacalle Pou (Nacional).

ZH entrevistou Mujica em sua casa no Uruguai

Identificados com Dilma e Aécio, respectivamente, eles pegam carona na campanha brasileira, conforme relatos de doble-chapas ouvidos por ZH. Porém, a tradição política uruguaia é diferente em aspectos como alianças partidárias, troca de ofensas entre candidatos e mobilização, e não há reeleição.

- Os partidos visitam as pessoas, não fazem panfletagem. E quem é de direita não se alia com a esquerda. É uma herança cultural das famílias. Além disso, há mais respeito nos enfrentamentos - diz a advogada Maria Helena Ferreira, que nasceu em Rivera e foi registrada em Santana do Livramento.

Na UFRGS, Mujica criticou o consumismo

O secretário-adjunto de Assistência Social da prefeitura de Livramento, Henrique Lopez, 47 anos, já participou da contagem de votos no Uruguai e explica que o sistema eleitoral brasileiro é muito mais avançado e deve inspirar melhorias no país vizinho nos próximos anos.

Leia um discurso histórico feito por Mujica na ONU

Ele entende que a chegada de Aécio ao segundo turno com chances reais de vencer Dilma influenciou a ascensão de Lacalle Pou, assim como a vitória de Lula em 2002 impulsionou Tabaré Vázquez.

- Nós, uruguaios, nos baseamos muito no Brasil, que é um gigante posicionado logo ao lado. Estamos numa grande expectativa de viver um segundo turno - afirma.

Veja trechos de uma entrevista de ZH com Mujica:

Final de Copa do Mundo
 
O envolvimento e o apego dos uruguaios aos partidos tradicionais e à política é comparado à paixão pelo Nacional e o Peñarol, times campeões da América e Mundial que dividem o país em tricolor e carbonero na mesma proporção em que o Rio Grande do Sul é separado entre colorados e gremistas.

Está na hora de trazer um técnico estrangeiro para a Seleção?

Para o mecânico Rubens Cabrera, 46 anos, uma eleição no Prata é como se fosse uma final de Copa do Mundo. Por isso, é impossível prever quem vencerá, mesmo com o favoritismo de Tabaré Vázquez nas pesquisas.

- É uma coisa fervorosa, que vem lá dos antepassados da família. As casas são enfeitadas, os carros adesivados e as bandeiras vão para as ruas. O que estamos debatendo agora não é o caráter de Mujica, que é elogiado por todos, e sim seu modelo de governo. Me parece que os uruguaios estão um pouco cansados, assim como os brasileiros, e querem mudar - analisa Cabrera.

Deputados uruguaios aprovaram a legalização da maconha

Mujica e Vázquez, voltados para a esquerda, têm plataformas de governo semelhantes ao PT, focadas nas classes menos favorecidas, mas são mais liberais em assuntos como legalização das drogas e do aborto. Lacalle Pou, por outro lado, é identificado com o PSDB e apresenta-se como o candidato da economia liberal e da renovação.

Além do presidente, uruguaios decidirão sobre maioridade penal

Também no domingo, os uruguaios vão decidir, em um referendo, se aceitam reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos, proposta que é defendida, no Brasil, por Aécio e rechaçada por Dilma.

Apesar de ser considerado o país mais seguro da América Latina, de acordo com o Global Peace Index (GPI), o Uruguai é a segunda nação do continente onde os habitantes se sentem mais inseguros, atrás apenas da Venezuela. O resultado, assim como ocorreu na legalização da maconha, deve pautar os próximos debates políticos no Brasil.

Léo Gerchmann, editor do blog Território Latino:

O Uruguai e suas eleições têm pontos de contato com nossa realidade. E também têm lá suas diferenças. As semelhanças são, em especial, de mentalidade. O Uruguai é um país polarizado. Se já era quando os partidos Nacional e Colorado se digladiavam numa relação aparentemente inconciliável, tornou-se ainda mais quando a Frente Ampla, coalizão de centro-esquerda, rompeu a tradicional dobradinha. Foi então que os uruguaios passaram a se dividir entre petistas e antipetistas. Quer dizer... frenteamplistas e antifrenteamplistas.

Quer levar o assunto para o campo esportivo? Podemos falar de Gre-Nal ou de Nacional e Peñarol. Sociedades, enfim, que se dividem historicamente em dois polos. Mas o Uruguai é, também, o país que, com 3,3 milhões de habitantes majoritariamente de classe média, conquistou uma maturidade que faz dele uma referência em direitos individuais. Também temos aqui uma questão de mentalidade. Essa história de amadurecimento cívico não começa pelo presidente "pop star" José Pepe Mujica. Vem de antes.

Nos anos 1970, quando os brasileiros queriam se casar novamente porque o primeiro casamento não dera certo, esbarrava na inexistência do divórcio. O brasileiro se desquitava! Ou seja, nada de segunda chance, de tentar de novo. E o que faziam os brasileiros, em especial os gaúchos? Ora, iam para o Uruguai, onde o divórcio era permitido. No final do ano passado, eu estive na chácara particular de Mujica. No lugar onde ele vivia, vive e continuará vivendo quando deixar a presidência do país. Foi uma hora de "charla".

Muito à vontade sobre suas gastas alpargatas, ele me deu uma aula de civismo. Contou que obteve algumas conquistas no setor socioeconômico, mas relativizou que jamais conseguiria fazer tudo sozinho. Fez sua parte na engrenagem, para humanizar a máquina e o poder. Baixou o desemprego, fez o país crescer e arejou costumes. Fez do Uruguai um país famoso por permitir o casamento legalizado de homossexuais, o aborto até a 12 semana de gestação e a produção,  venda e consumo de maconha chancelada pelo Estado, com o propósito de tirar o traficante do circuito.

Justificou: a guerra contra as drogas está perdida. Por que não arriscar uma nova estratégia? Tudo, aparentemente, muito maduro. Tudo muito civilizado. Aliás, aqui outra diferença: as eleições, cujo primeiro turno ocorre no próximo domingo, tiveram uma campanha de alto nível na disputa entre Tabaré Vázquez (Frente Ampla), Luis Lacalle Pou (Partido Nacional, ou Blanco) e Pedro Bordaberry (Partido Colorado). No segundo turno, é provável que Vázquez e Lacalle Pou sejam os adversários, com Bordaberry apoiando o blanco, na "coalizão rosada".

De semelhanças, portanto, temos especialmente o antifrenteaplismo, algo semelhante ao antipetismo. De diferenças, temos especialmente, claro, aquilo de que muito se falou acima, neste texto: a civilidade. No caso eleitoral, a civilidade de uma disputa entre adversários que não necessitam nem devem se tratar como inimigos. Porque isso os diferencia dos candidatos brasileiros? Se você não andou vendo nossos debates, digo que esse assunto mereceria um outro texto, um triste texto sobre a ríspida campanha eleitoral brasileira.


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